Se Lourenço Mutarelli fosse americano ou europeu certamente seria bem mais badalado no mercado de quadrinhos. Sua narrativa é por vezes seca, por vezes ácida, lembra um punhal apontado em nossos corações. Ele nunca recorre a soluções fáceis, muito menos acredita em finais felizes. Com certeza prefere a dúvida, o desespero, a alucinação dos fatos. Não, da sociedade contemporânea.
Transubstanciação é exatamente isso. Um tapa na cara quando estamos dormindo. Jamais poderia ser a cores, pois a vida também não é. Em determinados momentos senti meu estômago embrulhar (o mundo também tem feito isso comigo nos últimos anos).
Finalmente, Thiago - seu protagonista - é poeta ou louco? Acho que ambos. Digo mais: no fundo, no fundo, somos todos um pouco de ambos. Apenas não admitimos. Thiago simplesmente se esqueceu de tudo o que fez de errado antes. Acumula experiências nauseantes, sequer consegue reconhecer sua amada. Ele criou sua própria realidade, colocando a verdade em segundo plano. O resultado disso: terrível, é claro.
Segundo os dicionários a palavra transubstanciação remete à 1. Mudança de uma substância noutra. 2. [ Teologia ] Mudança da substância do pão e do vinho na do corpo e do sangue de Jesus Cristo, na Eucaristia. Mutarelli (no caso, Thiago) prefere a primeira via. Ele está anos-luz de ser Cristo. Seria, no máximo, um anticristo, por tudo que cometeu de mais insano e não admite.
O álbum, que é enxuto, poucas páginas, não perde o que tem de mais visceral. Trata-se de um grande ensaio sobre a falência do homem nos tempos modernos.
É visível - pelo menos, para mim foi - a referência ao cineasta David Lynch, principalmente à Eraserhead e seu ótimo Estrada perdida. E por algum motivo que eu não consigo traduzir em palavras sensatas eu também relembrei da época (o final dos anos 1980) em que ouvi pela primeira vez ao álbum Fausto Fawcett e os robôs efêmeros. Aquele quê de desesperança, aquele sentimento de melancolia, de que algo estava perdido, quebrado, e não podia ser consertado.
Thiago está destruído e só pode seguir em frente, cometendo novos erros. E ele os comete. Só que a opinião pública não reagirá mais a eles da mesma forma. Não há mais tempo ou espaço no mundo atual para diálogos. Tudo agora é resolvido à bala, pelo viés da barbárie e da violência nua e crua.
Ele poderia ser alguém melhor se realmente se esforçasse, só que não. Ele se acostumou a essa postura diabólica, incômoda, nociva. Acha que o mundo lhe deve algo, mas na prática ninguém deve nada a ninguém e todos exigem de todos. O que sobra? O amargo fim.
Acho que dificilmente irei me deparar com algo mais brutal e nonsense em 2024 do que Transubstanciação (e olha que ele foi publicado originalmente em 1991). O que me leva à uma conclusão caótica: a realidade já se mostrava devastadora há mais tempo do que eu poderia sequer imaginar. Como pude ser tão ingênuo!
Leiam. Todos deveriam passar por esse choque de realidade pelo menos uma vez na vida.
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