sábado, 29 de janeiro de 2022

A nave


Já bem disse o trio Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Brito, integrantes da banda Titãs, lá pelos idos de 1987, ao comporem a música Comida: "A gente não quer só comida/ a gente quer comida/ diversão e arte/ A gente não quer só comida/ a gente quer saída/ para qualquer parte.../ A gente não quer só comida/ a gente quer bebida/ diversão, balé/ A gente não quer só comida/ a gente quer a vida/ como a vida quer...". E em tempos de liberdade de expressão comprometida, então, já viu né! O povo brasileiro, no fundo, nunca se satisfez com o trivial e quando o assunto é cultura, diversão e entretenimento, isso fica ainda mais nítido. 

Logo, que grande ironia ver um bando de loucos montando uma lona de circo na praia do arpoador, em plenos anos 1980, ditadura ainda rolando, mas a sociedade desejando a tão sonhada abertura política, oferecendo ao público a possibilidade de ser o que você quiser, sem freios ou rótulos, muito menos estereótipos. Assim nascia em janeiro de 1982 o Circo Voador, que agora em 2022 completa quatro décadas de existência e pura rebeldia (mas com engajamento, é bom que se diga!).

Não fosse o circo o rock brazuca jamais teria dado as caras na cidade maravilhosa. Em shows antológicos e pioneiros até a medula, conhecemos Barão Vermelho, Blitz, RPM, Capital inicial, Titãs, Legião Urbana, Camisa de Vênus, Ultraje a rigor, Plebe Rude, Paralamas do sucesso... Ufa! Você que é fã de rock como eu, sabe que a lista é grande então paro por aqui (mas com uma dor no coração, pois não quero ser injusto com ninguém). E importante que se diga: equivocam-se aqueles que pensam ser o circo espaço exclusivo do rock n' roll. Não, meus amigos! Por aqui também passaram feras da MPB como Adoniran Barbosa, Cauby Peixoto, Tim Maia, Luiz Melodia e tantos outros. O circo sempre foi democrático e se orgulha disso.

E não somente música: cursos, palestras, oficinas, teatro, audiovisual, espetáculos circenses, performances, dança... A nave, como bem gostam de se referir a ele seus frequentadores, absorve tendências, estilos, plataformas as mais distintas. Em uma palavra: um local destinado à inovação, ao saber e à arte. Até mesmo os projetos sociais, como a creche-escola (que não parou de funcionar nem na pandemia), a Escola livre de artes e o Estação Circo Voador (que oferece cursos profissionalizantes gratuitos) viraram cartões de visita desse templo do entretenimento e da cultura. 

Eu não consigo imaginar o Circo Voador sem poder falar de duas figuras fundamentais de sua história: a primeira é Perfeito fortuna, membro e criador do grupo de teatro Asdrúbal trouxe o trombone, que revolucionou as artes cênicas na década de 1970 com Trate-me leão, responsável pela grande ousadia que foi montar um espaço apto a receber jovens artistas à procura de um lugar (até então inexistente) para mostrar do que eram capazes. E a segunda é a avalanche em forma de mulher Maria Juçá, que quando viu o circo ser despejado da Lapa em 1996 - sua segunda casa, depois que os dois primeiros meses na praia se encerraram e o grupo foi expulso pelo estado - por conta de irregularidades vistas pelo então prefeito César Maia (que custou ao local oito anos de inatividade), arregaçou as mangas e lutou pela resistência do projeto com unhas e dentes, saindo vitoriosa da batalha. Sem eles dois, acredito que o circo já tivesse ido pras cucuias há tempos.  

Até porque chegar na Lapa naqueles tempos de decadência, com iluminação pública deficitária, ausência de segurança e um retrato vivo do abandono era uma jornada a qual poucos iriam querer enfrentar. E nesse momento, acredito, surgiu a grande sacada do grupo: embora fossem habitantes da zona sul carioca, entenderam rapidamente que o circo precisava ser um local de todos, não somente cariocas, e mesmo os cariocas não somente a elite. O subúrbio precisava estar ali; o norte, o nordeste, o centro-oeste, o sul, o Brasil como um todo, precisava - e muito! - estar ali. Por quê? Porque havia uma urgência do povo brasileiro em voltar a ter uma voz, não aceitar o que vinha de cima, de boca fechada ou braços cruzados. Era o momento de grande reviravolta para o país e a sociedade entendia isso. E faria o que pudesse para consegui-lo. 

Duas imagens em forma de pessoas me fizeram pensar no legado criado pelo Circo Voador com o passar dos anos: 

1) Eu tive uma vizinha nos tempos em que morei no Méier que lembra com riqueza de detalhes da Surpreendamental Parada Voadora, que saiu da Praça Nossa Senhora da Paz, em Copacabana, e foi até o Arpoador para anunciar a estreia do circo em 1982. Mais: via nos olhos dela, descrevendo a cena, o mesmo brilho daquele dia, do que aquelas pessoas à frente do seu tempo significaram para a sua história e formação. 

2) Conheci antes da pandemia, dentro do Oi Futuro Flamengo, um jovem de pouco mais de 16 anos, que em 2015 esteve presente no Arpoador quando o circo reavivou suas origens montando uma nova lona na praia durante uma semana. E ele me disse na hora: "eu daria a minha vida, se pudesse, para ter vivido aquela época. Pareceu-me que naquele tempo as pessoas eram mais verdadeiras, tinham mais prazer em viver". 

É de histórias e memórias como essas que o Circo Voador vive e ainda viverá, pois quero muito crer nisso, por muitos e muitos anos. Dentro do circo, seja no Arpoador ou na Lapa, pessoas conheceram o amor pela primeira vez, se tornaram namoradas, noivas, gente se casou ali dentro (e com orgulho). Conheço gente que daria a vida por aquilo ali. E acreditem: não são fanáticos religiosos ou pessoas desequilibradas. São simplesmente pessoas que reconhecem que nunca mais houve outro lugar como aquele e, por isso, o circo precisa resistir. A qualquer custo. 

Para quem quiser saber mais ou aqueles que não frequentam o espaço ou sabem pouco sobre o lugar e a sua história recomendo de olhos fechados o livro Circo Voador - a nave, de Maria Juçá, que é praticamente um making of do local em versão impressa (e que rendeu um filme homônimo, dirigido pela cineasta Tainá Menezes) e o documentário A farra do circo, de Roberto Berliner e Pedro Bronz. Todos os três projetos culturais são singelas tentativas de retratar a vida agitada daqueles tempos em que o povo decidiu, enfim, voltar a viver. 

Faltou dizer alguma coisa? Certamente que sim. Um lugar desse tamanho, com tantas histórias e lembranças, não tenham dúvidas! Nem uma tese de doutorado consegue descrever de forma definitiva o que foi o circo. Mas se quiserem saber mais, entrem no site do Circo Voador agora que vocês vão encontrar o que falta. Ah se vão! E que venham os próximos 40 anos. 


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