sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

A mulher do fim do mundo


Tem artista medíocre, que não passa de mero gravador de cd, mero replicador de playback, que só grita, pula e mostra a bunda; tem artista que é luta até dizer chega e não consegue chegar aonde realmente quer porque o mercado fonográfico não dá a mínima, só sabe perder tempo com vaidade e propaganda vazia e tem artista que é aquela força indescritível, que rompe barreiras, enfrenta desacatos, cai e levanta, não desiste, enfrenta e quando chega a sua hora de ir embora, você sabe lá no fundo, bem lá no fundo, que ele (ou ela) vai deixar saudade, não estava na hora, nunca está na hora.

Elza Soares, que faleceu ontem em casa, no Rio de Janeiro, de causas naturais, aos 91 anos, certamente fazia parte deste último grupo. Teve muita gente recalcada que não gostava dela e a culpou de tanta coisa e não é agora que vai mudar de opinião. Mas que se danem eles, pois a cantora que foi eleita a voz do milênio, disse tudo o que tinha pra dizer, encarou de frente seus demônios, deu um tapa na cara do conservadorismo e realizou o seu maior sonho: cantou até o fim. E são poucos os que conseguem realizar isso nesse país injusto e desigual. Só nos resta chorar e, principalmente, lembrar do seu legado. 

A menina que casou com apenas 13 anos, numa união arranjada por seu pai e viu seus dois primeiros filhos morrerem ainda recém-nascidos, vítimas de desnutrição, já percebia ali o quanto sua vida seria uma saga dolorosa, dessas de encarar um leão por dia. Mas acham que ela se acovardou? Longe disso. Transformou sua vida numa jornada apoteótica, intensa, e emocionou o mundo com sua voz, sua força de vontade e sua determinação. Em poucas palavras: Elza era um caso sério. E tive a nítida sensação disso ao ouvir seguidamente vários de seus discos no spotify, durante horas após o anúncio de sua morte. 

Elza Gomes da Conceição começa a mostrar a que veio na MPB no final dos anos 1950 como parte da cena do Sambalanço com o disco Se acaso você chegasse, em 1959. Mas se perguntassem a ela nos anos 1960 a quem ela devia sua entrada nesse mundo espinhoso ela certamente citaria dois nomes importantíssimos para a sua carreira: o cantor Miltinho, com quem gravou vários álbuns, e o baterista Wilson das neves. Sem eles, ela provavelmente estaria tentando até agora. Ainda mais sendo mulher, negra e pobre num dos países mais preconceituosos do mundo. Precisou se impor - e muito!

Prova viva disso é que quando perguntada por Ary Barroso, num programa de calouros do qual participou, de que planeta ela vinha, respondeu na lata: "Do mesmo planeta que você, seu Ary. Eu venho do Planeta fome", título de um dos seus últimos trabalhos.

É fundamental dividir a carreira de Elza em dois momentos: o primeiro é o período do samba, agregando as décadas de 1960 e 1970, com releituras extraordinárias de clássicos do gênero da lavra de Noel Rosa, Ataulfo Alves, Dorival Caymmi, Lupicínio Rodrigues, Zé Keti, Candeia e outras feras. E o segundo a partir dos anos 2000, em que insere no seu repertório elementos do hip-hop, do funk e da música eletrônica. E seja lá por que caminho você decida começar a conhecer a cantora, saiba desde já que ficará deslumbrado. 

Um dica pessoal e definitiva: ouça os discos ao vivo que Elza gravou. Vê-la no palco era um deleite à parte e o que se percebe ouvindo suas apresentações é que ela sempre entrega tudo de si e ainda mais um pouco. Ela era dessas: nunca se bastava no exercício do seu ofício. 

Ela também passou por um tempo de vacas magras e não me refiro ao caso explosivo, cheio de revezes, tratado como escandaloso pela mídia, que teve com o jogador de futebol Garrincha (com quem viveu de 1966 a 1982) ou a perda do filho Garrinchinha, aos 9 anos, num acidente de carro, mas do ostracismo musical que viveu nos anos 1980, quando ninguém queria gravá-la, pensando até em desistir da carreira. Acabou salva por Caetano Veloso, com quem gravou Língua e viu a retomada de sua carreira acontecer em meio a uma nova geração de artistas, admiradores do seu talento e sua bossa negra. 

Sua marca registrada e inconfundível era o scating, que fazia com que sua voz ganhasse uma sonoridade diferenciada, gutural, única. No programa Conversa com Bial ela disse que a característica guardava semelhanças com o que o cantor Louis Armstrong fazia com a sua voz e que a cantora Ella Fitzgerald também era adepta do estilo. Quando viajou para o exterior, chegou a ser vista como uma imitadora do mestre por trás de "What a wonderful world". Mal sabiam eles, os gringos, que a luz de Elza era própria e potentíssima. 

Além dos artistas aqui citados acima, Elza também cantou Cazuza, Chico Buarque, Martinho da Vila, Assis Valente, Jorge Ben, Wilson Simonal, Tito Madi, Tom Jobim, Marcos Valle, Lulu Santos, Luiz Melodia, Gonzaguinha... É mais fácil perguntar quem ela não gravou. Entre os muitos sucessos de longa data, "Mulata assanhada", "Palhaçada", "O meu guri", "Beija-me", "Sal e pimenta", "Diz que fui por aí", "Gamação", "Bom dia, Portela", "Malandro" e outras dezenas. 

Elza Soares foi a mulher do fim do mundo (nome de seu álbum homônimo, realizado em 2015 e verdadeira reviravolta em sua carreira); falou que Deus era mulher, provocando a fúria dos conservadores religiosos; alardeou aos quatro ventos que "a carne mais barata do mercado é a carne negra", muito antes dos recentes assassinatos em massa de jovens negros em favelas. O racismo não derrubou essa mulher, o machismo não derrubou essa mulher. Virou enredo da escola de samba Mocidade, virou Biografia - sublime, por sinal! - escrita pelo jornalista Zeca Camargo, virou personagem avassaladora no documentário My name is now, de Elizabete Martins Campos. E como bem disse José Louzeiro, num outro trabalho literário sobre ela, "cantou para não enlouquecer". Pois a única coisa que ela queria era "cantar, cantar até o fim. Me deixem cantar". E assim o fez.     

O que dizer mais dessa mulher de fibra, que não suportava rótulos, acompanhou o seu tempo, não admitia ficar parada, na pista, e deu com elegância a segunda face a todos que quiseram lhe pôr no chão? Só o meu muito obrigado. E fica com Deus, Elza! Se tem alguém que merece estar com Ele agora, é você.

P.S: eu sei que o artigo ficou grande, mas em meio ao 34 discos gravados, não custa nada oferecer um kit básico para você, leitor, ouvir, curtir, sentir e delirar ao som de Elza Soares. É o mínimo que eu posso fazer.

O samba é Elza Soares (1961)

Sambossa (1963)

Na roda do samba (1964) 

O máximo em samba (1967)

Sangue, suor e raça (1972) ao lado de Roberto Ribeiro

Elza pede passagem (1972)

Do cóccix até o pescoço (2002)


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