quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

No que ele pensa tanto?


É comum nos depararmos a todo momento, dentro da indústria cinematográfica ou do segmento teatral, com a ideia de versões. Quem já adaptou Shakespeare para os palcos ou filmou sobre a segunda guerra mundial sabe do que eu estou falando. Todo grande artista do cinema ou do teatro que se preze já pensou (ou sonhou) em fazer a sua versão sobre um clássico, dar a sua interpretação sobre os fatos. E elas existem aos montes. 

Contudo, quando nos referimos às artes visuais não nos damos conta disso, pelo menos à primeira vista. Quando pensamos na Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, ela é sempre única. Aquela exposta no Louvre. Não existe outra. O mesmo se refere à Guernica, tela seminal de Picasso. Os grandes trabalhos dos mestres da pintura, da escultura, das artes plásticas em geral, precisam lidar com essa espécie de "ineditismo". Aquele raciocínio na linha "não veremos outra como esta". 

Só que às vezes esquecemos - ou não sabemos mesmo, por pura ignorância - que a obra famosa, aquela que decidimos idolatrar é parte de um contexto ainda maior e existem várias versões dela espalhadas ao redor do mundo. E preferimos fazer vista grossa, por acreditar que isso diminui a sua importância, genialidade ou pioneirismo.

O pensador, escultura de Auguste Rodin, é meio que um contrassenso nesse sentido. A figura do homem sentado numa pedra com a cabeça encostada em um dos braços que entrou para a história das artes plásticas, é desdobramento de um trabalho ainda mais gigantesco e acabou sobrevivendo e adquirindo luz própria de uma maneira um tanto quanto curiosa. São muitas as teorias acerca do trabalho de Rodin e é provável que elas venham a continuar existindo no século XXI. O que só abrilhanta ainda mais o seu legado, pois o grande mérito da arte é justamente esse: suscitar debates e opiniões as mais diversas.

Rodin foi um gênio, em muitos aspectos, incompreendido ou não valorizado como realmente deveria. Nasceu em 12 de novembro de 1840, em Paris, e aos míseros 13 anos já demonstrava seu talento para o desenho. Embora tenha demonstrado interesse por uma formação acadêmica, tradicional, acabou recusado três vezes pela Escola de Belas Artes de Paris, o que o levou a buscar o autodidatismo. E cá entre nós, fez bem, pois parece que isso lhe acentuou a capacidade criativa, mesmo no começo da carreira, quando produzia peças decorativas. 

O pensador, sua peça mais famosa, nasce numa versão menor - de meros 70 cm - como parte de O portal do inferno (trabalho que o consumiu por inacreditáveis 37 anos) e ficava localizado na parte de cima da criação, numa espécie de meditação não só sobre o inferno, como também sobre a própria obra em si. Era chamado inicialmente de O poeta e tinha como referência direta, dizem alguns estudiosos, o poeta Dante Allighieri, criador de A Divina Comédia. Porém, há quem prefira acreditar, que ela faça referência ao próprio Rodin, questionando o seu trabalho ou mesmo à Adão, figura bíblica, e as decisões que teve de tomar no paraíso.

O fato concreto é que O poeta (transformado então em O pensador, por conta de uma influência relacionada à Michelangelo) ganhou destaque, virou peça autônoma em 1888 e teve várias versões (a mais famosa em bronze), que estão espalhadas em diferentes países. A ideia do homem que reflete sobre o mundo e a sociedade em que vive atraiu mais adeptos do que a sua mera presença observando o inferno, uma terra de perdição e lamento. Em outras palavras: ele ganhou corpo e uma base crítica, que se propôs a estudá-lo, bem como questioná-lo. 

E trata-se de uma obra de extrema exuberância, de traços firmes, músculos bem definidos, extremamente expressiva. E porque isso? Porque o artista desejava que a escultura pensasse não somente com o cérebro, mas com todo o corpo, fazendo do conjunto da obra uma reflexão em si mesmo. É, na minha modesta opinião, um dos trabalhos mais perfeccionistas de toda a história da arte. 

Entre os que se propuseram estudar a escultura, são muitas as interpretações sobre o papel reflexivo da obra: tem quem o veja como um juiz, enquanto outros prefiram acreditar que ele seria um condenado, bem como os outros habitantes do reino das trevas. Eu conheci tempos atrás, dentro do Centro Cultural da Justiça Federal na Cinelândia, um professor de história da arte que acreditava piamente que O pensador refletia sobre a miséria do mundo, o que fizemos de errado com ele. Daí sua expressão triste, amargurada. Lembro de ter ficado meses pensando nessa possibilidade e confesso que até hoje não a descartei totalmente. Para vocês perceberem a contemporaneidade do trabalho, que não envelhece nunca. 

São muitas as possibilidades de vermos uma das versões de O pensador com nossos próprios olhos: em Paris há estátuas no Museu Rodin; em frente ao Pantheon; em Meudon, no jardim da casa do artista e sobre o túmulo do escultor. Já fora da França, temos uma versão disposta no Instituto Ricardo Brennand, em Pernambuco, feita utilizando o molde original e posicionada na galeria, com acesso restrito, e também uma nos jardins do curso de filosofia da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Vai depender da sua vontade e disponibilidade financeira. 

Ao fim desse arremedo de análise crítica, o que nos sobra é a certeza da criação de um legado histórico incomensurável, com uma vasta fortuna crítica sobre ele, produzido por um artista que se fez por conta própria, contrariando aqueles que esnobaram o seu talento e/ou capacidade. E ainda assim vai ter gente burra nesse país achando que arte não serve pra absolutamente nada. Não é à toa que a escultura tem tanto a pensar até hoje e nenhuma resposta aparente... 


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