sábado, 8 de janeiro de 2022

Orfeu negro


Nem bem terminei de postar o obituário que eu escrevi sobre o diretor Peter Bogdanovich nos grupos aos quais participo e a internet me despeja outra bomba: o fantástico ator Sidney Poitier também faleceu, aos 94 anos. A notícia é dada por Fred Mitchell, Ministro das Relações Exteriores das Bahamas, país de origem de Sidney (ele tinha dupla cidadania, pois nasceu em Miami, durante uma viagem dos pais aos Estados Unidos). 

E então eu penso: e agora? Por onde eu começo este texto? Dizer que Poitier foi o primeiro ator negro a ganhar o Oscar é óbvio demais, a quintessência do clichê. Todo mundo que ama cinema tem a obrigação de saber disso. É preciso mais e o ator, com sua carreira prolixa dentro e fora das telas, possui esse mais com louvor.

Sidney lutou contra a pobreza, o analfabetismo e o preconceito até se tornar um dos primeiros atores negros a ser reconhecido e aceito em papéis importantes pelo grande público. Entre O ódio é cego, de Joseph L. Mankiewicz (1950) e Construindo um sonho, de Gregg Champion (2001), foram mais de 50 títulos, muitos deles de um arrebatador sucesso. E não à toa ele é reconhecido pela comunidade negra e os atores das gerações posteriores como um pioneiro. 

Lembro da apresentadora de tv e produtora de cinema Oprah Winfrey, quando ganhou o Cecil B. DeMille durante a entrega do Globo de Ouro em 2018, falando da emoção da mãe dela ao ver Sidney faturando o Oscar de melhor ator em 1964 por sua interpretação em Uma voz nas sombras, de Ralph Nelson, e fiquei pensando na mesma hora o que aquilo representava para uma pessoa da etnia dela. Certamente, muito mais do que eu era capaz de imaginar. Entretanto, quando comecei a assistir Sidney em cena eu tive uma certeza: ele foi único em seu tempo - e até mesmo hoje. E desse dia em diante passei meio que a vê-lo como o verdadeiro  Orfeu negro do cinema  (muito mais do que aquele filme meia-boca do Marcel Camus, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes) 

De toda sua carreira gloriosa, um ano o define com folga: 1967. Embora tenha começado a despontar em 1959, com Acorrentados, de Stanley Kramer, que lhe rendeu sua primeira indicação ao Oscar, foi oito anos depois que fez seu nome de vez em três produções que marcaram época: Adivinhe que vem para jantar, de Stanley Kramer (que fala de racismo velado e mostra, de maneira ousada para a época, um noivado inter-racial), No calor da noite, de Norman Jewison (filme que até hoje me faz pensar na reação que o público teve no cinema quando viu o detetive interpretado por Poitier dar um tapa na cara do xerife racista da cidade, algo até então nunca visto nas telas) e Ao mestre, com carinho, de James Clavell (que traz o ator na pele de um professor de métodos nada usuais, tentando incentivar um grupo de alunos de uma instituição escolar cheia de desajustados). 

Porém, eu preciso fazer um aparte para exaltar aquele que é o meu filme preferido com ele: Sementes da violência, de Richard Brooks (1955). Aqui, num show à parte e ao som de um rock alucinante, Poitier enfrenta o professor vivido por Glenn Ford, designado para lecionar num colégio barra-pesada. Não pretendo dar spoilers, pois quero que os leitores deste artigo procurem pelo filme, que é um marco da era de ouro de hollywood. Mas tenham uma certeza: é um tapa na cara, no bom sentido.

Poitier também enveredou pela direção em nove longas. Os que mais se destacaram foram o western Um por Deus, outro pelo Diabo (1972), no qual também atua ao lado do amigo e cantor Harry Belafonte e a comédia Loucos de dar nó (1980), com a dupla Gene Wilder e Richard Pryor. Sua última incursão atrás das câmeras foi em 1990 com Papai fantasma, que traz o comediante Bill Cosby na pele de um espírito para lá de atrapalhado. 

A ascensão de Sidney Poitier dentro da indústria de cinema hollywoodiana coincide com o avanço do movimento pelos direitos civis nos EUA nos anos 1960. Tanto que seus personagens passam a refletir o pacifismo e a integração exigida pelo movimento na época. O ator também soube recusar muitos papeis, pois não queria se ver associado a imagem do marginal, do criminoso. E por muitos anos, embora fosse naquela época um dos cinco atores mais bem pagos da indústria, foi sempre boicotado quando o assunto era ser o par romântico de alguém nos filmes. Daí a importância de Adivinhe quem vem para jantar dentro da sua cinematografia.

Fora das telas, Sidney engajou-se em várias causas, chegando a receber por sua constante atuação a Medalha Presidencial da Liberdade pelo presidente Obama, em 2009. Além disso, também foi Embaixador das Bahamas no Japão entre os anos de 1997 e 2007. 

De seus últimos longas antes da aposentadoria - ou seja: antes de ganhar em 2002 um Oscar pelo conjunto da obra - gosto muito de O chacal, de Michael Caton-Jones (1997), em que persegue um assassino brutal pelos EUA ao lado de Richard Gere, Atirando para matar, de Roger Spottiswoode e Espiões sem rosto, de Richard Benjamim (ambos de 1988), no qual atua no segundo ao lado da então revelação hollywoodiana do período, o ator River Phoenix.

E mesmo depois de ter visto tudo isso, admito que ainda há um parte considerável de sua obra que eu ainda não conheço e que não é tão fácil assim de encontrar nem no mercado, nem na internet. Bem que eles podiam colocar num desses serviços de streaming uma série de películas antigas com o ator, numa espécie de homenagem ao seu legado. Sei lá... Só uma sugestão de um cinéfilo enxerido que ama o bom cinema. Vai que alguém lê isso aqui!

No mais: fica com Deus, Sidney! Por aqui embaixo você disse a que veio - e com folga.     


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