sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Histeria atroz


O mundo das artes plásticas é, no mínimo, um tanto irônico. E por vezes, é bom que se diga, eu o considero mórbido. Porém, não vejo a morbidez nesse caso como algo menor, um defeito, um deslize. Pelo contrário. Minha relação com esse mundo das artes volta e meia precisa gerar controvérsia e há uma legítima adoração de minha parte pelo amargor, pela rigidez, pelo exótico, por aquilo que outros podem chamar prematuramente de negativo. 

Em outras palavras: gosto do mórbido como reflexão. Acho-a mais do que justa. E nesse sentido poucos quadros na história mundial das artes plásticas chamaram tanto a minha atenção quanto O grito, de Edvard Munch (1863-1944). 

E é preciso confessar aqui logo de cara: minha relação com a pintura não começa exatamente com o quadro em si. E sim com uma imagem que, na minha cabeça, sempre fez alusão à pintura. Falo da imagem que vejo do homem gritando no filme Pink Floyd: the wall, do diretor de cinema Alan Parker. E desde já adianto: se não há nenhuma relação entre filme e pintura, então eu cheguei até esta adoração e por conseguinte este texto por mera coincidência e nada mais. 

A cultura pop nos últimos anos fez uma correlação entre O grito, de Munch, e a máscara do antagonista da série de filmes de suspense Pânico. Contudo, não gosto dessa referência. Acho até que ela diminui o trabalho do pintor. 

O grito faz parte de uma série de trabalhos de Munch que ficou conhecida como A frisa da vida (ou um poema sobre o amor, a vida e a morte). E ele expunha seus quadros à ação da neve e da chuva, com o intuito de perder um pouco o controle do resultado final plástico. Em suma, um visionário de sua própria era. Detalhe: enganam-se aqueles que pensam existir apenas uma versão da tela. Só de litogravuras - que serviam de base para a criação - ele imprimiu 45, sendo que algumas foram coloridas à mão. 

Muitos estudiosos interpretam a reação do personagem na tela - o grito em si - como fruto da ansiedade daqueles tempos ou do desespero pessoal do autor. E não estão completamente errados, não! 

E, além disso, acredito piamente que esse sentimento do quadro perdura até os dias de hoje. Digo mais: tenho minhas dúvidas se o autor não estaria se sentindo ainda pior nesse século XXI no qual estamos tendo de encarar muitas das piores resoluções humanas de toda a nossa história. Ou seja, vivemos na prática uma espécie de histeria atroz (e vejo a tela de Munch gritando também sobre isso!).

Quando tiverem um tempo livre, procurem pela versão online do quadro na internet. Diferentemente da exatidão pintada por Goya e Leonardo da Vinci, a obra de Munch tem imagens distorcidas, já vi gente chamando até de "quase um borrão" e isso é proposital. Isso dialoga abertamente com o momento que o pintor vinha passando. 

Ele parece esmiuçar o desespero de forma nítida, sem fingir sentimentos. 

E nesse momento me pego refletindo sobre aqueles tempos amargos, sem a comodidade oferecida pela tecnologia (que tanto tem lobotomizado as gerações atuais!), sobre a dificuldade de criar em qualquer esfera, não somente a pintura. Era uma época em que, muitas vezes, artistas eram sinônimo de demoníacos, malditos. Portanto, qualquer obra artística, mais do que a ótica da beleza, do entretenimento, do gerar prazer aos outros, era preciso ser enxergada como um ato de sobrevivência. 

E como sobreviver hoje em dia após anos e anos de artistas fundamentais como Munch, quando tudo parece tão vazio, tão raso de significado, tão fácil para uma minoria elitista cada vez mais covarde e blasé? 

A meu ver, Munch elevou tanto o padrão do seu tempo que acabou por nos tornar acomodados em excesso por medo de tentar atingi-lo ou entendê-lo. E isso é muito ruim. Entretanto, ele faz algo também tão pessoal, tão acima da média, que me parece quase obrigatório estudar a vida e a obra de homens fora de série como ele. 

Para isso servem (ou deveriam servir, pelo menos) as artes. O problema é a falta de curiosidade do mundo contemporâneo, cada vez mais apegado ao óbvio, ao mais do mesmo. E não é à toa que a tela está gritando até hoje! 

P.S atrasado: mais de duas semanas depois de escrever este artigo leio numa matéria do Estado de São Paulo que pesquisadores tentam explicar para os fãs de artes plásticas porque O grito está desbotando, perdendo suas cores originais. E me pego pensando: não será isso proposital numa época em que tudo parece ter perdido completamente o seu sentido original? Talvez seu autor esteja cansado de gritar em vão e prefira desaparecer. Ou talvez seja apenas eu, este projeto de autor, vendo demais e enlouquecendo novamente. 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Intoxicados ao extremo


Neguem o quanto quiser os moralistas de plantão, mas a cruel verdade é que nos tornamos uma sociedade intoxicada. Por absolutamente tudo. Buscamos na realidade enfadonha do dia-a-dia razões para acreditar que o mundo pode ser perfeito, acima de qualquer suspeita. E há até quem viva de prometer isso aos outros à cifras milionárias (e como vive bem essa gente que engana os outros!). Nos acostumamos a fingir que não há razões para acreditar em derrotas, em perda de tempo, que tudo pode ser lindo, irretocável, para sempre. E mesmo os depressivos escondem de si mesmo e dos outros a triste realidade que são suas vidas miseráveis, pela metade, mesquinhando afetos. 

E após terminar de assistir o fantástico Midsommar: o mal não espera a noite, de Ari Aster, só posso agradecer pelo fato de não ser o único disposto a falar sobre isso e sobre como o século XXI vem transformando seres humanos em máquinas insensíveis. 

A história de Dani (Florence Pugh, fantástica) é sintomática para entendermos o que a sociedade se tornou nas últimas décadas. Ela chegou naquele ponto da vida em que nada mais parece fazer sentido. Seu relacionamento amoroso chegou àquele ponto da estrada em que é melhor sair do carro e refazer o trajeto (mas ela adia a decisão o máximo que pode!), mesmo seu convívio com os pais é delicado e ela decidiu se afastar, morar sozinha. Contudo, quando seus genitores falecem num incêndio mórbido, toda sua fortaleza interior rui e ela sente dentro de si que o pior ainda está por vir. 

Diante de um quadro tão funesto, ela vê na possibilidade de viajar com o namorado e seus colegas de faculdade para uma comunidade religiosa chamada Haarga, um pequeno vilarejo no interior da Suécia, uma espécie de fuga. Mais do que isso: um motivo para recomeçar longe de tudo que até então lhe fazia mal. 

O problema, como todas as pessoas que buscam um recomeço, uma vida linda, um emprego dos sonhos, etc, é a eterna mania de idealizarmos o lugar para onde vamos. E quando Dani se depara com as diretrizes e o estilo de vida da comunidade, ela percebe a duras penas que nada - realmente nada - vem fácil na vida. 

E esse é exatamente o grande legado deixado pelo longa: Aster realiza uma interessante alegoria sobre a eterna busca humana por aquilo que, na maioria das vezes, só existe no papel. Pois na prática as regras do jogo são sempre outras. 

Venho percebendo aqui no Brasil de uns dez anos para cá o crescimento de uma indústria do positivismo extremo. As matérias jornalísticas volta e meia chamam a atual sociedade de geração cristal e, honestamente, eles não estão errados. Vivemos em meio à uma humanidade que esconde sofrimentos, varre desavenças e derrotas para debaixo do tapete, para fingir que elas não existem. No entanto, essas mesmas pessoas se esquecem que tudo isso cobrará seu preço mais a frente. 

Os colegas de Christian (Jack Reynor), namorado de Dani, que buscam realizar uma tese sobre a comunidade, também não entendem que a vida não se resume à obtenção de seus sonhos e a realização de seus projetos. Eles simplesmente bloqueiam de suas mentes, de sua torta realidade, o fato de a existência exigir deles uma contrapartida.

Em outras palavras: queremos dos outros, mas não queremos que os outros queiram nada da gente. A eterna mania de nos olharmos como superiores em relação à nossa própria espécie. 

O diretor disse durante a realização do projeto ter alterado o rumo da história por conta do término amargo de um relacionamento amoroso. E a meu ver, saiu engrandecido dessa história toda. Vejo em seu filme sinais claros de amadurecimento (principalmente em comparação ao seu longa anterior, Hereditário, que não me causou grandes impressões na época em que foi lançado) e também de uma pessoa que percebeu, como eu, que a sociedade vem arruinando sua própria história por acreditar num mundo ilusório onde tudo é motivo de festa, vitória e celebração. 

Ao final do filme (e o último take é extraordinário, na medida em que reflete exatamente esse lado egoísta da sociedade, que vê o outro como seu inferior, como alguém que deve "pagar a qualquer custo" por algo que lhe tenha feito) vejo estupefato a consequência dessa intoxicação extrema pela qual estamos passando nas últimas décadas. 

Muito se fala em cura no século XXI. Entretanto, me pergunto quem será o curandeiro nesse mundo onde os próprios doentes escondem suas enfermidades. 

P.S (na verdade, uma pequena sugestão): prestem atenção, fãs de terror, em como as cenas mais horrendas, mais incômodas de todo o filme, são apresentadas ao público com o dia claro, ao contrário do que se vê normalmente no gênero. 

P.S 2: se você já viu A vila, de M. Night Shyamalan, e gostou não vai querer perder esse filme por nada no mundo. 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

O maldito


Às vezes o artista ganha você de cara, por seu talento, por sua capacidade de se reinventar. E às vezes ele chama a sua atenção simplesmente por ser diferente de tudo o que você já viu até então. Zé Caixão, personagem antológico da cinematografia nacional, me ganhou pela segunda opção. E quando vi a notícia de seu falecimento no portal G1 da Rede Globo anteontem eu cheguei à conclusão de que nunca estarei preparado para lidar com a morte daqueles que contribuíram em todos os aspectos para a minha formação cultural. 

Pois é... Faleceu na última quarta-feira (19) o cineasta José Mojica Marins, o eterno Zé do caixão. Ele estava internado desde 28 de janeiro no hospital Sancta Maggiore, em São Paulo, por conta de uma broncopneumonia, e não resistiu. Nos deixou aos 83 anos (muito bem vividos, é bom que se diga!). 

Filho dos artistas circenses Antonio André e Carmen Marins, Mojica demonstrou desde a adolescência um fascínio gigantesco pelo terror, principalmente o escatológico. E viu no gênero a possibilidade de criar um personagem que entraria para a história do nosso audiovisual. Falo de Josefel Zanatas, o agente funerário sádico com roupas pretas, cartola, capa e unhas longas. Durante muitos anos foi visto no país como uma figura satânica. Eu mesmo, tenho na minha família parentes que não gostavam sequer de ver o rosto dele, sempre associando-o a tudo que existe de pior. Eu, contudo, nunca tive essa impressão. Nem do artista, muito menos do indivíduo. Pelo contrário. Sempre o vi como uma figura engraçadíssima (e também um provocador nato). 

Digo isso porque na sua trilogia mais famosa, composta dos longas À meia-noite levarei sua alma (1964), Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967) e O estranho mundo de Zé do Caixão (1968) - que também foi título de uma programa de entrevistas engraçadíssimo que ele realizou durante sete temporadas no Canal Brasil - Mojica utilizou o terror apenas como mote para realizar seu grande desabafo (tem quem chame de denúncia) sobre os mandos e desmandos do período militar. Procurem os filmes. Eles estão repletos de ironia disfarçada de assustador. 

Só que, na verdade, eu conheci Zé do caixão bem depois disso. Eu me lembro dele mesmo pela primeira vez é apresentando o Cine Trash, que exibia filmes de terror na Bandeirantes nos anos 1990 (e quem é da minha geração sabe bem do que eu estou falando!). 

Outro ponto importante: embora tenha feito sua carreira - inclusive internacional, onde era conhecido como Coffin Joe - no gênero terror, Mojica não se limitou a ele exclusivamente. Em suas mais de 40 produções realizadas, fora os 50 longas no qual trabalhou como ator, também enveredou pela aventura, pelo faroeste e até pela pornochanchada (gênero o qual muitos puristas e estudiosos do nosso cinema não gostam de lembrar). E, além de tudo isso, foi um grande influenciador do cinema marginal no Brasil.

Sua ficha no IMDb diz que ele trabalhou efetivamente até 2015 (e olha que ele sofreu um infarto em 2014 que mudou completamente sua rotina). Seu último crédito, Memórias da boca, sobre o cinema da boca do lixo, em São Paulo, que eu não sabia da existência, chegou a me deixar curioso e já estou à procura dele na internet.  

E para quem é completamente leigo e procura um livro de referência sobre o artista, recomendo de olhos fechados Maldito, do jornalista André Barcinski (1998), que já virou até objeto cult em sites de livros usados como o Estante Virtual. Livraço mesmo! 

Faltou dizer alguma coisa sobre esse homem multimídia? Faltou. Ele também foi enredo na escola de samba Unidos da Tijuca em 2011, e veio no último carro da agremiação todo serelepe ao lado da filha e com direito ao apresentador Luís Roberto, emocionado, narrando a passagem desse homem a quem tantos chamaram de controverso, mas que merece todo o meu respeito por ser um visionário da arte. 

Putz! Eu ainda não acredito que nunca mais vai ter Zé do caixão no cinema. É sério mesmo isso ou aquela matéria do G1 era só mais um trote babaca como tantos nesse país que adora brincar com a desgraça dos outros? Não. Infelizmente, é sério mesmo. 

E por causa disso só me resta dizer então "Fica com Deus, Mojica! Você merece!"

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

O dia em que eu não vi os Rolling Stones


Memória é uma coisa engraçada. E essa aqui, especificamente, na verdade nem é uma memória de infância realmente (como costumam ser os textos dessa série), pois nessa ocasião eu já me encontrava com 29 anos. Mas mesmo assim volta e meia vem à tona em minha mente. 

E eu precisei do auxílio do jornalista e apresentador da Rede Globo Zeca Camargo - que volta e meia faz uns vídeos curtos em sua página no facebook - para me lembrar que eu ainda não tinha falado dessa história por aqui. 

Refiro-me ao show da banda de rock Rolling Stones na praia de Copacabana no dia 18 de fevereiro de 2006, um evento que marcou época (e marca até hoje) na vida de milhões de brasileiros. E segundo o público estimado pelas autoridades nacionais, foram mais de 1,3 milhão de pessoas inundando as areias de copa em frente ao Copacabana Palace Hotel. 

Mas o registro em questão aqui é de como eu não consegui ver o show ao vivo, junto com a galera gritando em massa na praia. 

E a grande saga começou ainda dentro do ônibus. Eu morava no Méier nessa ocasião e decidi encarar essa aventura junto com minha mãe e minha irmã. E digo mais: foi minha mãe, no auge dos seus 55 anos, a mais interessada na aventura. Meu pai disse que estávamos perdendo o nosso tempo, que era roubada aquilo, mas nada que ele nos dissesse nos demoveria de nossa decisão.

Pegamos o 457 lotado, os fãs berravam as canções do quarteto enquanto se empurravam emocionados. E a viagem até hoje me pareceu interminável, tamanha a lerdeza do motorista. Contudo, se vocês acham que demorar para chegar ao bairro foi uma luta inglória, pior ainda descobrir que precisávamos saltar do ônibus bem antes da orla. As ruas da zona sul já começavam a ser interditadas para o grande evento. 

Não me lembro ao certo a rua em que descemos, mas de uma coisa eu tenho memória fotográfica: do enxame enlouquecido de pessoas, de todas as etnias, todas querendo ver Mick Jagger, Keith Richards, Ron Wood e Charlie Watts de graça (daquelas façanhas que dificilmente se repetirão na história do país). 

Roqueiros, roqueiros e mais roqueiros. Mulheres lindíssimas. Seres os mais exóticos possíveis. Gente que se achava sósia dos cantores dando pinta de pseudo celebridade. Havia uma mulata - nunca me esqueci dessa mulher - com um cabelo enorme preso a uma espécie de coque, que eu tenho certeza que se ela estivesse com as madeixas soltas elas arrastariam pelo chão. E ela cantava "Sympathy for the devil" a plenos pulmões.  

Minha mãe olhava a todo momento para os lados, procurando minha irmã. Para não perdê-la de vista. Mas quando sentiu o cheiro indistinguível da maconha rolando no ar, vinda de um grupo de motoqueiros na linha Hell's Angels, ela parou no meio da rua (ainda estávamos bem longe da areia da praia) e nos disse: "vai dar merda isso aqui! temos que ir embora o quanto antes". 

Minha irmã, estressada, concordou com ela na mesma hora. Ela odiava tumultos e gente se empurrando (tanto que sempre guardou com desalento a experiência de ter ido certa vez, com minha mãe e minhas tias, ao Cordão da Bola Preta, no centro da cidade). Eu custei um pouco mais a entender a situação, mas houve um momento em que pensei comigo: "na hora da voltar pra casa pode ser tarde demais e aí a tragédia já aconteceu".  

Resultado dessa equação insólita: uma segunda saga para encontrarmos um ônibus e voltarmos para a casa. E quando chegamos em casa, meu pai nos olhou quase às gargalhadas e debochado disse: "eu falei pra vocês! onde tem coisa de graça, tem confusão". 

Frustrado, espero a noite chegar para assistir o show, que foi televisionado pela Rede Globo. Foram duas horas de pedras rolando, "Jumping Jack flash", "It's only rock n' roll", "Honky tonk woman", "Start me up", "Brown sugar" e, claro, o desfecho arrasador, com "(I can't get no) Satisfaction" acompanhado de sacos de pipoca doce e de batatas Ruffles. 

As panorâmicas que exibiam a multidão que tomou a praia deixaram a minha mãe ainda mais assustada e também aliviada por estar em casa. "Quero ver esse povo todo chegar em casa quando o show acabar!", ela disse. E eu acenei com a cabeça em concordância na mesma hora. Acho que até hoje eu não encaro as edições do Rock in Rio por causa dessa experiência caótica. Na boa... Não tenho mais pique, nem idade para isso!

Mas que no fundo, no fundo, eu queria ver os caras ao vivo, ah eu queria! Mas não deu. Ficou pra próxima encarnação, gente.

sábado, 15 de fevereiro de 2020

O efeito bumerangue


Vocês por acaso já viram garotos brincando com bumerangues? Pois eu já. No final dos anos 1990 eu costumava frequentar, aos domingos, um terreno que existe atrás da Cinemateca do MAM, no Aterro do Flamengo. Ali encontrei muita gente jogando frescobol, casais namorando, os fanáticos por aeromodelismo e a garotada que curtia bumerangues. E havia um garoto antipático de nome Rogério que se achava um grande mestre na arte de atirar bumerangues. Mais: ele volta e meia jogava na cara dos outros garotos que seus bumerangues eram importados e, por isso, mais difíceis de jogar. 

Certa ocasião ele atirou seu bumerangue com uma força tão desmedida que quando o objeto regressou na sua direção atingiu em cheio o seu rosto. Várias pessoas ao redor correram para socorrê-lo, chegaram a levá-lo para o pronto-socorro e alguns dos garotos de quem ele debochou chegaram a sussurrar: "bem feito! assim ele para de contar vantagem!". Só tornei a rever Rogério mais uma vez, meses depois, e ele ficou com uma cicatriz feia no supercílio. 

Por que estou contando tudo isso? Porque esta semana enfim consegui assistir Joias brutas, dos irmãos Benny e Josh Safdie, e me peguei refletindo sobre a mesma situação que envolveu o jovem Rogério 20 anos atrás: a daquelas pessoas que querem levar suas vidas até as últimas consequências, sem respeitar ninguém e se esquecem do ciclo natural da vida e do quanto ela é capaz de aprontar para nos pôr no nosso devido lugar.

Joias brutas nos traz a história de Howard Ratner (Adam Sandler, naquela que é talvez a melhor interpretação de sua carreira), o estereótipo clássico do oportunista e picareta profissional. Ele usa sua joalheria como mero disfarce de legitimidade para uma vida de mentiras e armações as mais variadas. Contudo, internamente, ele se encontra falido, às vésperas de um divórcio que ele quer evitar a qualquer custo, e mesmo seus familiares não acreditam 100% em seu juízo de valor. Em outras palavras: é um ser humano que caminha a passos largos rumo ao abismo (e nem se dá conta disso). 

E quando ele acredita ver sua maré de azar ficando para trás com a chegada de um diamante etíope raro, a vida lhe prega mais uma peça - mostrando que nem sempre a realidade conspira a nosso favor - e ele se vê envolvido numa roubada de proporções estratosféricas, que envolve inclusive o astro da NBA Kevin Garnett. 

O filme dos irmãos Safdie é um retrato nu e cru, sem rodeios, de nossa sociedade de valores deturpados, onde tudo é sinônimo de apostas, poder, status sociais e patrimônios elevadíssimos. Em suma: deixamos de ser homens e nos tornamos mercadorias sedentas por valor. E esse valor não pode ser baixo. 

E desse misto de atletas profissionais viciados em superstições (a adoração de Garnett pelo diamante bruto é praticamente patológica!), cantores de hip-hop meia boca que se acreditam deuses revolucionários da indústria fonográfica contemporânea e que por conta disso se sentem no direito de pisar em quem for, por qualquer motivo e a eterna entourage de sanguessugas que volta e meia rodeiam aqueles que detém o dinheiro do mundo nasce praticamente um ensaio seco e realíssimo sobre a usura no século XXI. 

Algumas pessoas nos portais de cinema e nas redes sociais ficaram um tanto quanto decepcionadas com a não-indicação de Sandler ao Oscar de melhor ator desse ano, mas cá entre nós, eu acredito que ele não tinha a menor chance, embora sua atuação seja realmente um ponto forte do filme. Se o Eddie Murphy (por Meu nome é Dolemite) e o Taron Egerton (por Rocketman) ficaram de fora, com Sandler não seria diferente. E olha que nem o De Niro (por O irlandês) conseguiu vaga esse ano!

Outra coisa: talvez eu tenha enxergado demais ou não tenha entendido o suficiente, mas achei que a interpretação de Sandler me lembrou um pouco o Al Pacino dos últimos anos. Aquele jeito de falar quase um esporro, como se estivesse brigando com todo mundo o tempo todo. Na boa... Ficou com cara de coisa copiada, que ele pegou de empréstimo. Mas como eu disse lá em cima: talvez eu tenha visto demais. 

No final o que temos de concreto é mais um bom projeto da ótima produtora A24, que vem se destacando nos últimos anos com produções fora da chamada "zona de conforto" (e para quem está por fora e não ligou os pontos ainda, a produtora é responsável por longas como O farol, de Robert Eggers; Midsommar: o mal não espera a noite, de Ari Laster; Anos 90, de Jonah Hill; Gloria Bell, de Sebastián Lelio, entre outras pérolas). 

P.S: seja Rogério ou Howard, o mundo anda cheio de babacas se achando indestrutíveis e acima de qualquer deslize ou derrota. O problema é que eles sempre se esquecem que o mundo tem suas próprias regras e nem sempre está apto a atender nossas expectativas ou sonhos.  

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Fahrenheit Rondônia


Eu nem liguei o notebook direito e já estou com cara de "putz! mais essa ainda!". Até agora tentando entender a notícia que chamou a atenção do país nessa última semana...

Falo, é claro, dos mais de 40 livros da nossa literatura - alguns deles clássicos, inclusive - censurados pelo Secretaria de Educação do Estado de Rondônia. Só para ter uma ligeira ideia a que nível chegou o disparate, na observação seguinte a lista eles mandam recolher todos os livros do escritor Rubem Alves (e o Rubem Fonseca, autor do magistral Agosto, sofreu praticamente o mesmo boicote). 

Entre as pérolas censuradas duas obras-primas inegáveis de nossa lavra: Macunaíma, de Mário de Andrade e Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (não, não, é isso mesmo que você leu! Machado, fundador da Academia Brasileira de Letras, também está na lista). Mas é claro que também sobrou para o eterno dramaturgo Nelson Rodrigues (que estava certo quando dizia, no passado, que vivíamos "a revolução dos idiotas"), Carlos Heitor Cony, Caio Fernando Abreu - autor abertamente homossexual - e o poeta de Poema sujo, Ferreira Gular. 

O clima que se instaurou nas redes sociais em resposta à lista foi de lembrança a um outro clássico, este da literatura mundial: o exuberante e atualíssimo Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (recomendo também aos leitores que conheçam a adaptação cinematográfica feita pelo mestre da Nouvelle Vague, François Truffaut). Na obra em questão livros são incinerados por bombeiros num visão extremista do mundo e que remete, guardadas as devidas proporções, ao terceiro reich nazista. 

Porém, o que mais mexeu com a minha cabeça diante de tudo isso, de todo esse retrocesso disfarçado de democracia em que vivemos nos últimos anos, é uma pergunta que volta e meia toma meus pensamentos e também meus escritos na internet: até quando os livros serão tratados como inimigos nesse país Peter Pan que se recusa a amadurecer?

Os livros entraram na minha vida bem cedo (eu já lia com 9 anos e me orgulho muito disso!) e me fizeram repensar o mundo e a sociedade como nós a conhecemos. E é com enorme tristeza que vejo eles serem tratados como bandidos ou influenciadores do mal por uma grande parcela da população. Aqui mesmo, perto de casa, há um indivíduo, um desses bebuns notórios que adoram se vender como filósofos de botequim, que vende para seus amigos de copo a seguinte premissa: "livros são perda de tempo; passaram a vida ensinando mentiras à humanidade" (a frase segue em aspas, pois são as exatas palavras que ele sempre utiliza). 

Tempos atrás escrevi um texto no facebook em que abria o primeiro parágrafo dizendo "vivemos tempos de Oriente Médio...". Honestamente... Acho que estamos piores do que o Oriente Médio. Digo isso porque sempre considerei aquele lugar uma terra de fanáticos, de pessoas cegas, deslumbradas com mitos religiosos que, na prática, raramente funcionam. E houve um tempo em que acreditei que jamais passaríamos por isso. Estava redondamente enganado!

Vivemos uma nova Era Medieval no que diz respeito à respeito. Não se pode mais pensar diferente, não se pode mais ler algo que ofenda aos outros. Precisamos se cópias xerográficas uns dos outros. Do contrário, somos inimigos. E os livros, coitados deles!, precisam pagar de Cristo nesta situação que só favorece aos ignorantes, aos "cidadãos de bem", com arma no coldre é claro!

E desse Fahrenheit Rondônia nascerá uma nova civilização (dizem eles), mas antenada com aquilo que é correto, que é ético, que é humano. 

E eu me pergunto ao fim dessa rápida narrativa: o que há de humano numa sociedade que tolhe a própria sociedade do direito de ler o que quiser, onde quiser e quando quiser? E qual será o próximo passo? Fechar cinemas, teatros, praias? Excluir qualquer possibilidade de lazer? 

Os demagogos e hipócritas de sempre defenderão. Dirão: "foi apenas em Rondônia". Mas é justamente assim que começa. A tragédia por aqui nunca vem de uma vez só, explodindo tudo e todos. É sempre a conta gotas. E só nos resta, agonizantes, esperarmos as cenas do próximo capítulo (que pode ser amanhã mesmo, hein! Não cochila, não!). 

Obs: no Brasil, quando algo é proibido, boicotado, censurado, normalmente aguça a curiosidade do povo. Esse é, portanto, um bom momento para conhecermos esses ilustres autores. Imprima a lista e os procure nas livrarias perto de sua casa. Acreditem: vocês não vão se arrepender.   


sábado, 8 de fevereiro de 2020

Marionete de si mesmo


Eu me lembro, quando estava na casa dos meus 30 anos, de ouvir pela primeira vez sobre os escândalos que aconteciam nos bastidores dos programas infantis que eu assistia no fim dos anos 80 e início dos 90. Via declarações do tipo "a Xuxa belisca os seus baixinhos" até "crianças de cor são boicotadas nas gravações". E também me lembro das práticas ilícitas e sujas envolvendo grupos musicais compostos exclusivamente por crianças, como Trem da Alegria (vi há pouco tempo, inclusive, uma entrevista desabafo com a cantora Patricia Marx metendo a boca no trombone sobre aquela época). E me recordo que nem a Disney e o seu famigerado Clube do Mickey escaparam dos comentários maliciosos. Só para vocês terem uma ideia do nível que foi a coisa, procurem na internet pelo depoimento do ator Corey Feldman - de filmes como Os garotos perdidos e Os Goonies - a respeito dos assédios que sofreu em hollywood ainda criança. 

Por que decidi escrever esse primeiro parágrafo tão extenso no começo desta crítica? Porque me senti revivendo tudo isso, todo esse sentimento, quando acabei de assistir esta semana nos cinemas o longa Um lindo dia na vizinhança, de Marielle Heller. 

O filme de Heller aborda a amarga história do jornalista investigativo da revista Esquire Lloyd Vogel (Matthew Rhys), um homem que empurra a vida com a barriga por reviver constantemente a relação traumática que tem com o pai, Jerry (Chris Cooper), a quem culpa por deixar ele e sua irmã sozinhos no momento mais difícil de suas vidas. E sua melancolia o persegue por todos os setores de sua vida: no casamento, a esposa Andrea (Susan Kelechi Watson) já não sabe mais o que fazer para trazê-lo de volta à vida. E no trabalho, ele se tornou a pessoa difícil da redação, a persona non grata a quem ninguém quer dar entrevista.

Quando sua chefe na redação o delega a missão de entrevistar o maior ícone dos programas infantis de toda a América, o lendário Fred Rogers (Tom Hanks, como há muito tempo não via nos cinemas), ele pensa tratar-se de um trote, pois tal personagem não se encaixa no perfil do tipo de artista e celebridade com quem ele costuma trabalhar. 

E Rogers é realmente o seu exato oposto: um homem extremamente positivo, que acredita na esperança e na recuperação de pessoas frágeis ou massacradas pelos deslizes da vida. Um homem que vê a dor, o sofrimento e a morte como ciclos da nossa existência e não como razões para simplesmente desistirmos. E isso de alguma maneira incomoda Lloyd. 

Mais do que isso: Lloyd acredita que por ter vivido uma infância tão traumática não é capaz de ver a humanidade com outro olhar que não seja negativo. Ele é praticamente um marionete de si mesmo. 

Vocês devem estar se perguntando: como assim? A pessoa real, o verdadeiro Lloyd Vogel, aquele que deveria seguir em frente, superar suas adversidades, saber perdoar o próximo, está escondido por trás de um personagem que ele próprio criou, amargo, sempre apontando os defeitos dos outros, sempre fugindo da responsabilidade de sentar e colocar os pingos nos is. E por isso, na sua visão deturpada de mundo, ele acredita piamente na impossibilidade de Fred Rogers ser um homem sem defeitos. Ele precisa encontrar algum fantasma escondido no armário que assombre a vida desse homem comum, que ganhou a fama de herói americano. 

Ao final da projeção, vejo algumas pessoas intrigadas, talvez pensando se tudo aquilo era real de fato ou apenas mais uma versão bonitinha para agradar aos fãs de um ícone da televisão. E me pego pensando no quanto, muitas vezes, procuramos o inimigo no lugar errado só para satisfazer nosso próprio ego e nossa eterna mania de rotular os outros. 

Com a idolatria ao que chamamos de globalização e esse século que mal começou e já está dando o que falar (de pior) em todos os sentidos, percebo o quanto nos tornamos uma sociedade stalker, que gosta de perseguir os outros, ver o pior nos demais, às vezes como forma de exaltar a si própria. E tudo isso é muito triste. 

Algumas pessoas que escrevem sobre cinema na internet rotularam Um lindo dia na vizinhança de "cansativo" e "decepcionante". E eu discordo em gênero, número e grau. O filme de Marielle Heller me fez pensar no quanto temos dificuldade de amadurecer, de olhar para frente com outros olhos, de virar a página a respeito do que outras pessoas nos fizeram (e nos magoou tanto). Ninguém nunca nos prometeu que a vida seria fácil e pelo andar da carruagem, prevejo ainda mais relutância e desafios no futuro. E como sobreviver a isso sem levantar a cabeça e recomeçar do zero? Não sei vocês, mas parece-me à primeira vista impossível!

Ou em outras palavras (para quem prefere uma opinião mais curta do que a minha reflexão do parágrafo anterior): Um lindo dia na vizinhança é o filme mais humano - no sentido de investigador - que eu vi nessa temporada de prêmios. E acreditem: isso não é pouca coisa, não!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

O filho do trapeiro


Acho que é a primeira vez, desde que comecei essa série de epitáfios sobre celebridades e artistas que marcaram profundamente a minha formação cultural, que eu vivia a expectativa de escrever o artigo. Explico-me: o homenageado em questão já se encontrava há algum tempo debilitado, não andava mais e vivia mais por sua força de vontade e heroísmo. E acabou por se tornar uma lenda também por conta disso! 

Falo especificamente do ator, escritor e produtor Kirk Douglas, que faleceu na noite de ontem (5/fev), aos 103 anos. E não é todo dia que se fala de um artista que viveu mais de um século!

Para muitos dessa geração comic books e graphic novels que invadiram as telas de cinema nos últimos anos ele talvez seja reconhecido apenas como o pai do ator Michael Douglas. Já para este que escreve estas mal traçadas linhas ele foi bem mais do que isso!

É preciso, entretanto, deixar claro uma coisa: não pertenço à geração que viu Kirk Douglas no cinema como gostaria. Mas aprendi a admirá-lo com uma enorme facilidade por causa de meu pai, que o considerava "um dos maiores gênios que hollywood já vira até então". 

Issur Danielovitch Demsky, filho de um trapeiro que fugiu da Rússia (aliás, o título do artigo remete ao título de sua autobiografia, publicada aqui no Brasil nos anos 90, e que eu devorei em menos de cinco dias), comeu o pão que o diabo amassou para chegar ao estrelato. E nunca escondeu dos seus fãs, muito menos da imprensa, que a raiva foi o fio condutor necessário para que ele realizasse tal sonho.  

Durante toda a sua carreira ficou conhecido pelos personagens durões, por seu "vício em sexo" (por sinal, o filho Michael, também herdou um pouco disso) e por sua eterna perseguição à injustiça que pairava nos estúdios no auge do cinema americano. Foi ele que comprou a briga do roteirista Dalton Trumbo, autor perseguido pelo macarthismo, ao decidir produzir Spartacus

Ele é mais conhecido aqui no Brasil por sua interpretação no filme de Stanley Kubrick baseado no romance homônimo de Leon Uris. Todavia, foi um artista mais do que versátil e sua filmografia está repleta de obras-primas. A primeira delas, e com um destaque pessoal meu, é A montanha dos 7 abutres, de Billy Wilder (1951), um épico jornalístico que até hoje me deixa de cabelo em pé acerca da impunidade e do mau caratismo que rodeia a imprensa desde que o mundo é mundo. Contudo, é impossível falar de Kirk sem citar também Sede de viver, de Vincente Minnelli (1956), onde interpreta o pintor Van Gogh de forma magistral e do drama de guerra Glória feita de sangue, também de Kubrick (1957). 

Mas a verdade é que eu estou me adiantando porque conheci o seu trabalho à primeira vista por conta de produções menores, de pouca repercussão, como A fúria, de Brian de Palma (1978), no qual interpretava o pai de um paranormal, a comédia escrachada Cactus Jack - o vilão (1979), de Hal Needham, em que divide os holofotes com o astro dos filmes de ação Arnold Schwarzenegger em início de carreira e a também comédia que satirizava a máfia Oscar - minha filha quer casar, de John Landis (1991). E aqui ele mostra ser dono do espetáculo em apenas uma cena, como pai agonizante do mafioso interpretado por Sylvester Stallone. 

E como eu sei de antemão que vai ter gente reclamando que eu dei poucas sugestões, fica aqui de lambuja mais um top 5 para cinéfilos mais fanáticos (como eu):

Chaga de fogo, de William Wyler (1951)
20.000 léguas submarinas, de Richard Fleischer (1954)
Vikings, os conquistadores, de Richard Fleischer (1958)
Sete dias de maio, de John Frankenheimer (1964)
O Nimitz volta ao inferno, de Don Taylor (1980)

Depois do derrame sofrido Kirk teve de tirar o pé do acelerador, mas ainda encontrou uma sobrevida artística como autor de romances. Dois deles, inclusive, renderam boas críticas: Dança com o diabo (1990), que foi publicado por aqui e The gift (1992). Mas não havia a essa altura mais com o que se preocupar, pois seu lugar no panteão dos grandes artistas americanos já estava assegurado. 

Se faltou algo à Kirk Douglas? Acredito que um Oscar por atuação ao invés daquele "pelo conjunto da carreira". Mas sabem como é o Oscar... Só quem acredita mesmo na veracidade daquilo são os adoradores do tapete vermelho e das grifes que volta e meia aparecem por ali. E este nunca foi o meu caso!

Fico imaginando o meu pai, se ainda vivo, dizendo: "É... Hollywood acabou mesmo!". Não tem mais Paul Newman, Steve McQueen, James Stewart, Henry Fonda, Anthony Quinn, em suma, nenhum dos atores que ele curtia. E agora se foi também Kirk Douglas. 

É... Vai deixar saudades. Principalmente pra quem é fã (como eu) do verdadeiro cinema. 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Contradições


Não há dúvidas: somos um país contraditório por natureza. Um país de não leitores em demasia, mas que no entanto figura na lista das nações que mais editam livros no mundo. Que vive sempre reclamando da falta de tempo para tudo, quando na verdade nunca falta tempo para aquilo que nos interessa de fato. Falamos de solidariedade, mas não perdemos a chance de segregar ou ser intolerante com o próximo (principalmente quando o assunto é cultura, religião e política). 

Contudo, quando me deparo com um artista capaz de tratar dessas contradições de forma inteligente, bem humorada, sem soar sectário, ele merece o meu respeito. 

Há algum tempo não tenho comparecido ao teatro, pois não tem me agradado a atual programação do segmento. E toda vez que isso acontece eu recorro ao you tube (eu sei... vocês vão dizer: "sempre ele") e ao vimeo, onde volta e meia encontro esquetes e peças completas disponíveis. Há muita baboseira religiosa e muita coisa amadora, mas de vez em quando meus olhos param num ou outro espetáculo que ganha a minha atenção de maneira mais profunda. Sete minutos foi um desses casos.  

A peça, escrita pelo ator Antônio Fagundes em 1993 e dirigida pela eterna diva Bibi Ferreira, já havia circundado ao redor do meu radar anos atrás, já que foi lançada em formato dvd (uma ousadia, em se tratando de teatro no Brasil). Entretanto, por algum motivo que não sei explicar acabei por não vê-la. Erro meu. 

O espetáculo conta a história de um ator (Fagundes), durante uma montagem de Macbeth, de William Shakespeare, que decide abandonar o palco e cancelar a encenação, irritado com um espectador que tosse o tempo inteiro. Ele vai direto para o camarim e começa a fazer um grande desabafo para seu parceiro de elenco e a empresária (Suzy Rego) sobre o momento terrível que o teatro vive no Brasil, engolido por tecnologias e uma cultura da alienação sem precedentes. 

Mais do que isso: ele exemplifica registros vários que impedem qualquer ator minimamente digno e profissional de permanecer concentrado em cena. Papéis de bala, sacos de batatas fritas, celulares tocando o tempo todo - há inclusive uma cena engraçadíssima em que ele interrompe a peça para atender ao telefone de uma espectadora que toca -, bocejos, pigarros e as inevitáveis tosses. A frase que, para ele, resume o papel que o teatro tem no país é: "o teatro é a antessala da pizza". E não está completamente errado. 

Acompanho sempre que posso montagens as mais diversas e sempre me deparo com o desrespeito e a falta de silêncio nesses lugares. Não tem muito tempo vi um grupo de espectadores abandonando um espetáculo em que fui, irritados porque a personagem da peça divergia completamente de suas visões religiosas. Sim, chegamos a esse nível de baixaria. 

O ator de Sete Minutos flerta com os mais diferentes tipos de contradições. Exalta personagens clássicos do teatro para mostrar o quanto que o público está por fora de praticamente tudo no que diz respeito à arte. Só pensa em sua própria comodidade e estilo de vida. E o próprio conceito de interrupção nos dias de hoje ganhou um status de modismo ou charme. Se acham que estou exagerando, prestem bem atenção ao seu redor. Ouçam, vejam as pessoas que frequentam os mesmos lugares que você e tire suas próprias conclusões. 

Aliás, a própria ideia de comercializar o espetáculo em dvd. podendo vê-lo em partes, dar pausa, reiniciar quando não entender alguma parte, já é uma contradição com o próprio espetáculo em si. Na verdade, a peça é quase uma ode às contradições. Mas tudo feito de maneira bem divertida e sem perder o seu caráter denunciatório. 

Arrependo-me, ao fim da encenação, de apenas uma coisa: de não ter assistido Sete Minutos ao vivo. Mais: de não ser o dono do celular que tocou na hora que Fagundes desceu do palco para atendê-lo. Teria sido uma honra ter feito parte desse jogo cênico. 

Quem diria! Em tempo de vacas magras na cultura nacional, com um governo cretino e tendencioso querendo pautar o que devemos ler, assistir, ouvir, encontro num site de internet uma peça "velha" capaz de me fazer pensar sobre o ontem, o hoje e o amanhã. 

E ainda tem gente que diz que a internet não serve pra nada...