sexta-feira, 30 de julho de 2021

Nosso cinéma vérité


Não existe nada mais triste para um cinéfilo de carteirinha do que ver a estrutura organizacional referente à sétima arte ser destruída ou mesmo arranhada, pois isso é a prova viva de que existem pessoas que não dão a mínima para o que está sendo feito ali. Pessoas que preferem acreditar que aquilo - a chamada sétima arte - não serve para absolutamente nada. É reles entretenimento barato. 

Dito isto, é muito triste ver de novo (não tem muito tempo tivemos um baque com o incêndio do Museu Nacional) uma sede pública ligada à Secretaria de cultura pegar fogo. Desta vez o atingido foi um galpão da Cinemateca Brasileira, na Vila Leopoldina, em São Paulo. 

Vi a notícia no telejornal à noite e vislumbrei um homem (certamente um produtor do meio) às lágrimas, reclamando do descaso com o lugar, que já vem sofrendo uma crise sem precedentes nos últimos anos. Mais uma vez a expressão "tragédia anunciada" recai sobre uma catástrofe nesse país de exageros, distorções e falta de memória. 

Sim, o incêndio na Cinemateca nos faz reviver uma velha máxima de nosso povo: somos um país de desmemoriados imediatistas, que não entendem a necessidade de produzir um legado ou uma história. Falar do ontem num país como o nosso virou sinônimo, nos tempos atuais, de esnobismo ou assunto "de quem não tem mais o que fazer da vida". 

E o roteiro que conduziu à tragédia na noite de quarta-feira é ainda mais assustador: incêndio no galpão em Vila Madalena em 2016 (que destruiu cerca de 500 obras), enchente no ano passado nesse mesmo galpão que pegou fogo anteontem, abandono, troca de gestão, entrega das chaves, funcionários demitidos, protestos... Sim, eu sei... Mais macabro do que isso, impossível!

Chego a crer que a tal tragédia anunciada é nosso melhor exemplo de cinéma vérité e que, diferentemente do formato original, não levará a nenhum reality show espalhafatoso ou mesmo tendencioso. Permanecerá, isso sim, nesse ostracismo e/ou desmantelamento cultural no qual estamos inseridos há tempos.

Já prevejo os eternos boçais de sempre inundando a internet com comentários grotescos de quinta categoria ou fazendo piadinhas negras do tipo "espero que tenha queimado os filmes dos comunistas do cinema novo, aquela raça desgraçada!" ou então "já queimou tarde! aquilo ali não servia para nada mesmo", isso só para lembrar do óbvio ululante, pois nessas horas aparecem declarações ainda mais horrendas, bem ao nível do mundo virtual contemporâneo cheio de prepotentes e ressentidos. 

E como bem diz o ditado popular em que "não adianta chorar sobre o leite derramado", só nos resta, como cinéfilos apaixonados, esperar ou rezar por dias melhores, estadistas mais interessados, gente comprometida com o futuro e a história e não somente com o lucro. 

E uma provocação vem à minha mente neste exato momento: aposto que se pegasse fogo a sede da Petrobrás na Avenida Chile, no Rio de Janeiro, muitos desses que hoje estão de braços cruzados já estariam se mobilizando para reconstruir o prédio. 

Embora um segmento político do país tenha dito que irá fazer uma representação criminal contra o governo para apurar a tragédia, tudo na prática ainda é muito raso (o que não deixa de também ser óbvio nessa pátria lenta e desinteressada). Logo, como terminar este texto-desabafo? Ora! Deste jeito mesmo. Inacabado. Que nem o Brasil. 


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