terça-feira, 25 de janeiro de 2022

The black Woodstock


1969 não foi um ano nada fácil para os Estados Unidos. E quando você pertence a raça negra, então... Já viu! Guerra do Vietnã, segregação, os irmãos Kennedy mortos, Malcolm X e Martin Luther King assassinados, exploração de todos os lados, chacinas, desrespeito, violência e mais violência. Tudo isso na Grande Nação (como eles bem gostam de se autodenominar). 

E em meio a tanta tragédia e caos, como fazer para encontrar paz e esperança por dias melhores? Mais do que isso: onde encontrar um lugar que fale a minha língua, respeite a minha cultura, quem sou, minhas escolhas, meu direito a ser diferente? Eis que nesse momento entra em cena o cantor Tony Lawrence e organiza, entre os dias 29 de junho e 24 de agosto, no Mount Morris Park, o Festival cultural do Harlem, e oferece ao público o melhor da música negra. 

E dessa experiência, que ficou engavetada dentro de um galpão por cinco décadas, sem uso aparente, nasceu o extraordinário documentário Summer of Soul ...ou, Quando a revolução não pode ser televisionada, do diretor Questlove. 

Agora imaginem - e eu disse: só imaginem - poder sair da sua casa para assistir lendas como Stevie Wonder, B. B. King, Nina Simone, Gladys Knight, Sly and the family stone, entre outras feras, sem precisar pagar um centavo sequer. Parece um grande delírio ou conto da carochinha, não é mesmo? Pois aconteceu e por interesses meramente políticos e ideológicos, ficou esquecido da memória do povo que lá esteve por tantos anos. Motivo: o velho e arcaico racismo (e tem gente que até hoje, em pleno século XXI, diz que ele não existe ou é velado).

O simples fato de Questlove ter trazido à tona todas essas imagens fortes e nostálgicas já vale por um século dos EUA, pois trata-se também da história do mundo, sendo apagada de forma vil e covarde. Mas quando nos deparamos com os depoimentos de quem lá esteve, testemunhou aquilo tudo e, ao longo dos anos, foi induzido a acreditar que tudo aquilo não passava de uma ilusão, de uma lenda urbana, engrandece ainda mais a importância deste longa - que desde já figura na minha lista de melhores coisas que eu pude ver no ano que acabou. 

Depoimentos altamente políticos e controversos como o do pastor e ativista Jesse Jackson, inflamando a plateia cansada de tantas injustiças; a apresentação meteórica de Steve Wonder ao teclado, levando os fãs ao delírio; as canções politizadas e afiadíssimas de Nina Simone, expondo o racha no qual o país vivia naqueles tempos; instrumentistas em transe dedilhando suas guitarras e tremelicando seus corpos numa catarse que nada deve à Jimi Hendrix no Monterey Pop. 

E isso tudo para ficar apenas numa singela amostra do que rolou naquelas seis semanas que mais pareceram uma eternidade. Desde já, adianto: quem quiser saber mais, só vendo o documentário cuja única palavra que o define é sublime.  

O Festival cultural do Harlem aconteceu na mesma época do Festival de Woodstock e não à toa acabou eclipsado pelo seu primo rico e famoso. Embora todas as apresentações tenham sido gravadas, conforme relatado por um dos produtores, ninguém se interessou em transmitir a festa negra. Teve até gente recalcada dizendo que tudo aquilo havia sido criado como um grande cala boca, para que o povo negro, revoltado, não pusesse fogo no país todo. Enfim... A demagogia ou polarização nossa de todo dia!

Há um raciocínio que costumo fazer - e que deixa muitos de meus colegas hipócritas e falsos burgueses putos! - acerca da minha descrença sobre o capitalismo que cai como uma luva para entender o legado dessa produção magnífica. O capitalismo, em sua forma mais pura e nefanda, adora encontrar maneiras de destruir nossa memória e nossa capacidade de construir narrativas. Ele sobrevive de nossa ignorância e de nossa tendência a sermos escravos, obedientes, sem quaisquer perspectivas de vida. 

Pois foi exatamente isso que Questlove mostrou aqui: durante 50 anos o país que se vende como a nação mais poderosa do planeta escondeu de sua própria população um dos maiores manifestos já realizados pela comunidade negra. E tudo isso por um simples motivo para lá de mesquinho: a covardia étnica. Fossem os artistas que se apresentaram ali Frank Sinatra, Tony Bennett, Elton John e companhia limitada, e essas imagens não estariam amarfanhadas em meio a toneladas de poeira. Isso é triste e diabólico, eu sei...

E, infelizmente, também diz muito sobre a terra do Tio Sam, famosa por sua hipocrisia de longa data disfarçada de patriotismo. 


Sem comentários:

Enviar um comentário