domingo, 16 de janeiro de 2022

A miséria humana

 


É mais fácil o mundo como o conhecemos chegar à sua extinção do que conseguirmos realmente entender o que é a sociedade contemporânea". A frase é de um sociólogo que palestrou no Congresso Internacional do Medo, que eu fui assistir no Teatro Maison de France, no centro do RJ, anos atrás. E quando ele proferiu essas exatas palavras foi extremamente aplaudido pela plateia. De fato, a humanidade como a conhecemos é a grande incógnita do mundo. 

Levando-se em consideração o triste fato de que somos criados, desde pequenos, a viver imersos em mentiras ideologicamente fabricadas, o que sobra de valor na construção disso que chamamos de ser humano? Honestamente... Muito pouco ou quase nada, como bem diria meu pai, um dos homens mais críticos que eu conheci em toda a minha vida. Contudo, é preciso seguir em frente. É isso que diz o senso comum que move o mundo e suas controvérsias. E, de vez em quando, aguardar um grande desabafo de alguém lúcido (e corajoso) o suficiente para comprar essa briga.

Um desses é certamente o cineasta pernambucano Cláudio Assis, um típico exemplar do homem arretado, como costumam se referir aos corajosos o povo nordestino. Vide o que ele fez em seu longa de estreia Amarelo Manga, que chega aos 20 anos de existência neste 2022 confuso, perdido e devastador sem perder um segundo sequer de sua lucidez e, principalmente, sua força narrativa. 

Cláudio construiu - ao lado do seu magnífico roteirista, Hilton Lacerda - um magistral caleidoscópio da sociedade frágil, infame e vil na qual sobrevivemos todo santo dia. E é dos encontros e duelos entre esses personagens que nos daremos conta do quanto a civilização procura diariamente a sua própria exclusão, mentira, autodestruição, hipocrisia, entre outros substantivos ainda mais torpes. 

Entre o decadente Texas Hotel, praticamente caindo aos pedaços de tão velho - e eu falei velho mesmo, não vintage -, o Bar Avenida, administrado pela sensual e poderosa Lígia (Leona Cavalli), repleto de bebuns, boêmios e misóginos de carteirinha e o matadouro onde cabeças de gado são sacrificadas para alimentar o apetite voraz de uma sociedade cada dia mais faminta, vamos nos deparando a conta gotas com a verdadeira silhueta da humanidade, que teima em rotular suas catástrofes e cafajestisces de "o lado B da vida". Tudo para que não enxerguemos a realidade como ela realmente é. 

A dona de bar que não aguenta mais a sua vidinha mais ou menos e não consegue vislumbrar uma mudança na sua rotina desgastante; O homossexual faz-tudo do hotel, cujo único objetivo na vida é ter para si o amado, o açougueiro grosseirão (Chico Diaz), casado com uma evangélica raiz e com uma amante a tiracolo; O estereótipo máximo do trambiqueiro, canalha, machista (interpretação magistral de Jonas Bloch), um homem fascinado pelo seu próprio desprezo pela morte; O padre católico falido cujo únicos fiéis que ainda frequentam sua paróquia são os cães de rua, vadios, que passeiam pelas ruas do Recife à procura de comida. São apenas algumas amostras dessa grande alcateia amoral que virou o Brasil desde aquela época (e que duas décadas depois só fez piorar). 

Como pano de fundo - mas na verdade, um importante personagem para a trama - a própria Recife, com seus trabalhadores sofridos, seus sobreviventes, suas ruas destruídas, rachadas, arrebentadas, seja pela mão do tempo ou do próprio homem, esse predador notório que a tudo destrói com uma imensa facilidade e ainda tem a cara de pau de dizer que "não é bem assim, não!". 

A cada take, plano ou ângulo filmado de cima - um ângulo definitivamente intrusivo, de quem tem a clara intenção de bisbilhotar o outro -, percebemos a degradação desse bicho homem sórdido, cada vez mais voltado para seus próprios prazeres e interesses. E o país nisso? Que se dane! Vivemos no Brasil do "eu não ganho pra isso", "farinha pouca, meu pirão primeiro", "quando eu ganhar na mega-sena eu dou um jeito na minha vida", "bom mesmo é ser funcionário público e ter algum garantido no final do mês" entre outras pérolas desse nosso Febeapá nacional. Você não conhece a obra do Stanislaw Ponte Preta? Então você tá mais fodido do que eu!

Há algo na malícia, no deboche, no sarcasmo vivo do diretor que me fez vê-lo durante um tempo como uma espécie de Tarantino do agreste (mas me refiro ao Tarantino de Cães de aluguel e Pulp Fiction, não o de seus últimos filmes). O discurso seco, feroz, o dedo na cara provocativo, as frases poderosas e atualíssimas - "O pudor é a forma mais inteligente de perversão", "O ser humano é estômago e sexo" - e a correlação entre a vida cotidiana e amarelo pálido, da hepatite, do pus, da covardia diária, das feridas abertas, da falta de perspectivas sociais, são seus cartões de visita. 

Tudo isso à serviço da construção da miséria humana. Sim, porque ela é construída paulatinamente, se desdobra em inúmeras nuances e formatos, todos dotados da sua parcela óbvia de mau caratismo latente. Ao fim do longa, a então religiosa, desmascarada pela vida, entra num salão de cabeleireiro e pede que mude seu visual, agora, o quanto antes. Ela, a politicamente correta, também cansou. Cansou de esperar o amanhã, a vida eterna, o paraíso. Entendeu que a existência é bem mais cruel e macabra do que um mero sonho ou delírio baseado em dogmas. 

E já que o mundo não favorece o homem, que ele busque o que deseja a qualquer custo. Nem que seja na marra, ilegalmente, de forma injusta. Afinal de contas, que diferença vai fazer mesmo? Nós destruímos o que havia de melhor e faz tempo. Que Deus ainda possa ter piedade de nós!


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