quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Um épico só até a página 2


Assisti Napoleão, de Ridley Scott, e saí do cinema num sentimento misto de decepção e estranhamento. O projeto já prometia (no mau sentido) por conta dos comentários raivosos do diretor à críticas de historiadores acerca de "incongruências históricas" na produção. Deu no que deu. 

Um anexo importante: saí da sessão me lembrando de um outro drama histórico de Ridley, Cruzada (com Orlando Bloom e Eva Green), que também me desapontou muito na época de seu lançamento. Em ambos os casos o cineasta passa anos-luz do brilhantismo de seus melhores trabalhos (Alien - o 8º passageiro, Blade Runner, Os duelistas, Thelma & Louise, etc).

Em vários momentos do filme a narrativa me lembrou das antigas Enciclopédias Barsa e do Almanaque Abril que vendia nas bancas de jornal. Por quê? Um compêndio de resumos sobre fatos históricos os mais diversos se sobrepondo de forma atabalhoada, por vezes sem sentido. 

A edição do longa daria um grande estudo de caso sobre "como não realizar um longa cinematográfico" e tive a nítida sensação de que interferiram diretamente no trabalho do profissional. Sério. Não acredito que alguém como, por exemplo, a fenomenal Thelma Shoemaker, parceria de anos do Scorsese, permitisse tamanha intrusão por parte da produtora no seu processo. 

Até Joaquin Phoenix (que tenta dar vida à Napoleão) parece completamente perdido em meio à batalhas épicas e uma cinematografia escura em demasia. Era isso mesmo, Ridley? Você não queria que nós víssemos alguma coisa? Foi o que me pareceu em várias sequências. 

A morte de Maria Antonieta na guilhotina, Napoleão no Egito em meio às pirâmides, Maria Josephine e seus adultérios, Invasão da Rússia, Revolução francesa, a batalha de Waterloo... Tudo parece tão zoneado, simplesmente jogado diante de nossos olhos, sem que tivéssemos ao menos tempo para refletir minimamente sobre o contexto. Quer dizer: caso houvesse contexto. No final o que sobra é um épico só até a página 2, repleto de erros grosseiros e clichês.  

Não me surpreenderei caso o longa fature algum prêmio no Framboesa de Ouro. Seria merecido, principalmente pelo desleixo com a forma e a falta de respeito para com os fãs do gênero, que aguardavam esse projeto há bastante tempo. Não recomendo a ida ao cinema. Quem preferir aguardar a famigerada versão de 4 horas prometida no streaming, fique à vontade. Mas acho difícil que melhore tanta coisa assim. 

O próximo longa de Ridley Scott será Gladiador 2. Sai Russell Crowe, entra Paul Mescal na pele do protagonista, com direito à presença ilustre de Denzel Washington. Mas confesso: tenho receio do que vem por aí...


domingo, 26 de novembro de 2023

2023 foi realmente de alucinar


Em matéria publicada no Estadão (ou foi na Folha de São Paulo? Fugiu-me à memória agora! Ou um, ou outro) aparece que a palavra do ano escolhida pelo dicionário Cambridge foi Hallucinate - o verbo alucinar - e, a princípio, eu dou uma gargalhada, irônica. Mas logo a seguir, penso: não houve palavra que explicasse melhor o que foi 2023. 

Olhem ao redor, vejam o aconteceu e o que ainda está acontecendo no mundo. Só mesmo a alucinação explica o que nos tornamos. 

Os responsáveis pela escolha da palavra como definidora do ano dizem que ela remete ao fato de "parecer, ver, ouvir, sentir ou cheirar algo que não existe, seja por um problema de saúde ou por consumo de drogas". Mais: incluem na discussão o tema da IA (o que, por si só, já gera descontentamento e controvérsias), alegando que "é quando sistemas de inteligência artificial, que geram textos que imitam a escrita humana, alucinam e produzem informações falsas". O tema é complexo, eu sei...

Porém, mais do que viciados e máquinas que pretendem operar sozinhas a realidade - o que me faz lembrar dos androides de O exterminador do futuro querendo a cabeça de John Connor -, há também uma questão séria a ser discutida e que, para mim, dialoga e muito com a escolha da palavra: a cegueira ideológica. 

Vivemos numa era de total descompromisso com a história. Há quem queira, inclusive, apagá-la de vez, pois prefere acreditar que tudo não passou de mentira. Já um segundo grupo dá mais credibilidade às fake news e conceitos como pós-verdade (que, quando esmiuçados de forma crítica, mais parecem pura histeria, paranoia programada por grupos de interesse nada idôneos). E o resultado dessa catarse onde não se sabe mais ao certo o que é real, o que é ficção, é catastrófico.

Gente pedindo censura, querendo que livros sejam queimados (Ray Bradbury estava certo: o Fahrenheit 451 é real), teorias da conspiração ganhando força na internet, robôs e drones visando o controle da opinião e do espaço geográfico, o culto exagerado à beleza, à fama e ao show business (e dentro de uma estrutura cada vez mais propensa à escândalos e tragédias), etc etc milhões de etc.

Sim, alucinamos. Na verdade, a escolha bem poderia ter sido feita uns anos antes pelo dicionário Cambridge. E se não acordarmos, hoje, agora, sabe lá Deus o que sobrará de nós, reles humanidade!

"Que caminho tomar?", parece a única pergunta coerente a se fazer neste momento. Pena que este mísero blogueiro, colunista ou como quiser chamá-lo, não tenha a menor ideia de uma resposta plausível. E pior: a sociedade não está nem aí, completamente anestesiada pelo óbvio, pelo fútil, pelo "museu das grandes novidades", como bem disse certa vez o saudoso poeta do rock, Cazuza.

No fim, como aprendemos com as antigas telenovelas, resta "aguardar as cenas dos próximos capítulos". Mas que é aterrorizante, não tenham dúvidas... E com tendência a piorar. Rezemos que não.  

 


sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Ode à poesia


Ligo o computador e na primeira notícia mostrada no Google meu sorriso se abre espontaneamente. 

Ver a notícia na internet de que a nova edição da FLIP, em Paraty, reflete o bom momento da poesia no mercado editorial muito me alegra. Dentre os 44 autores convidados dessa edição 19 são poetas. E há meio que um microcosmo de tudo o que anda rolando no mundo e no país atualmente: da poeta canadense Dionne Brand que defende que a linguagem neutra é uma grande bobagem, um desperdício de tempo (e concordo com ela em gênero, número e grau) à poesia slam (fenômeno literário que ganhou força nos últimos anos e meio que reinventou a forma como pensamos esse tipo de texto).

Devo confessar aqui: custei a embarcar na poesia. Meu negócio antigamente era prosa, literatura policial então... Achava, na adolescência, o gênero um tanto quanto pedante, nariz empinado. Lêdo engano meu! Precisava conhecer (graças a Deus ainda novo) autores como Fernando Pessoa, Allen Ginsberg, Carlos Drummond de Andrade, Saphire, João Cabral de Melo Neto, os sonetos de Shakespeare, e muito mais (lógico!).

Ainda vejo a poesia como o grande desabafo, a grande fúria proposta pelo homem; o lugar onde defendemos nossas ideias e pontos de vista com unhas e dentes, custe o que custar, ao preço que for. Num mundo onde uma parcela gigantesca da humanidade prega - de forma terrível - contra as diferenças e o direito a questionar o grupo (principalmente quando o grupo não passa de uma manada sem sentido), a poesia explorou caminhos, sim, no plural, e mostrou por a mais b que não precisamos atender à expectativas. Precisamos, isso sim, sermos nós mesmos. 

Esqueçam a perseguição doentia e o compromisso desmedido com a norma culta (nem sempre ela atende às necessidades do autor); fujam dessa tentativa torpe de soarmos unicamente representativos ou simplesmente étnicos (às vezes isso só gera dissensões, divisões, rompimentos); não se limitem à estilos, padrões, formatos, caminhos. Leiam os grandes, vejam o que eles fizeram. E logo a seguir trilharam uma nova rota, recomeçaram do zero, de novo e de novo. 

A arte (e a poesia é um dos seus braços, a meu ver, mais ousados; mais corajosos) é feita de enfrentar riscos, encarar encruzilhadas, ouvir desafetos e suas eternas difamações. E no auge da batalha - seja contra leitores, editores, críticos, imprensa, etc - somente os corajosos seguirão adiante. Mais: serão lembrados. 

Vejo nessa ode à poesia na FLIP um sinal de bons tempos vindo à toa. Andava cansado de toda essa parafernália burocrática proposta pela literatura de auto-ajuda (que não passa de manuais de regras vazios, imprecisos, sonolentos). E aquela história de young adults como opção de leitura para jovens... Já deu, né!

Que a poesia dê as caras (de novo) com força e se estabeleça. Ela merece. E nós, leitores de bom gosto, também! 


quinta-feira, 23 de novembro de 2023

O registro vivo de um país que não evolui


Dentre as minhas muitas paixões particulares encontra-se, lá no topo da lista, as adaptações literárias feitas para os quadrinhos. Adoro a relação entre nossa literatura e a nona arte, principalmente quando o artista chamado para realizar o projeto é um profundo admirador da obra original. E digo isso porque nesses casos o artista engrandece ainda mais o texto-base.

Foi exatamente assim que me senti ao final da leitura (e releitura) de O pagador de promessas, obra teatral de Dias Gomes transposta para os quadrinhos por Eloar Guazzelli para a coleção Grandes clássicos em graphic novel, da editora Agir.

A história, mais do que conhecida para os fãs do teatro nacional (e que inclusive ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 1962 em adaptação para o cinema dirigida por Anselmo Duarte), nos traz a saga de Zé do Burro, que atravessa a cidade com uma cruz nas costas por conta de uma promessa feita à Iansã (que na religião católica é representada por Santa Bárbara) que salvou da morte seu burro, Nicolau. 

Ao chegar à igreja acompanhado da mulher se depara com a intolerância de Padre Olavo, que vê em sua promessa uma relação satânica e acredita piamente que Zé do Burro está, isso sim, tentando se passar por Jesus. Como consequência desse entrave, aparece todo tipo de oportunista querendo ou ganhar fama com o caso, ou destruir a vida do humilde pregador. Seja o jornalista tendencioso ou o cafetão que se aproveita da ingenuidade de sua mulher, são muitos os que querem lhe usar por proveitos próprios.

A chegada do Monsenhor e, posteriormente, da polícia ampliam ainda mais o clima de caos e o cerco sobre Zé do Burro. E o que resta como epílogo dessa trama insólita é o desfecho macabro.

Assim como na peça de Dias Gomes, a HQ de Eloar também mostra que o preconceito no Brasil é um caso antigo e de (quase impossível) solução. São muitos os agentes que alimentam esse ensaio sobre a cegueira religiosa. O que muda, no final das contas, é apenas o fato de que a ideologia extremista passa de geração à geração, construindo uma legião de idiotas que simplesmente não conseguem enxergar o mundo - e a sociedade - a um palmo do próprio nariz. 

Os traços de Eloar, embora simples, descrevem com exatidão a trama e sua paleta de cores é irresistível. A edição ainda conta com um prefácio luxuoso do poeta Ferreira Gullar que situa a narrativa para os marinheiros de primeira viagem. 

Recomendo efusivamente a leitura e, se possível, que leiam também a peça original. Além de ser um dos melhores textos da nossa dramaturgia, trata-se de um registro preciso sobre um país que não evoluiu com o passar das décadas - na verdade, não tem sequer interesse em mudar.

Procurem!!! 


segunda-feira, 20 de novembro de 2023

O rock ainda é possível


É triste não ver o rock protagonizando nada, muito por conta da caretice mundial, do excesso de jabá e o bundamolismo pop cada vez mais acentuado. Longe das estações de rádio e dos programas televisivos aqui no Brasil, o gênero musical sobrevive por aparelhos, sabe lá Deus como. Isso sem contar alguns expoentes que viraram reaças e bobalhões notórios. 

Pior: saber da capacidade que o rock possui de convergir com outras vozes, estilos, propondo parcerias que a priori você pensaria: "isso não vai dar certo". E ele prova que você estava absolutamente errado. Foi assim que me senti ouvindo o mais novo álbum da cantora Dolly Parton, Rockstar. E desde já adianto: não foi à toa que essa senhora entrou para o Hall da fama do rock n' roll. 

Dolly reúne clássicos do gênero em interpretações íntimas, mas não menos poderosas, e ainda canta lado a lado com feras do segmento, como Steve Tyler (vocalista do Aerosmith) e o eterno beatle Paul McCartney, dentre outros. 

Difícil eleger uma faixa que tenha me conquistado mais. A seleção de hits é grande e cada um deles é reinterpretado de forma tão melodiosa, tão brilhante, que é quase impossível eleger preferidos. Em outras palavras: o trabalho vale pelo conjunto da obra e a maneira como homenageia o rock e tudo o que ele nos proporcionou até hoje. 

Entre os sucessos, há um pouco de tudo: "Every breath you take" (do The Police), "Don’t let the sun go down on me" (de Elton John), "Stairway to heaven" (do Led Zeppelin), "(I can't get no) Satisfaction" (dos Rolling Stones), "Let it be" (dos Beatles), "Purple rain" (de Prince), "Baby, I love your way" (Peter Frampton), "Heart of glass" (do Blondie)...

Detalhe curioso: fiquei até surpreso com a dobradinha de Dolly, lado a lado nos vocais com Miley Cyrus, em "Wrecking ball".

Fãs do rock e amigos leitores, não deixem de dar uma chance a este álbum. Mais: a esta preciosidade. Ao fim das 30 faixas ouvidas no youtube, uma certeza me ficou clara. A de que o rock n' roll ainda é possível, e não somente por conta de bandas oriundas do Eurovision ou alguma artista pop que se aventurou por esse caminho nos últimos anos. Não. 

Mas é primordial fazer o público entender que (ainda) há espaço para ele, em meio a divas, sertanejos canastrões e invencionices que, muitas vezes, só duram um carnaval - ou festival - e nada mais.  


sexta-feira, 17 de novembro de 2023

That was entertainment!


Participei esta semana de um fórum online de cinema que discutia, entre outras temáticas, o futuro da sétima arte e as consequências da última greve dos sindicatos dos atores e roteiristas para a indústria cinematográfica. E em meio a debates acalorados vi muitos rostos (e discursos) de descontentamento com o caminho seguido nas últimas décadas pelo cinema blockbuster. 

De "a sensação é de que o sonho realmente acabou" à "o negócio e o lucro imediato engoliram a arte de vez", saí do evento com uma sensação de mau gosto na boca. Realmente, empresas como Marvel, DC, Lucas Film, Disney e outras corporações transformaram a palavra entretenimento numa coisa chata, repetitiva, em muitos casos até mesmo antipática (e os fanáticos, nerds, seguidores alienados contribuíram - e muito! - para isso).

Terminado o fórum ligo a tv, coloco no you tube e me deparo na tela inicial com a indicação do documentário Electric Boogaloo: the wild, untold story of Cannon Films, de Mark Hartley, legendado em português, na íntegra. Resultado: minha mente viajou no tempo pelo menos umas três décadas e me vi - de novo - fuçando prateleiras nas saudosas videolocadoras. 

Se você não viveu a época da Cannon Films, nunca entenderá o que eu senti - e ainda sinto - toda vez que me lembro do período (e das minhas peregrinações atrás dos filmes). 

Essa geração atual tem o Homem de Ferro, Capitão América, Thor, Nick Fury, Aquaman, Batman, Superman, Guardiões da Galáxia etc etc etc... Nós tínhamos Braddock (com Chuck Norris), Paul Kersey em Desejo de matar (com Charles Bronson), American ninja (com Michael Dudikoff) e o suprassumo do que existia de mais rico do que hoje chamamos de Cinema B. 

Electric Boogaloo nos apresenta o sonho (na verdade, um grande delírio que deu certo) dos primos Menahem Golam e Yoram Globus e sua saga para vingar em hollywood oferecendo uma opção "diferenciada" dos que os grandes estúdios produziram. E acreditem: eles realizaram uma façanha.

A Cannon era como uma espécie de fenda no tempo do mercado audiovisual. Podíamos torcer pela porradaria nos longas de ação como Assassinato nos EUA, Comando Delta, Stallone: Cobra (filme símbolo da minha adolescência), O grande dragão branco; acompanhar as aventuras de Allan Quattermain (algo como um Indiana Jones B, com Sharon Stone em começo de carreira) e também nos divertirmos com produções loucas como Lambada! A dança proibida, Breakin', O último americano virgem e o excêntrico musical A maçã.  

Grande parte desses filmes eram distribuídos aqui no Brasil pela America Video, que ficou famosa pela musiquinha que tocava nos trailers, parte da trilha sonora de Falcão - campeão dos campeões, um fenômeno da sessão da tarde nos anos 1980 que trazia Sylvester Stallone como um caminhoneiro que apostava todas as suas fichas num campeonato de queda de braço para sair do buraco e poder criar o filho.

Ao terminar de assistir o doc. me deu vontade, na mesma hora, de reencontrar a galera do fórum, desapontada com a indústria de hollywood, e enviar o link do filme para todos. Aposto que todos eles iriam se sentir como eu: renovados. Procurem no you tube! Ele ainda está por lá.

Aquilo, sim, era entretenimento, meus amigos! Quem viveu, não esquecerá jamais.       


domingo, 12 de novembro de 2023

Isso é um texto de respeito!


Como é bom ler alguém que sabe o que escreve (e como escreve). Nada vinha me irritando mais nos últimos tempos do que entrar em livrarias e sebos - estes últimos cada vez mais raros na cidade do Rio de Janeiro - e me deparar com autores fúteis, mas cheios de pose. Pior: sendo vendidos como a nova geração da literatura brasileira. 

E toda vez que me deparo com esses "exemplares", regresso à meus autores preferidos (Umberto Eco, Jack Kerouac, Philip Roth, Bernardo Carvalho, Rubem Fonseca, Mario Vargas Llosa, etc) e me reencontro com o bom texto. 

Há tempos procuro por Trêfego e peralta: 50 textos deliciosamente incorretos, coletânea de artigos (e algumas entrevistas) de Ruy Castro, nunca publicadas em livro até então. E desde que eu soube da existência desse livro tive a impressão de que ele prometia - e muito. Para a minha sorte, estava coberto de razão. Devorei-o em apenas 48 horas e ainda fiquei com um gostinho de quero mais. 

Ruy é praticamente um faz-tudo nesse meio da comunicação. De repórter do Correio da Manhã à autor das mais célebres biografias já produzidas no país (dentre elas, Carmen, O anjo pornográfico e Estrela solitária), é daqueles profissionais irretocáveis em tudo que faz. E com Trêfego e peralta não é diferente. 

Consegue dissertar com a mesma elegância e conteúdo pelos assuntos mais diversos. Da macaca Chita, companheira do Tarzan no cinema (vivido por Johnny Weissmuller) ao tropicalismo de Caetano, Gil, Tom Zé e companhia limitada; do Jack Kerouac, criador do seminal On the road, e ainda assim desmitificar toda sua grandeza editorial ao casal mais que louco (pelo menos, na época retratada) Baby Consuelo e Pepeu Gomes; do papel dos gatos como eternos vilões na cultura cinematográfica às memórias de 1968 e o que o AI-5 causou naquele período...

Na parte referente às entrevistas meu destaque vai para a conversa com o colunista social Ibrahim Sued. Se eu já o achava um contraditório por natureza, isso ficou ainda mais claro depois de ler o texto. 

Antes que me perguntem o que tem de tão extraordinário no texto de Ruy Castro, enfatizo dois pontos: a) ele escreve de forma simples, não inventa fórmulas, muito menos um discurso rebuscado, pedante; b) sua capacidade de reunir informações sobre praticamente tudo é assustadora. É como se deparar com uma enciclopédia humana. 

E isso, meus caros leitores, em tempos de exibicionismo e gente sem talento atingindo status de visionário, é artigo cada vez mais raro no país. 

Não quero me estender demais para não estragar a experiência alheia... Apenas finalizo esse breve post, dizendo: se tiverem a oportunidade de ler Trêfego e peralta, não a desperdicem. Das melhores coisas que eu li no gênero não-ficção nos últimos anos. Minha única decepção foi não ter conseguido lê-lo antes. Fica a dica. 


quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Os 3 hippies


Que delícia poder encontrar um clássico dos comic books depois de tanto tempo procurando a esmo! E no caso em questão os personagens só haviam sido publicados no país uma única vez, mais de cinco décadas atrás, na extinta revista Grilo...

De quem falo? Do trio Fat Freddy, Phineas Freak e Freewheelin Franklin, ou simplesmente Os fabulosos Freak Brothers, criação do mestre do underground Gilbert Shelton, aqui numa série de histórias curtas compiladas pela L&PM.

Ao lado do também mestre Robert Crumb, Shelton nos apresentou de forma ácida o lado B dos Estados Unidos, com suas contradições e eterna busca pela liberdade (e também por um modelo de vida alternativo).

Nas narrativas aqui reunidas testemunhamos o escárnio de seus personagens pra lá de desajustados, além da desordem, do desleixo, da falta total de assepsia e, claro, do inconformismo típico da sociedade hippie dos anos 1970. 

Entre baseados, bagunça e os inúmeros despejos (que os faziam, a todo momento, procurar um novo lugar para morar - e logo ser expulso de novo por falta de pagamento) acompanhamos a total incapacidade do trio para viver de forma minimamente sã. E acreditem: essa é a "melhor" característica deles!

Preferem gastar tudo que tem com erva do que pagar o aluguel, não admitem ser controlados por ninguém (principalmente mulheres), são sujos e desbocados por natureza e se tiverem a chance de passar a perna em alguém farão isso como estilo de vida. Em outras palavras: se publicados hoje em dia, seriam cancelados na primeira oportunidade. 

São o melhor estereótipo do politicamente incorreto que eu já li em toda a minha vida. 

Na última história da coletânea, então, Shelton nos propicia um show à parte e desnuda um pouco da própria história norte-americana, com sua linha tênue entre a chegada do progresso e o desejo de ganância de uma sociedade criada desde a origem para ser conquistadora. 

Procurem nos sebos e leiam, se tiverem chance. Os 3 hippies certamente estão entre as melhores criações da história da nona arte e todo leitor do gênero que se preze deveria conhecê-los. O quanto antes.     


segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Grande Mussum!


"Morreu, aos 53 anos, o comediante e sambista Antônio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum", dizia Cid Moreira, âncora do Jornal Nacional na TV Globo, em 1994... Eu me lembro como se fosse hoje. E principalmente: da tristeza que senti na mesma hora. 

Mussum foi das figuras mais engraçadas que eu já vi até hoje na televisão. Com lugar garantido junto à medalhões do nosso audiovisual como Chico Anysio, Jô Soares, João Dória, Oscarito, Grande Otelo e tantos outros. Tem gente que fica puto comigo até hoje quando eu digo com todos os esses que ele foi o melhor trapalhão. E foi, com folga. 

Não era oriundo do circo, não fez escola dramática, muito menos seguiu carreira no teatro. E, no entanto, detinha o mais fino humor dentro de si. Dito isto, fica aqui uma certeza: Mussum: o filmis, de Sílvio Guindane, é não só uma justa homenagem a este célebre músico e palhaço, como também um doce deleite para os fãs da comédia e, claro, os saudosos da minha geração, que sabiam que a tv naquele tempo era muito melhor. 

Aílton Graça encarna Mussum de forma ímpar; não consigo imaginar outro ator fazendo melhor. E mais: é engraçado por si mesmo, tanto quanto a personagem que encarna na tela. 

Acompanhamos a trajetória desse malandro carioca, mangueirense, flamenguista, viciado em mé e mulheres, do menino que descobre o samba por acidente e vai para o colégio interno, segue carreira na aeronáutica mas se encanta pela noite e o show business, casa, descasa e, que por ser hilário por natureza, cai nas graças de Chico Anysio, logo sendo engolido pelo mundo midiático. 

Os originais do samba, grupo do qual fez parte, um dos melhores do país naqueles tempos, e o programa Os trapalhões, hoje, se revistos com lucidez, foram grandes cerejas no bolo. O mérito mesmo é dele, Mussum, o humor cuspido e escarrado, que a princípio assustava a própria mãe, que não queria vê-lo zé ninguém na vida. Mal sabia ela a genialidade que o filho possuía!

Vemos a tiracolo a geração a qual o comediante fez parte (Cartola, Jorge Benjor, Alcione, Elza Soares, etc) e fica aqui um aparte: um excelente elenco negro que muitos espectadores aqui no país tem mania de esnobar por puro preconceito. Espero ver esse pessoal com mais frequência em nossas telas daqui pra frente.

Quem não conhece Mussum, seu trabalho, seu legado para a história da tv, vá correndo conhecer. Aposto que quando acabarem de assistir vão passar horas no you tube querendo mais (ah! um detalhe importante: adorei as reconstituições de alguns quadros do programa Os trapalhões. Nostalgia pura!). Já você que conhece ele de cor e salteado, que viu os programas, os filmes, comprou os discos, pelo amor de Deus, tá esperando o quê! Corre pro cinema, maluco! E aproveita pra dar uma força pra nossa sétima arte - que precisa e muito - de tempo de tela. 

Ao fim da sessão, chorei, como no dia que soube de sua morte. Ele era foda. Mais que isso: era a cara do Brasil. E se tem alguém fazendo falta hoje no país é ele. Grande Mussum! Fica em paz, meu caro! Você fez por merecer...  


sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Eles permanecem. Vivos.


Impressionante pensar que mesmo depois de mais de quatro décadas os Beatles ainda são capazes de chamar a atenção de tanta gente! 

A canção "Now and then", com auxílio da inteligência artificial na voz dos falecidos John Lennon e George Harrison, é lançada para delírio dos fãs, de hoje e de ontem. E ainda tem gente babaca e imediatista que defende que a beatlemania, na época, não foi essa coisa toda. 

John, Paul, George e Ringo conseguiram uma façanha que nenhum outro artista pop conseguiu em vida. Pararam o tempo, alucinaram multidões, tornaram-se não somente lendários como também verbetes na história da música mundial. Detalhe: num período em que a internet sequer sonhava em existir, que dirá as redes sociais. 

E eis que ressurgem agora, dois em formato digital (pois não se encontram mais entre nós) e dois mais vividos, conscientes de seus papéis dentro da indústria fonográfica, fazendo o que sabem de melhor. 

"Now and then" é, mais do que uma última canção, um resgate de uma era, o desfecho de um legado histórico e até hoje não repetido. Quando ouvi a faixa no you tube imediatamente senti vontade de ouvir de novo Sgt. Peppers, Revolver, Abbey road, a discografia completa... E acredito que muitos devem ter tido a mesma ideia. 

Não foi à toa que os rotularam na época de Fab Four. A magia não se perdeu e é visível nos olhos nostálgicos de Ringo e, principalmente, de Paul durante o clipe. Acho que deve ter passado todo um filme na cabeça deles, o quanto aquilo representou, porque teve de acabar como acabou, etc...

Sim, eles (os que partiram e os que ainda aí estão) permanecem vivos, em sua essência musical. E provam para muitos o quanto o cenário musical anda tão babaca, tão tatibitate, tão "dancinha e coreografia vazia", tão pouco ao vivo e muito playback. Tão carente deles. 

Que sirva de lição para a atual geração viciada em curtidas, compartilhamentos, viralizações, trending topics e status social. Música é mais do que isso, minha gente! Difícil é vocês entenderem isso...