quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

A pimentinha


Tem artistas que são dúbios e essa é com certeza a melhor qualidade deles, pois não vejo o meio artístico como uma ciência exata ou um emprego público, de bater ponto, salário fixo e certo no final do mês. Só começo a me interessar pela figura do artista quando ele escancara os limites do possível, quando ele transgride, foge do óbvio, ultrapassa o bom senso. E nesse sentido, a cantora Elis Regina preencheu todos os pré-requisitos e com folga. É difícil falar de Elis (e me refiro à pessoa, por vezes complexa, contraditória, de temperamento forte). Mas também é fácil falar de Elis e sua voz e presença de palco deixaram isso muito claro ao público. 

Hoje, 19 de janeiro de 2022, completamos 40 anos sem Elis Regina. Sem suas interpretações magistrais, sem sua voz inconfundível, sem seu talento para cativar plateias Brasil afora. E a MPB nunca precisou tanto de alguém como ela (vide o que as rádios e os programas de auditório vêm apresentando nos últimos tempos e chamando de hit parade!).

A menina de Porto Alegre que com onze anos de idade já se apresentava no programa Clube do guri, na Rádio Farroupilha, com quinze já tinha contrato na Rádio Gaúcha e chegou a ser eleita "a melhor cantora do rádio" e no ano seguinte veio para a cidade maravilhosa de mala e cuia para gravar seu primeiro disco, o hoje nostálgico Viva a Brotolândia, era precoce mesmo e deixou claro para o país e quiçá para o mundo que sabia bem o que queria da vida e nada a faria mudar de opinião. Não foi à toa que Vinicius de Moraes, o poetinha, a apelidou de Pimentinha. 

Entre 1964, o contrato com a TV Rio para apresentar o programa Noite de Gala (onde então conheceu o seu primeiro marido, Ronaldo Bôscoli) e 1965 e a sua participação no 1º Festival de Música Popular Brasileira, na TV Excelsior, cantando "Arrastão" de Edu Lobo e saindo vitoriosa, veio o ponto de virada na carreira. A partir daí, tudo o que Elis cantasse virava sucesso. 

Contudo, a consagração definitiva mesmo junto ao público veio com aqueles que eu considero seus dois melhores trabalhos: Elis e Tom (1974), no qual realiza uma extraordinária dobradinha com um dos pais da Bossa nova e fez de "Águas de março" um clássico do nosso cancioneiro, e o seminal show Falso Brilhante (1975), transformado em disco no ano seguinte, em que interpreta sucessos como "Fascinação", de Ivan Lins e "Como nossos pais", de Belchior. Recomendo o álbum aos fãs de boa música de olhos fechados. É das melhores coisas que o nosso mercado fonográfico produziu até hoje! 

Há ainda vários pesquisadores e estudiosos da música brasileira e da carreira de Elis que incluem nesse pacote de pérolas da cantora o também ótimo Saudade do Brasil (1980), um de seus últimos trabalhos. Aqui é possível ouvir a cantora na exuberância da sua voz em canções eternas como "Maria Maria", de Milton Nascimento e "Alô alô marciano", de Rita Lee e Roberto de Carvalho. 

E isso sem contar o programa O fino da bossa, que apresentou entre 1965 e 1967 na TV Record em São Paulo ao lado do cantor Jair Rodrigues e do grupo Zimbo Trio e que rendeu os álbuns Dois na Bossa I, II e III, o famigerado show no Olympia de Paris em 1968, do qual saiu ovacionada pela plateia e os também hits "O Bêbado e o equilibrista" (considerado o hino da anistia), "Madalena", "Casa no campo", "Romaria", "Upa neguinho", "Se eu quiser falar com Deus", entre outras façanhas musicais.

Elis era, em uma palavra, eclética. Ia da MPB ao jazz, sem fugir do rock (mesmo com a polêmica envolvendo a manifestação contra as guitarras elétricas no Festival da canção de 1967 e que, com o passar dos anos, se provou uma grande bobagem), da bossa nova e, claro, do samba. É considerada por muitos como a melhor cantora brasileira de todos os tempos. Nesse terreno eu prefiro não meter a minha colher por causa da minha adoração quase mediúnica pela Gal Costa (e isso já rendeu pano pra manga em discussões com colegas meus) e sua morte abrupta a transformou em mito, reconhecida até por artistas do quilate da cantora Bjork.

Ela produziu sete álbuns ao vivo, 21 de estúdio, 33 compactos, porém mais do que isso, criou um legado inestimável para a nossa historia cultural. Com seu canto cênico e apresentações por vezes intimistas, introduziu um estilo de apresentação. Tanto que até hoje é regravada e reverenciada por novas vozes femininas da nossa música, que não perdem a chance de beber nessa fonte cada vez mais moderna e necessária. 

Seus filhos, João Marcelo Bôscoli, Pedro Mariano e Maria Rita, continuam por aí, todos eles - como a mãe - atrelados à música. Para muitos, são sua perpetuidade. Pena que as pessoas que vendem música no Brasil hoje em dia prefiram perder tanto tempo com tanta coisa descartável, de baixo calão. E isso, infelizmente, os apreciadores de boa música não podem fazer nada para corrigir, pois estão nas mãos de interesseiros com um extremo mau gosto que só visam o lucro fácil. 

Logo, só nos resta recorrer aos arquivos, às lembranças, aos vídeos do you tube e alguns poucos serviços de streaming que ainda se interessam por fazer ecoar a voz, o sentimento e o talento de uma das figuras mais icônicas da nossa música. Saudades, Elis! (e olha que eu nem posso dizer que pertenci a sua geração, pois nasci em 1976, mas ainda assim sou seu fã de graça).


Sem comentários:

Enviar um comentário