quinta-feira, 30 de maio de 2024

Ninguém escreve bem; alguns reescrevem bem


Adoro biografias. Mesmo. Contudo, é preciso ressaltar: um bom autor faz toda a diferença. Nos últimos anos, com a polêmica envolvendo o livro sobre o cantor Roberto Carlos e a aprovação do STF às chamadas biografias não-autorizadas, muito fã contraditório em demasia passou a se achar biógrafo. Eles só veem as virtudes de seus ídolos, isso quando não apresentam um quadro totalmente ilusório sobre a vida do artista.

E eu sempre tive a curiosidade de entender o processo de criação de um livro desses. Por que escolher o biografado x ou y? Onde encontrar as fontes necessárias? O que não deve ser deixado de fora sob hipótese alguma?, etc etc etc. E eis que Ruy Castro - para mim, o melhor dentro desse segmento no país e autor de clássicos como Estrela solitária (sobre o jogador de futebol Garrincha), O anjo pornográfico (sobre o dramaturgo Nelson Rodrigues) e Carmen (sobre a pequena notável Carmen Miranda) -, decidiu reunir todo o seu expertise em anos de trabalho árduo no extraordinário A vida por escrito: ciência e arte da biografia.

Ruy vai logo avisando aos leitores que "nenhuma autobiografia é confiável" e está coberto de razão. Mesmo se tratando da vida de alguém, é - antes de tudo também - uma obra de ficção. E trata-se de um trabalho exaustivo que envolve, entre outras peripécias, ler vasto material, descobrir arquivos perdidos e vasculhar documentos originais (às vezes raros, de difícil acesso).

Ele descortina de forma sagaz a diferença entre perfis, livro-reportagem e ensaio biográfico; deixa claro de antemão que vários escritores trabalham de propósito contra seus futuros biógrafos (com o intuito de fazê-los perder tempo ou desistir da jornada); e insiste na questão da reconstituição histórica (para ele, um ponto-chave do processo) e no quanto ela envolve entrevistas, consulta a documentos e pesquisa em material impresso, dentre outras especificações.

Ruy não escreve biografia de pessoas vivas e explica suas razões. Deixa claro que não há fonte menos confiável sobre si mesmo do que um ficcionista. Além disso, conta casos de biografias que foram engavetadas ou se envolveram em polêmicas, expõe o biografado ideal (no caso, a celebridade com problemas, sejam familiares, profissionais ou conjugais), explica que se a história não tiver valor universal, o trabalho não progride, não caminha, entre outras dicas valiosas para biógrafos de primeira viagem.

O biografado deve ser alguém que se admire ou deteste? O que se busca: informações que possam ser verificadas e ampliadas? Ele também avisa de forma taxativa: nunca escreva o livro antes de terminar a apuração dos dados (só falta marcar em negrito: a apuração é tudo!) e ainda desmembra essa parte em um valioso recado: quanto mais importante a fonte, mais tempo deve levar para procurá-la.

Ao fim o que você, nobre aspirante ao mundo das biografias, deve procurar é concisão + clareza + a verdade (mas com charme e humor de sobra). E mais umas regras básicas de sobrevivência: 1) o biógrafo deve ser uma parede de vidro entre o leitor e o biografado; 2) Ele não pode penetrar nos pensamentos de alguém; e 3) tudo o que for importante deve ser relatado. Não deixe nada de fora.

Quando termino o volume (que, confesso, poderia ser maior se ele quisesse, e tenho certeza que o público interessado no tema agradeceria) me lembro de uma frase que ele diz em determinado momento do exemplar: "ninguém escreve bem; alguns reescrevem bem". Ela é a síntese da mensagem proposta aqui. Não é à toa que continuo fã de Ruy Castro até hoje, ainda à espera de seus próximos trabalhos. Ele é das melhores coisas que o nosso mercado editorial publica há tempos. E aqui está mais do que explicado o porquê. Grande obra! Quase um tutorial para interessados em seguir por essa carreira ou curiosos de plantão (como eu, claro!).


sábado, 25 de maio de 2024

Ele poderia ser alguém melhor (só que não)


Se Lourenço Mutarelli fosse americano ou europeu certamente seria bem mais badalado no mercado de quadrinhos. Sua narrativa é por vezes seca, por vezes ácida, lembra um punhal apontado em nossos corações. Ele nunca recorre a soluções fáceis, muito menos acredita em finais felizes. Com certeza prefere a dúvida, o desespero, a alucinação dos fatos. Não, da sociedade contemporânea.

Transubstanciação é exatamente isso. Um tapa na cara quando estamos dormindo. Jamais poderia ser a cores, pois a vida também não é. Em determinados momentos senti meu estômago embrulhar (o mundo também tem feito isso comigo nos últimos anos).  

Finalmente, Thiago - seu protagonista - é poeta ou louco? Acho que ambos. Digo mais: no fundo, no fundo, somos todos um pouco de ambos. Apenas não admitimos. Thiago simplesmente se esqueceu de tudo o que fez de errado antes. Acumula experiências nauseantes, sequer consegue reconhecer sua amada. Ele criou sua própria realidade, colocando a verdade em segundo plano. O resultado disso: terrível, é claro.  

Segundo os dicionários a palavra transubstanciação remete à 1. Mudança de uma substância noutra. 2. [ Teologia ] Mudança da substância do pão e do vinho na do corpo e do sangue de Jesus Cristo, na Eucaristia. Mutarelli (no caso, Thiago) prefere a primeira via. Ele está anos-luz de ser Cristo. Seria, no máximo, um anticristo, por tudo que cometeu de mais insano e não admite. 

O álbum, que é enxuto, poucas páginas, não perde o que tem de mais visceral. Trata-se de um grande ensaio sobre a falência do homem nos tempos modernos.

É visível - pelo menos, para mim foi - a referência ao cineasta David Lynch, principalmente à Eraserhead e seu ótimo Estrada perdida. E por algum motivo que eu não consigo traduzir em palavras sensatas eu também relembrei da época (o final dos anos 1980) em que ouvi pela primeira vez ao álbum Fausto Fawcett e os robôs efêmeros. Aquele quê de desesperança, aquele sentimento de melancolia, de que algo estava perdido, quebrado, e não podia ser consertado. 

Thiago está destruído e só pode seguir em frente, cometendo novos erros. E ele os comete. Só que a opinião pública não reagirá mais a eles da mesma forma. Não há mais tempo ou espaço no mundo atual para diálogos. Tudo agora é resolvido à bala, pelo viés da barbárie e da violência nua e crua. 

Ele poderia ser alguém melhor se realmente se esforçasse, só que não. Ele se acostumou a essa postura diabólica, incômoda, nociva. Acha que o mundo lhe deve algo, mas na prática ninguém deve nada a ninguém e todos exigem de todos. O que sobra? O amargo fim. 

Acho que dificilmente irei me deparar com algo mais brutal e nonsense em 2024 do que Transubstanciação (e olha que ele foi publicado originalmente em 1991). O que me leva à uma conclusão caótica: a realidade já se mostrava devastadora há mais tempo do que eu poderia sequer imaginar. Como pude ser tão ingênuo!

Leiam. Todos deveriam passar por esse choque de realidade pelo menos uma vez na vida. 



terça-feira, 21 de maio de 2024

Uma love story que poderia ser tudo (e acabou desse jeito!)


Eu nunca me lembro do nome do escritor que disse em um dos seus livros sobre música e mercado fonográfico que nunca se sabe de fato o porquê de escolhermos certas experiências musicais. "Não é só sobre as canções ou a banda/ artista solo em si", diz ele, "mas como se encontra o nosso estado de espírito naquele exato momento".

Eu não entendi totalmente o que ele disse na ocasião que li, mas agora concordo plenamente. E hoje, em meio a um dia chato, nublado, sem muitas perspectivas, ouvir Billie Eilish no celular foi exatamente do que eu precisava para seguir em frente. 

É preciso, contudo, avisar previamente: nunca tinha ouvido Eilish antes. O que conhecia dela era apenas o que os fãs mais chatos e grudentos dizem a todo momento aqui e ali. E ela costuma ser criticada por não cantar ao vivo em seus shows. Enfim... 

Dito isto, que agradável e grata surpresa foi Hit me hard and soft, seu terceiro álbum de carreira. E o mais impressionante: o meu comprometimento quase catártico com a sonoridade do álbum, deixando até mesmo a voz da cantora em segundo plano. 

Billie entrega toda a sua vontade de desabafar, de assumir seu lugar no mundo e falar do que não deu certo, mas poderia (se ela e a amada tivessem realmente tentado com todas as forças). Entretanto, fica aqui um toque: quem se debruçar na pretensão de ver o trabalho como uma grande D.R vai perder o melhor da experiência. Sim, Eilish expõe suas cicatrizes e seu coração partido, mas o disco é bem mais do que apenas isso. O que importa de fato é a jornada, o aprendizado, e não o que se perdeu durante o processo. 

E os jovens - a maior parte da base de fãs da cantora - muitas vezes custam a entender esse lado hardcore da vida. 

O projeto tem um clima - ou será melhor chamar de subtrama? - de "love story que tinha tudo pra dar certo como nas comédias românticas hollywoodianas, mas por tolice do próprio casal, ficou pelo meio do caminho". 

E do ponto de vista sonoro é uma avalanche de emoções e sentidos os mais diversos. Dos instrumentos de corda às intervenções eletrônicas, passando por faixas que parecem conter músicas dentro de músicas (há um momento em que vemos a cantora mudar de direção 180 graus, inserindo um clima meio disco music numa canção que dava claramente a entender que seria melancolia pura). Houve uma hora em que eu cheguei a entrar em transe, fechando os olhos e seguindo o clima proposto sem questionar.

E Billie deixa claro aos seus fãs que: 1. O amor é uma guerra (por mais que finjamos o contrário); 2. Só se sente ela mesma no papo (o mundo aqui fora é assustador e ela não se encaixa completamente nele); 3. a internet é "o tipo mais cruel de diversão" (e nisso eu a apoio 100%, em tempo integral), entre outros monólogos e alfinetadas. 

Ao fim da audição, pensei: que raro ver uma artista tão jovem se engajando num projeto desses, tão pessoal, em meio a tanto artista pop medíocre que só quer saber de rebolar a bunda, agredir verbalmente os outros e falar besteira para repercutir na mídia. Confesso que daqui pra frente vou ficar de olho em Billie Eilish. Ela me deixou, no mínimo, intrigado. 


sexta-feira, 17 de maio de 2024

O corvo: 3 décadas e uma perda


Eu já devia ter postado isso aqui, mas as mortes de Roger Corman e Paulo César Pereio alteraram os rumos do blog...

Até hoje quando lembro da imagem de Brandon Lee caracterizado como o corvo eu penso: "não estava preparado para aquela desconstrução e nada do que ele vinha fazendo na carreira até então dava a entender que ele fosse seguir aquele caminho". Guardadas as devidas proporções, foi tão inovador e deslumbrante quanto ver Heath Ledger a primeira vez como coringa em O Cavaleiro das trevas, de Christopher Nolan.

E infelizmente (para Brandon e os fãs de sua cinematografia ainda em construção) aquele seria seu último longa. 

Quase me esqueço de comentar aqui os 30 anos de O Corvo, de Alex Proyas. Sério que já tem esse tempo todo? O passar da idade é definitivamente uma tragédia! Eric Draven, seu personagem principal, o rockstar brutalmente assassinado, junto com sua namorada, por membros de uma gangue, figurou por muitos anos na minha lista de protagonistas inesquecíveis. 

Contudo, é preciso ressaltar: Brandon - filho do mestre das artes marciais Bruce Lee, também morto tragicamente - já vinha chamando minha atenção como action hero. Seus dois longas anteriores, O massacre no bairro japonês e Rajada de fogo, eram exemplares interessantes de uma carreira que vinha sendo bem construída (e olha que o páreo naquela época era difícil, disputando telas com estrelas como Jean-Claude Van Damme, Steven Seagal, Bruce Willis, Lorenzo Lamas, Stallone, Schwarzenegger e cia.)

O corvo acabou entrando para a história do cinema como "o filme da tragédia", por conta do acidente envolvendo um projétil de uma arma de fogo disparada no set. Muitos anos depois, assisti a primeira temporada da série documental Cursed films, sobre longas marcados por mortes, acidentes e situações estranhas, e no episódio sobre o filme de Proyas me passou a sensação de que alguns membros da equipe viram negligência no caso. Enfim... Polêmicas à parte, o voo do cisne de Brandon Lee ainda é um marco da sétima arte. 

Independente das inúmeras sequências tenebrosas realizadas (o filme nunca teve um sucessor à altura e em breve mais uma tentativa estreará em hollywood com o ator Bill Skarsgard na pele do protagonista), o longa original resguardou sua essência e seu estilo de forma eficaz. Lembro com enorme júbilo de todo o clima dark presente na trama e nas cenas de ação criadas. Dizem que Brandon morreu no início das filmagens, mas o resultado final se mantém íntegro e forte mesmo sem sua presença. 

E se por um lado perdemos uma jovem promessa, por outro acho importante que as novas gerações conheçam o filme. Quem sabe elas consigam entender o quanto o gênero era mais objetivo naquela época, focado em roteiros mais interessantes e sem tanta gastação de dinheiro, cgis vazios e artistas sem carisma. Fica a dica aos ditos nerds, que adoram exaltar as megaproduções atuais e diminuir o impacto do cinema feito em décadas passadas. 

segunda-feira, 13 de maio de 2024

O rebelde do cinema brasileiro


Mal terminei de postar o texto anterior, me despedindo de Roger Corman, me deparo com mais uma triste notícia: a morte do ator Paulo César Pereio, aos 83 anos. Que domingo desgraçado! 

Pereio foi o último rebelde do cinema brasileiro. O Dennis Hopper tupiniquim. Quebrou com todos os preceitos e convenções possíveis e imagináveis. Se recusou a seguir a mentalidade e a formação dos atores de sua época. Se o queriam shakespeareano ou stanislavskiano, quebraram a cara. Até em Roda Viva, peça de Chico Buarque encenada por José Celso Martinez Corrêa, ele subverteu a ordem imposta no período. Uma frasista único, polemizador nato, foi parte integrante de uma geração cinematográfica que a cada novo falecimento deixa mais e mais saudades.

Foi preso, contestador até a medula; durante uma época desejou até mesmo a demolição do Cristo Redentor (para fúria de seus eternos detratores) e era dono de uma voz única que jamais deixará de ecoar em meus ouvidos toda vez que eu me lembrar dele.

Trabalhou em mais de 60 longas - fora tv e teatro -, com os maiores que o nosso audiovisual já viu até hoje (Glauber Rocha, Hector Babenco, Arnaldo Jabor, Hugo Carvana, Walter Lima Jr, Cacá Diegues, Neville D'Almeida, Ruy Guerra...), narrou documentários e foi até tema de programa humorístico. Mas o principal: transformou o ato de ser polêmico, sem noção e desbocado numa marca registrada e divertidíssima.

Eu poderia chegar até vocês, leitores, e dizer "imprimam no site IMDb a lista com todos os projetos no qual ele participou e assista tudo, comece agora!", mas há momentos únicos, que merecem um sincero destaque. Logo, se puderem, deem preferência aos da lista abaixo. Aposto que não se arrependerão:


Os fuzis, de Ruy Guerra (1964)

Terra em transe, de Glauber Rocha (1967)

Capitão Bandeira contra o Dr. Moura Brasil, de Antônio Calmon (1971)

Toda nudez será castigada, de Arnaldo Jabor (1973)

Iracema - uma transa amazônica, de Jorge Bodanzky (1975)

Lúcio Flávio - passageiro da agonia, de Hector Babenco (1977)

A queda, de Ruy Guerra (1978)

A dama do lotação, de Neville D'Almeida (1978)

A lira do delírio, de Walter Lima Jr. (1978)

Chuvas de verão, de Carlos Diegues (1978)

Eu te amo, de Arnaldo Jabor (1981)

Bar esperança, de Hugo Carvana (1983)

Rio babilônia, de Neville D'Almeida (1983)


E isso só para começar os trabalhos (rsss.)

Muito se falou sobre o cidadão e o ator renomado, mas a melhor definição que eu li sobre o Peréio foi do próprio, dita numa entrevista concedida em 2010 ao jornalista Geneton Moraes Neto, na GloboNews, na qual disse: "Construo este mito, para ser pouco incomodado. É uma espécie de self-art. Pereio, na terceira pessoa, é obra minha. Posso ser considerado no Brasil uma celebridade. As pessoas me reconhecem na rua. Mas posso me dar ao direito de sair sozinho por aí, subir morro, andar na banda podre e na baixa sociedade, tranquilamente. Sei como não ser vítima disso".

Ou seja: o cinema brasileiro empobreceu de novo ontem. Perdemos um mestre, um artista sem freios e também uma incógnita por natureza. E o que nos sobra agora, ó sétima arte? Estamos ficando sem opções. P.S: Pereio, meu caro, fica com Deus. Você era foda! 


domingo, 12 de maio de 2024

O papa dos filmes B


Como assim o diretor Roger Corman, mestre dos filmes B, faleceu no último dia 9 e somente agora eu fiquei sabendo disso? Que acinte! Enfim... Vou comentar aqui mesmo assim. O cinema hollywoodiano deve - e muito! - à sua figura e seu engajamento dentro da indústria audiovisual. 

Corman acreditou num modelo de cinema independente que está em voga até hoje no mercado exibidor. E muitos acreditavam que não duraria sequer dois anos! Produziu quase 500 projetos, dentre eles muitos clássicos para as mais diversas gerações (Os filhos do medo Fitzcarraldo, Piranha, Corrida da morte ano 2000, Sexy e marginal, Dementia 13, e tantos outros hoje chamados de cults). 

Como não respeitar o diretor de produções à frente do seu próprio tempo como Ameaça espacial, A ilha do pavor, O emissário de outro mundo, Rock all night, Carnival rock, Dominados pelo ódio, O solar maldito, A última mulher sobre a terra, A loja dos horrores, O poço e o pêdulo, O corvo, O homem dos olhos de raio-x, O massacre de Chicago, Viagem ao mundo da alucinação, Mercenários das galáxias, etc? Ninguém fez o cinema trash como ele. Ninguém adaptou Edgar Allan Poe para o cinema como ele. Ninguém assustou o público como ele. 

Podem procurar em qualquer lugar e não encontrarão um sucessor de Roger Corman onde quer que seja. Ele marcou época e dificilmente verão outro dando sopa por aí. Desse jeito, não!

Contudo, seu maior legado para a história do cinema norte-americano foi ter aberto as portas para uma nova geração de talentos. Sem Corman, não teríamos Jack Nicholson, Robert de Niro, Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Joe Dante, Dennis Hopper, Peter Bogdanovich, Ron Howard, Jonathan Demme e também talentos femininos do cinema de horror como Stephanie Rothman, Katt Shea, Amy Jones, Barbara Peeters, Deborah Brock e Sally Mattison (e muita gente que você vai ler hoje nos obituários sobre ele não vai comentar essa parte!). 

Em outras palavras: sem Corman não haveria, provavelmente, a hollywood mítica como a conhecemos.

Curiosamente comecei a conhecer a sua obra pelo último filme que ele dirigiu, ainda na época dos famigerados VHS, o extraordinário Frankenstein: o monstro das trevas, com Raul Julia e John Hurt. Fiquei tão impactado com o que vi que fui perguntar ao meu pai quem era aquele diretor visionário. E ele me deu uma listinha repleta de raridades para conferir nas videolocadoras. Virei fã pro resto da vida e volta meia revejo alguma coisa dele no you tube. 

Ele foi um dos primeiros cineastas a me fazer conversar sobre cinema com o meu pai, que quando não estava vendo - e revendo - os faroestes com John Wayne, Clint Eastwood, William Holden, James Stewart e Gary Cooper, estava assistindo ou os longas dele ou os de Ed Wood (hoje em dia mais rotulado como "o pior diretor da história do cinema", rótulo totalmente imerecido).

Com a morte de Roger Corman, aos inacreditáveis 98 anos, o cinema (não só made in USA) perde um de seus maiores realizadores. Ele era - e ainda é - um verbete sobre o fazer cinematográfico. E chamá-lo de "velha guarda" só porque a indústria hollywoodiana mudou e está mais preocupada com lucros, balancetes e franquias por vezes descartáveis (pois isso que é a galinha dos olhos de ouro agora) é, no mínimo, uma sacanagem. 

E eu espero sinceramente que a sétima arte feita em hollywood volte, um dia, a ter 1% dos culhões desse senhor. Só 1%. Porque acreditem: está fazendo muita falta. Mesmo. Perguntem a qualquer cinéfilo de verdade.  


sábado, 11 de maio de 2024

120 anos do surrealista que virou a arte do avesso


Falamos, nas últimas décadas, do quanto a vida, o mundo, a arte, a própria sociedade, ganharam contornos espetaculares, de grandiosidade, mas pouco nos referimos a um artista que, no meu entender, praticamente cunhou o termo extraordinário. Mais: fez de sua vida um exemplo ímpar de genialidade. Seu nome: Salvador Dalí. Sim, aquele catalão, esquisito, com os bigodes virados pra cima, pai do surrealismo como o conhecemos... Que promoveu uma grande revolução cultural e de costumes ao lado de seus parceiros, o poeta e dramaturgo Federico García Lorca e o cineasta Luís Buñuel.

Se vivo hoje, ele estaria completando 120 anos e, certamente, ainda aprontando - e muito! Se houve um artista visual que mereceu a alcunha de "experimental", "visionário", "à frente do próprio do tempo", foi ele (e com folga em relação aos demais).

Seu curta-metragem Um cão andaluz, produzido ao lado de Buñuel, é uma grande porta de entrada para começarmos a entender sua obra e, principalmente, o seu espírito inquieto, investigador. Dalí virou a arte do avesso e mostrou o que ela tinha de mais contestador. Ali já podíamos perceber um pouco do gênio que na década de 1920, quando ingressou na Escola de Belas Artes de São Fernando, em Madri, foi expulso após se recusar a realizar um exame por, segundo ele, não ter ninguém competente o suficiente para avaliá-lo. Era folgado? E como! Mas também a prova viva de seu talento irrepetível.

A mãe sempre acreditou em seu talento e capacidade (e, por isso, sempre o apoiou na carreira artística). Em suas telas, sempre com cores vivas e imagens oníricas e bizarras, pautadas principalmente pelas teorias psicanalíticas de Freud, utilizando o subconsciente como fonte, conseguíamos desnudar seu imaginário, por vezes confuso, por vezes devorador de quem o observava. Era grande amigo do pintor Pablo Picasso e viu no cubismo uma referência importante para anexar aos seus projetos.

Em sua obra cavalos gigantescos, formas humanas disformes, cisnes, nuvens formando figuras inexatas, relógios e instrumentos musicais derretendo, caveiras dentro de caveiras, o Tio Sam norte-americano com nariz de pinóquio, páginas de livros que voam, um ovo virando o pôr-do-sol, borboletas como velas de embarcações, elefantes com cabeças de tuba, um circo que flerta entre horrores e a esperança de um dia seguinte mais ameno, sem tantas guerras ou conflitos desnecessários. 

Dalí era tudo o que precisávamos nesse século XXI cada dia mais hostil, sem esperanças, refém de uma humanidade torpe, movida pela vaidade e a ganância. Pena que ele nos deixou antes.

Em 2014 fui ao Centro Cultural Banco do Brasil para assistir à espetacular exposição Salvador Dalí, com mais de 150 de suas obras. Uma fila astronômica de interessados como eu me fez aguardar pacientemente (quer dizer: nem tanto) por mais de três horas até que eu me deparasse com uma das experiências mais inebriantes que eu já senti em toda a minha vida. A sensação era a de estar dentro da mente dele, invadir seus sonhos, passear por seu cérebro e sua personalidade irrequieta. Poucas vezes vi algo que superasse essa mostra até hoje. 

Dito isto, fico sabendo enquanto escrevo este post desta outra expo aqui, em SP: https://salvadordalisp.com.br/. E achei o projeto também grandioso e muito bem feito. Para quem quiser saber mais sobre a lenda depois dessa simples homenagem, fica a dica!

Faltou dizer algo? Sim. Que é por causa de pessoas como ele que eu decidi ser um eterno devoto da arte, da cultura e de figuras fora da bolha, do sistema, do status quo. O mundo só não é uma perda de tempo completa por que indivíduos como Salvador Dalí passaram por aqui de tempos em tempos. Agora vão lá saber mais um pouco sobre esse moço em outros lugares, vão! Vocês vão ficar boquiabertos. 


quinta-feira, 9 de maio de 2024

A famigerada geração Z


Que inferno é acompanhar a cultura pop em meio a tanta gente ultrapassada e resmungona e novas "tendências de mercado"...

Em teoria é sempre o mesmo discurso: jovens que usam a tecnologia para difundir diferentes vozes, realidades culturais e sociais. Bonito, não? Já na prática... Um festival de mau humor, caretice, retrocesso, birra, às vezes beirando a esculhambação total dos fatos. 

Em suma: cada dia mais difícil (e constrangedor) conviver com a famigerada geração Z e seus pitis constantes.

E a própria palavra famigerada vem bem a calhar ao se referir à geração. Entre suas muitas definições, uma me agrada mais do que as outras: que desfruta de má reputação ou má fama; mal-afamado. Perfeito! Digo mais: são um retrato da contradição vigente na atual cultura pop. 

Reclamam da nudez nos filmes (acham-na desnecessária para o contexto da história). Reclamam dos palavrões em peças teatrais e shows de stand up comedy. Reclamam de cantores e compositores que satirizam ou denunciam figuras e arquétipos políticos (não veem necessidade de politização na arte). Reclamam que o artista a é pedófilo, o dramaturgo b é estuprador, o cantor lírico c é assediador de mulheres... Putz! Como reclamam. 

Agora, pergunte o que eles não são. A resposta? Modelos de conduta. Exigem do outro o que eles mesmos não são capazes de entregar.

Aumente isso tudo em 100%, incluindo produtoras de conteúdo cultural mais interessadas em fazer agenda ou criar um público cada dia mais vazio, mais alienado, e o resultado é catastrófico por natureza. Temo, infelizmente, pelo futuro de hollywood, da indústria cultural, da broadway, do mercado editorial e quem mais enveredar por esse território. E olha que ainda temos que ficar de olho nessa tal de inteligência artificial, ávida por ceifar empregos e a qualidade artística.  

Não bastassem os livros do gênero young adults; os filmes sobre videogames, bonecos, heróis, marcas de tênis e jogos de tabuleiros; as cantoras divas que se resumem a suas bundas e corpos esculturais; os espetáculos teatrais que não passam de escracho e tiração de sarro, ainda teremos que dividir espaço com máquinas que, na prática, nada mais farão do que sofisticar o velho ctrl c ctrl v? E ainda teremos que aplaudir isso, sermos gratos? Meu Deus!

Quer saber? Esse povo que enche o saco por tudo é só a ponta do iceberg. E uma hora o iceberg derrete.


domingo, 5 de maio de 2024

Madonna, Copacabana, 2024: uma catarse


"É o show do século", gritou uma fã, alucinada, na areia da praia, acompanhada por duas amigas, enquanto se dirigia ao palco. E desde que a rainha do pop anunciou sua vinda para o Rio de Janeiro, todos os admiradores no fundo já sabiam que tinha tudo para ser polêmico, histórico, antológico, inovador, avant garde, visionário... E foi. E como foi! 

Madonna encerrou ontem sua Celebration Tour na praia de Copacabana acompanhada por um coro de quase dois milhões de pessoas. E cá entre nós: é praticamente impossível explicar em palavras a dimensão do que foi essa noite. Logo, mal e porcamente dou aqui uns breves pitacos. 

Quem queria ouvir seus hits eternos ("Express yourself", "Vogue", "Live to tell", "La isla bonita", "Music", "Erotica", "Hung up", etc) saiu satisfeito. Teve até quem queria mais, muito mais. Afinal, ela é uma máquina de hits. Quem quis ver Anitta e Pablo Vittar, também aplaudiu, gritou, torceu, comemorou. E quem - como eu - quis ver um espetáculo à parte, ficou de boca aberta o show todo. 

Mais do que uma apresentação apoteótica, a Celebration Tour de Madonna é uma grande provocação aos falsos moralistas, bobalhões, fiscais do rabo alheio, fanáticos religiosos e outros segmentos sórdidos da nossa sociedade que andaram ganhando voz nos últimos anos. E nesse sentido, que bom que a material girl decidiu dar as caras justo agora, nesse Brasil (após um hiato de 12 anos sem se apresentar por aqui).  

Pugilistas e seus corpos impecáveis, uma espécie de puxada de orelha no conflito na Faixa de Gaza, sarcasmo, uma quase orgia no palco, uma leve incitação ao Kama Sutra, referência ao cineasta Alejandro Jodorowski, bailarinos crucificados, simulação sexual, os monólogos desaforados da cantora, desabafando sobre seu começo de carreira e os percalços até chegar onde chegou, desfiles despudorados, a talentosa filha ao piano, artistas brasileiros e vítimas da AIDS homenageados... E, claro, uma Madonna no auge e ainda mais frenética e à frente do seu tempo em seus extraordinários 65 anos. 

Ufa! Foi uma catarse. E no melhor sentido do termo, com tudo aquilo que os fãs aguardavam - e olha que teve gente dormindo na praia por quatro dias pra não perder o lugar - e mais um pouco. "Ela não quer voltar mês que vem, não?", eu fiquei me perguntando ao fim das duas horas de apresentação. Ah, Madonna! Só você mesmo pra me deixar desse jeito, sem fôlego!

Tivemos Rod Stewart e Rolling Stones nesse mesmo lugar tempos atrás, mas dessa vez foi covardia. Era tudo que precisávamos ouvir, sentir, comprar como reflexão para nossas vidas, em meio a tanta caretice, tanta babaquice, tanto conservadorismo de butique, tanta religiosidade de fachada. Obrigado, diva! Vou ficar devendo essa pro resto da vida. E volte quando quiser.

P.S: e vocês, chatos do cacete, que ficaram reclamando que ela fez playback, tocou sem banda... Vão procurar o que fazer! Definitivamente vocês não entenderam absolutamente nada. Na verdade, faz 40 anos que vocês não entendem essa mulher. Logo, se meter na história pra quê, hein?