terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Aquela a que chamavam amaldiçoada


Dizem que 2022 chegou. Que seja. Mesmo que estivéssemos em 2030, 2040, 2100, ainda assim uma cultura não muda nesse país nem no mundo: a ideia fixa de que a mulher precisa estar abaixo do homem ou viver dentro de uma caixa, sem direito a fala ou espaço. E isso é triste, continua sendo triste. 

Contudo, ao longo da história, milhares de mulheres decidiram não seguir essa regra infame e foram a luta, peitaram o sistema, escolheram não se acovardar diante do machismo. E a dramaturga Consuelo de Castro certamente está entre elas. Vide o espetacular Medeia que escreveu.

Na verdade ela reescreveu, em 1997, o mito grego sob a ótica da personagem feminina e o chamou de Memórias do Mar Aberto – Medeia conta a sua história. E desde já adianto: ela atualizou a trama de uma maneira tão forte e destemida, que me faz ter fé no futuro (embora a civilização adore me desmentir de tempos em tempos).    

Medeia - vivida de forma brilhante pela atriz Bete Coelho - é Deusa, guerreira, imortal, amante e mãe. Apaixonada por Jasão (Flávio Rocha), faz de tudo por seu homem e acaba traída por ele, tanto politicamente quanto na cama. Ele se envolve sexualmente com Glauce (Luiza Curvo), filha de Creonte (Roberto Audio), com quem irá se casar, pois tem interesse no privilégio que isso trará para sua carreira, mas discorda do destino que o rei pretende dar a sua ex-mulher, mãe de seus filhos, e entra em conflito com ele, chegando a ameaçá-lo de se bandear para o lado do inimigo. 

Detalhe importantíssimo: entre as muitas perdas sofridas, a pior delas é a morte de seu irmão, Apsirto (Matheus Campos), a quem o marido acusa de ter sido verdadeiramente o seu único amor dela. 

Magoada, por muitos vista como a amaldiçoada, a mulher que levará a Grécia à ruína, ela decide ir às últimas consequências e se vingar no dia do casamento do ex-marido, pois acredita que é a única forma de retomar a vida junto com os filhos, sua razão de viver depois de tantas tragédias seguidas. Entretanto, para quem conhece esse universo teatral, sabe bem que nem sempre os planos originais chegam a um feliz objetivo. E por isso mesmo essas peças teatrais eram chamadas a seu tempo de tragédias. 

Mais do que o desfecho macabro dessa trama, é possível olhar a Medeia de Consuelo de Castro também sob a ótica do feminismo (um tema que não tem saído de moda no país nos últimos anos, e com todo o direito). Trata-se de uma mulher à frente do seu tempo, que não se envergonha de suas decisões. Talvez de suas escolhas movidas pela paixão; já a decisão de dar a volta por cima, nunca. E nesse mundo de homens inescrupulosos e sedentos pelo poder, ela precisa jogar com as cartas que possui. E elas são, certamente, amargas. 

No quesito parte técnica, vale a pena ressaltar a direção segura de Bete Coelho ao lado de Gabriel Fernandes (também responsável pela maravilhosa fotografia em preto-e-branco que dá o tom soturno necessário à trama) e ao trabalho magnífico de Cássio Brasil, que cuidou da direção de arte, da cenografia e do figurino. Raras vezes vi no teatro nacional um resultado tão esplêndido quanto aqui e é fácil entender porque muitos espectadores chamaram este de o melhor espetáculo do ano que passou. Ele merece essa honraria e com folga!

Até mesmo a canção final, na voz da cantora Tulipa Ruiz - artista que deveria ser mais valorizada em nossas terras, ao invés de perdermos tempo com funkeiras e sertanejos vazios - cai como uma luva para encerrar esta pequena obra-prima, de pouco mais de uma hora de duração. Não sei por quanto tempo mais ela ficará disponível no you tube, por isso desde já aviso: corram enquanto podem. Normalmente coisas boas o site tira logo do ar e você, fã de teatro, certamente não vai querer perder essa experiência por nada. 

E ciente de que eu já disse o suficiente para fazê-los procurar o espetáculo e tirar suas próprias conclusões, só me resta salientar um ponto: esqueçam esse papo chato de sexo frágil - como bem gostam os conservadores e demagogos. Enquanto houverem mulheres como Medeia, haverá espaço para o debate, o enfrentamento, a luta. E nós precisamos mais do que nunca (e muito) disso. Portanto, deixem de ser babacas e se permitam viver fora dessa bolha moral que absorveu uma parte gigantesca da sociedade. Podem ter certeza: ela nunca serviu para nada no final das contas.    


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