quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O anticrítico


Se a internet substituirá de vez a televisão eu não sei dizer, mas com certeza ela mudou os rumos do entretenimento (nem sempre no bom sentido, eu sei...). Passeie brevemente pelo youtube e você certamente irá se deparar com um mundo à parte do próprio mundo. Que o digam os canais que subvertem aquilo que conhecemos como clássico! 

A crítica de cinema, por exemplo. Foi dos tabloides e revistas especializadas à blogosfera e, posteriormente, aos sites. E agora encontrou no formato deboche ou sátira um lugar para chamar de seu. Exemplo vivo disso? O canal Chapado crítico, do humorista Bento Ribeiro, filho do escritor João Ubaldo Ribeiro.

Bento fez parte da geração MTV e seu humor, como não podia deixar de ser, é ácido até dizer chega. E em sua persona chapada ele escancara aquilo que a sétima arte tem de melhor e, principalmente, de pior. Aguardamos ansiosos por seus vídeos de 20, 30 minutos; suas tiradas irônicas e comparações surreais com fatos do cotidiano, por seus comentários insólitos e, por vezes, emocionados acerca de certos longas.

Os objetos de estudo dos seus vídeos são, em grande parte, clássicos do cinema hollywoodiano dos anos 1980, mas também há espaço para detonar lançamentos recentes do circuito, bem como películas que prometiam tanto e não entregaram nada (como Coringa: delírio a dois e o execrável Sílvio). 

Adorei suas postagens sobre Stallone Cobra, O enigma do outro mundo e Os aventureiros do bairro proibido (produções que marcaram profundamente a minha geração e que me faziam ver tv até de madrugada numa época em que o veículo valia a pena ser assistido). No fundo, o que Bento nos entrega são anticríticas, vide seu total descompromisso com a formalidade e o egocentrismo de certas figuras desse segmento. 

Convido àqueles que não conhecem ao Chapado crítico que o procurem no youtube o quanto antes. Aposto como passarão a ter uma outra visão - bem humorada, é bom avisar com antecedência - sobre a nobre arte de fazer filmes. E em tempos de negacionismo, fake news e figuras pedantes se achando o máximo só porque tem milhões de seguidores na internet, isso é muito mais do que o mercado anda entregando... 


domingo, 27 de outubro de 2024

Os clássicos morreram mesmo!


Reassisto Star Trek II: a ira de Khan, de Nicholas Meyer, depois de muitos anos e chego a uma devastadora conclusão: hollywood virou realmente uma piada - e de mau gosto. Onde foi parar toda aquela indústria cinematográfica com potencial para transformar sonhos impossíveis em realidade? E por que a atual geração faz tanto esforço para reler esses clássicos e transformá-los em bombas estratosféricas? 

A ira de Khan nos trazia o melhor dos mundos: um mocinho em crise (James Kirk acreditando estar em sua última missão pela Enterprise), um vilão renegado da melhor qualidade (vivido de forma visceral pelo ator Ricardo Montalban, da série cult A ilha da fantasia) e batalhas intergalácticas inesquecíveis que não precisavam de CGI para serem absolutamente inebriantes. 

E o que vemos hoje? Um festival de pastiches, narrativas absurdas, vilões canastrões e personagens infantilizados, criados para atender a uma demanda nerd pobre e culturalmente vazia por natureza. 

Star Trek até tentou se reinventar, rebootando-se, com outro elenco, mas... não dá. Certas franquias são eternas e, honestamente, imexíveis. E, além disso, o encanto, o charme e a nostalgia se perderam em meio ao desejo voraz de lucro rápido e fácil dos chamados CEOs, verdadeiros responsáveis pela crise do cinema americano nos últimos anos. 

A própria ficção-científica como gênero se perdeu numa espécie de delírio coletivo, onde o que realmente importa são artistas de plástico sendo vendidos como salvadores da pátria e mulheres sem expressão que só precisam ser lindíssimas (ou, às vezes, nem isso) para ganhar uma chance de brilhar. Porém, não brilham, não se destacam, e principalmente, não arrecadam o suficiente para justificar o alto orçamento em cima delas (e deles também, lógico!).

Ao fim, fica um sentimento agridoce (Quê?! não, amargo mesmo!) de que os clássicos morreram mesmo. Pior: deram lugar ao nonsense, ao infantilismo, a piada pronta e repetitiva, a bonecos, tênis, parques de diversões, fast foods e outras baboseiras indigestas que em nada avalancaram o mercado exibidor.

Será que ainda dá para sonhar com dias melhores nesse setor? Sei não... 


quarta-feira, 23 de outubro de 2024

R.I.P Antônio Cícero, poeta, filósofo, etc

 


O século XX está todo indo embora...

Mais um poeta pop partiu? Infelizmente. E dos bons, é bom avisar logo! É por causa de pessoas como Antônio Cícero, que faleceu hoje aos 79 anos, que a MPB merece ser muito celebrada. Não, não é exagero, não! E quem pensa assim certamente nunca ouviu suas canções (ou leu seus livros). Cícero era foda - e ponto. 

Além de poeta, escritor, letrista, crítico literário, professor de filosofia, imortal da Academia Brasileira de Letras... a lista é imensa, e ainda assim insuficiente para explicá-lo.

Deixou ensaios e colunas para jornais (escreveu para a Folha de São de Paulo de 2007 a 2010) célebres, livros extraordinários - como O mundo desde o fim (1995), no qual reflete sobre a modernidade, e A cidade e os livros (2002) -, músicas que marcaram época... Seus amigos diziam que ele "foi grande poeta, tanto no livro como na canção; sabia que letra de música pode ser sim boa poesia".

Estudou em Londres (quando esteve no exílio) e fez Pós em Georgetown, nos EUA. Seu poema mais famoso, "Guardar", entrou para a maravilhosa antologia 100 melhores poemas brasileiros do século, organizada por Ítalo Moriconi. Participou do documentário Janela da alma, de João Jardim e Walter Carvalho.

Mas seu maior legado ficou na MPB, em parcerias com Cláudio Zoli, Waly Salomão, Adriana Calcanhotto, Lulu Santos, Caetano Veloso e com sua irmã, a cantora Marina Lima. Impossível esquecer de "Fullgás", "À francesa", "O último romântico", "Maresia" e tantos outros hits. E parecia tudo tão fácil, do jeito que ele escrevia. 

Cícero estava na Suíça e escolheu o suicídio assistido para deixar este plano. Um direito e uma escolha dele que muitos certamente não entenderão. Ficam a obra antológica e os ensinamentos desse grande mestre que eu tive a honra de assistir numa palestra universitária uma década atrás. Vai fazer falta - e muita. Fica com Deus, poeta!    


segunda-feira, 21 de outubro de 2024

40 anos sem Truffaut


Eu nunca vou me esquecer dele como o cientista Claude Lacombe de Contatos imediatos do terceiro grau, do diretor Steven Spielberg (até porque eu revi o longa umas 20 vezes durante a década de 90 e virou um filme fetiche da minha adolescência). François Truffaut tinha uma elegância que eu não conseguia enxergar nos outros diretores da nouvelle vague (e não estou dizendo com isso que os outros eram piores!) e, por isso, se tornou para mim o diretor mais importante daquela geração. 

Posso dizer com toda a segurança que todos os filmes dele que assisti mexeram comigo de alguma forma, e nenhum em especial me deixou decepcionado, o que já é sinal mais que óbvio de estar diante de um cineasta acima da média (e isso é pra poucos). Além disso, seus textos escritos na Cahiers du Cinéma pautaram minha decisão de escrever sobre cinema de tempos em tempos.

Em 21 de outubro de 1984, aos 52 anos, ele nos deixou, vítima de um tumor cerebral, mas cá entre nós: ainda sinto sua presença, seu estilo e faço questão de rever sua obra sempre que posso. É daqueles artistas que você quer trazer perto do coração, que faz questão de incluir na sua formação cultural, simplesmente porque o trabalho dele faz toda a diferença em meio a tanta gente posando de famoso e popstar hoje em dia. 

Com Antoine Doinel, de Os incompreendidos, ele nos entregou um rito de passagem poderosíssimo; falou de cinema metalinguisticamente em A noite americana; Já o trio Catherine, Jules e Jim entrou para a história da sétima como o triângulo amoroso por natureza; fez do incêndio dos livros em Fahrenheit 451, adaptado da obra de Ray Bradbury, um libelo contra o fascismo; e ainda nos entregou a sereia do Mississippi, Adele Hugo, o garoto selvagem, o homem que amava as mulheres e muito mais...

O único porém em sua carreira? ter vivido pouco, pois eu me pergunto o que ele não teria entregue ao público se não tivesse partido de forma tão prematura. Para quem gosta de ler sobre grandes cineastas, recomendo de olhos fechados O prazer dos olhos - escritos sobre cinema, de autoria do próprio diretor, e Truffaut - Uma Biografia, da dupla Antoine De Baecque e Serge Toubiana. E ainda tem o curto (porém ótimo) documentário François Truffaut - o rebelde, de Alexandre Moix. 

E como eu sempre aviso nesses posts homenagens: não deixem de ir à procura de sua filmografia maravilhosa. Valerá cada segundo do seu tempo!   


sexta-feira, 18 de outubro de 2024

MPB in delirium tremens


2024 acabando e eu quase me esqueço de comentar o extraordinário A tábua de esmeralda, de Jorge Ben (nessa época ele ainda não era Benjor), sem sombra de dúvidas um dos maiores álbuns da história da música popular brasileira, que completa cinco décadas de existência. 

Tudo em Jorge Ben é pura bossa, puro ritmo... Meu pai, que era fã quase doentio do artista, dizia que ele era um animal estranho dentro da MPB (mas no bom sentido da palavra). "Era o único indivíduo capaz de juntar ovnis, jogadores de futebol e mulatas numa mesma canção e, ainda assim, entregar um espetáculo musical à parte", ele completava.  

Enquanto outros artistas abrem seus discos com músicas mais alegres, em A tábua de esmeralda Jorge Ben prefere meio que um caminho alternativo, propondo quase um manifesto com "Os alquimistas estão chegando". A música tem, inclusive, um clima meio de revolução, de "o futuro está logo, chegando, para nós ajudar nesse momento de confusão.

Já com "Errare humanum est" ele faz uma correlação entre deuses e astronautas que automaticamente remete ao livro de Erich von Däniken. E tudo isso é desmentido logo na faixa seguinte, com a swingada  "Menina mulher da pele preta" (que já foi cantada até pela banda Red Hot Chilli Peppers durante um festival de música no RJ).

Ele torce pela paz, pela compreensão, pelas moças bonitas e pelo bem-estar das pessoas; homenageia Zumbi (figura tão massacrada nos tempos atuais por um segmento da sociedade que nem sequer conhece a história do próprio país) bem como outras figuras negras; diz que a vida é bela e que está de bem com ela; convoca, em inglês, os brothers para a luta (que continua, não importa em que época)... Sério. Como diria um outro baluarte da MPB: ele organiza o movimento.

Deve ser a nona ou décima vez que ouço o álbum e sempre saio de cada audição dele com a mesma impressão: a de estar diante da MPB em seu formato delirium tremens. Nada é totalmente real, mas também não totalmente imaginário, ficcional, ilusório. Em suma: uma mescla desses dois mundos, um complementando o outro.

E pensar que a nossa música já foi sinônimo disso o ano todo e hoje nos contentamos vulgarmente com piseiros, calypsos, arrochas, sertanejos opacos e canções monossilábicas! Em que curva da indústria fonográfica perdemos completamente a direção? Enfim... Salve Jorge! Hoje e sempre. E que venha o centenário dessa obra-prima.


segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Mr. Olivetto


Quando estava encerrando meu dia na internet ontem me deparei com a triste notícia da morte do publicitário Washington Olivetto, aos 73 anos. E imediatamente meu cérebro viajou no espaço-tempo. Por quê? Não consigo imaginar minha adolescência sem a presença de seu trabalho icônico na propaganda. Não à toa o considero nosso maior nome nesse setor até hoje. 

Seus comerciais ditaram grande parte da minha relação com a televisão e a própria cultura pop e até hoje faço correlações entre a nova geração de publicitários e seu trabalho visionário, à frente do próprio tempo.

São muitas as memórias nostálgicas do seu trabalho: o Garoto Bombril (1978), com Carlos Moreno: a palha de aço das "mil e uma utilidades"; o Primeiro Sutiã, da Valisère, com a atriz Patrícia Lucchesi (1987) e a frase que virou cult: "o primeiro sutiã a gente nunca esquece"; Hitler, feito para o jornal Folha de S. Paulo (1989), que chocou o público com a mensagem “é possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade”; Vulcabras 752 (1990), apresentado pela cantora e apresentadora Hebe Camargo; o Cachorrinho da Cofap (1994), dos amortecedores, e o slogan "o melhor amigo do carro e do dono do carro" (a raça dachshund ficou conhecida por muitos anos como o cão da Cofap)... A lista é imensa e somente ela já renderia um texto próprio.

Washington fez história na agência DPZ e criou sua própria agência, a W/Brasil, reconhecida internacionalmente (e cujo nome muitos associam à canção homônima de Jorge Benjor). 

Mais do que isso, ele foi gigantesco em muitos aspectos: foi um dos publicitários mais premiados do mundo, conquistando mais de 50 Leões no Festival de Publicidade de Cannes; é o único latino-americano a ganhar um Clio Awards (em 2001); foi eleito duas vezes o publicitário do século pela ALAP (Associação Latino-Americana de Publicidade) e ainda produziu os únicos dois comerciais brasileiros presentes na lista dos 100 maiores do mundo de todos os tempos. Precisa dizer mais alguma coisa? 

A morte de Olivetto, assim como a de Cid Moreira e Rita Lee nos últimos tempos, me faz pensar que estamos nos despedindo do século XX (ou seja: daqueles que produziram algum significado para o século) aos poucos, e isso é por demais triste. Nunca precisamos tanto de referenciais como agora. E só o que vejo ao meu redor é melancolia, uma sociedade que só pensa em guerra e divisão social. Que novos personagens interessantes possam surgir para cobrir a lacuna deixada por estes indivíduos extraordinários. 

E Olivetto... fica com Deus, meu caro! Seu legado será eterno.


sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Vida e morte são apenas capítulos


A morte como "a única certeza que nós temos na vida" é uma catarse cruel, porém necessária, principalmente num mundo cuja sociedade se recusa a olhar para os lados e se foca única e exclusivamente no próprio umbigo (leia-se: poder, status, riqueza, etc). Entretanto, quando se trata da morte de um filho ou ente querido a história muda completamente de figura e temos o costume de rever esse conceito. É exatamente o que acontece com Louis no extraordinário Três sombras, hq de Cyril Pedrosa.

Ele vive com a esposa, Lise, e com o filho Joachim num lugar à parte do mundo. Lá, criam suas próprias regras e fazem suas próprias escolhas baseadas no bem-estar e num estilo de vida alternativo. Pelo menos assim era até que surgem três sombras, que Louis acredita que ali estão para levar Joachim embora. 

Não disposto a permitir tal ato ele foge com o filho numa viagem que mostrará a ele o melhor e o pior da humanidade em proporções quase idênticas. A todo momento ele será posto à prova, traído, enganado, usado, dentre outras artimanhas sórdidas, mas também vislumbrará pílulas de grandeza em determinados exemplares humanos. Contudo, o desfecho dessa saga não será nem de longe aquilo que ele imagina. 

Cyril Pedrosa é um artista sublime. Já foi animador dos estúdios Disney e trabalhou em longas como O corcunda de Notre Dame e Hércules. E aqui nos entrega uma graphic novel muito bem acabada que mescla bem sentimentos e estruturas. Num clima mezzo fábula mezzo tragédia acompanhamos essa jornada desesperada de pai e filho em busca de respostas que talvez nem existam num mundo dito normal. 

O problema: o mundo nunca quis de fato ser normal. Ele prefere, isso sim, ser um desafio constante e precisamos estar preparados para abrir mão de nossos maiores sonhos a qualquer momento ou, no mínimo, lutar com unhas e dentes, até a morte se necessário, para realizá-los.  

Só não digo que fiquei totalmente realizado com a leitura porque - confesso -me bateu uma curiosidade a respeito da escolha do autor pelo preto e branco. Gostaria muito de ter visto o trabalho a cores (e o traço de Cyril é tão poderoso! com certeza o resultado final teria sido um escândalo).  

Ao fim dessa experiência apenas uma pequena (e inebriante) certeza: a de que vida e morte são nada mais do que capítulos e eles nunca duram o tempo que nós gostaríamos que eles durassem. Mas nem por isso eles são menos poderosos e, consequentemente, necessários. 

Uma excelente opção para quem procura uma boa leitura na nona arte fora do universo heróis e histórias sobrenaturais. Procurem!  


terça-feira, 8 de outubro de 2024

25 anos sem o engenheiro das palavras


Eu me lembro com exatidão das três vezes em que li o poema Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto. E principalmente: do prazer inenarrável que foi esmiuçar aquela obra-prima. Impregnado de forte crítica social, mas sem perder sua capacidade de ser nostálgico e mostrar um nordeste eterno, João Cabral nos entregou - assim como Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas - um microcosmos ácido sobre o Brasil. 

O triste nisso tudo? Lá se vão duas décadas e meia em que nunca mais veremos esse mestre em ação na poesia brasileira. E as novas gerações não fazem a menor ideia do que significa não ter alguém dessa envergadura para ler nos momentos de lazer!

João Cabral fez parte da geração de 45 do modernismo brasileiro, um período em que os escritores estavam mais preocupados com a palavra e a forma do que com o conteúdo (o que não significa - de forma alguma - que suas narrativas fossem menos emocionantes ou fortes ou suas sensibilidades menos poéticos. Longe disso!). Vem daí, inclusive, o apelido que ganhou de engenheiro das palavras. 

Ler João Cabral, em alguns momentos, é como adentrar uma grande fenda no espaço-tempo, uma terra particular onde mesmo o senso comum e o cotidiano são coadjuvantes quando colocados lado a lado com suas ideias e impressões sobre o país e o resto do mundo. 

Se tiverem tempo (está cada vez mais difícil, pelo menos para mim, encontrar tempo disponível para ler) conheçam O cão sem plumas, O rio, Quaderna, A educação pela pedra, Auto do frade e Sevilha andando. E isso só para começar os trabalhos! Aposto o dinheiro que for como irão ficar encantados e não desgrudarão mais de sua obra. Eu mesmo volta e meia o releio, para não perder o costume. 

Ao invés do lirismo, Cabral acreditava em conceitos como objetividade, concretude, racionalidade... E transformou seu projeto literário naquilo que ficou conhecido como poesia profunda, baseada na realidade exterior. Ele passou a vida reclamando de uma enxaqueca que o perseguia e que, no fundo, era uma forma de mantê-lo sempre atento, ligado aos fatos, e não displicente na forma como conduzia seu trabalho. 

É definitivamente uma pena sabermos que não podemos mais contar com uma força da natureza dessas produzindo literatura brasileira de alto nível. É mais um daqueles casos em que você se pergunta: "onde estavam os votantes do nobel de literatura que não reconheceram esse gênio anos atrás?". 

Fica em paz, João! Seus leitores irão relê-lo até o fim dos tempos.  


segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Viva Tarsila!


Adoramos falar dos pintores - e artistas em geral - estrangeiros que expõem e vêm à nossa terra; exultamos; nos tornamos os maiores baba-ovos dessa cultura internacional (e não à toa somos classificados com o famoso "complexo de vira-latas"). Entretanto, quando um artista nosso é tema de um grande evento ou exposição no exterior, não damos a mínima. Isso quando não questionamos a validade de sua obra. Que tristeza!

A partir da próxima quarta (09), contra tudo e contra todos, o Museu de Luxemburgo, na França, exibirá uma gigantesca retrospectiva da carreira de Tarsila do Amaral. E como é extraordinário poder ler uma notícia dessas! Serão 150 obras, dentre elas 49 quadros, que ficarão expostos até 2 de fevereiro, para deleite dos franceses (e turistas) amantes da boa arte. 

Infelizmente, Tarsila ainda não é - a meu ver, pelo menos - reconhecida como deveria. E olha que se trata de uma das principais responsáveis pelo fenômeno que foi a Semana de Arte Moderna de 1922 (detalhe: ele não se encontrava no país, pois estava na Europa, trabalhando e aprendendo - muito! - enquanto Oswald de Andrade assumiu o papel de grande embaixador dessa revolução).

Os primeiros quadros de Tarsila mostram uma influência do impressionismo, mas nem por isso ela deixou de experimentar tendências como o cubismo - que tem Picasso como seu maior representante - e o fauvismo. Mas é preciso deixar claro aos iniciados que ela sempre avisou aos críticos de sua arte que mesmo sua passagem por Paris na década de 1920 foi uma forma de refletir sobre seu país de origem. 

Ou seja: ilude-se quem acredita na falácia de que Tarsila sempre foi uma estrangeirizada. Pelo contrário. Um tema muito caro em sua obra sempre foi o indigenismo e ela sempre fez questão de retratar as mais diferentes etnias em seu trabalho. 

Outro ponto muito degradante de quem diminui sua obra é a mania de rotulá-la apenas como "aquela moça que pintou o Abaporu e Os operários". Típico comentário de quem não entende absolutamente nada de história da arte. Tarsila era eclética, provocadora, à frente do seu tempo e antenada com os manifestos e vanguardas que vinham ganhando força no período. Logo, resumi-la a um ou dois trabalhos impactantes é, com certeza, desmerecê-la (o que não é nada justo).

Que a exposição francesa não só traga uma nova luz e um novo interesse sobre o seu trabalho, como também abra portas para se redescobrir outros grandes artistas clássicos brasileiros. Com certeza as artes visuais brazucas merecem - e muito - esse reconhecimento. 


quinta-feira, 3 de outubro de 2024

A voz da tv brasileira


"Boa noite". Quantas pessoas responderam a ele enquanto assistiam o Jornal Nacional pela tv? Era praticamente um ato involuntário, como responder a um vizinho ou parente no meio da rua. E por 26 anos Cid Moreira repetiu o mesmo gesto, respondido por milhares de espectadores (segundo estatísticas, foram mais de 8 mil vezes). 

Hoje Cid nos deixou e com sua partida perdemos a voz da tv brasileira. E que voz! 

Tem quem o conheça como o âncora do telejornal mais famoso do país, tem quem se lembre dos salmos católicos que ele gravou e tem também quem prefira se lembrar dos memes criados acerca dele (como, por exemplo, o da famosa entrevista que ele fez com o ilusionista Mr. M, na qual, em determinado momento, lhe perguntou: "você é espada?").

Contudo, piadas à parte, Cid Moreira foi um grande fenômeno da tv e do telejornalismo brasileiro. E acho difícil aparecer alguém que o supere. Até a história de que ele apresentou uma edição do jornal de bermuda - que muitos tratam como uma lenda urbana - passa despercebida diante do seu legado midiático. 

Eu sempre tive fascínio por grandes vozes. Meus ídolos, quando moleque, eram os locutores de futebol. Ficava horas ouvindo José Carlos Araújo, Luiz Penido, Osmar Santos, Januário de Oliveira, Sílvio Luiz... Hoje entendo o motivo dessa adoração: sempre tive voz de taquara rachada e ouvir esses gênios era uma forma de estar perto da grandiosidade. 

E nesse quesito Cid sempre liderou meu top 10. Meu sonho (não realizado) era ter uma voz como a dele. E agora, mestre, como é que eu fico sem poder ouví-lo de novo, daqui pra frente? Entre seus feitos mais lendários não podemos também esquecer da citação no famigerado Guinness Book, o Livro dos Recordes, como o profissional que ficou mais tempo à frente de um telejornal. Honraria para poucos! 

Cid, que você fique em paz onde quer que esteja, pois sua história aqui neste plano certamente foi incomparável. E a imprensa fica cada dia mais pálida com a partida dos melhores. Como você.