sexta-feira, 2 de julho de 2021

A outra Maria


Nunca se falou tanto de religião ao redor do mundo como do final do século XX para cá. Na verdade, corrijo-me: nunca fanatizamos tanto a expressão religião como na sociedade contemporânea. E dessa hiperpopularização dos dogmas e da necessidade deles funcionarem como botes salva-vidas para seres humanos desesperados nasceu também uma urgência na procura por profetas, salvadores da pátria e "homens e mulheres de Deus" em todos os lugares, esperando na esquina mais próxima. E quando o assunto é milagre, então... Já viu o caos! 

Com o passar dos anos fui aumentando meu descrédito por esse tipo de gente que simplesmente não consegue enxergar a realidade com os próprios olhos e precisa doentiamente de uma muleta (pode ser um padre, um pastor, um Dalai lama, um jesuíta, enfim...). Contudo, o tema desespero religioso no cinema continua chamando a minha atenção e vejo o gênero quase como uma denúncia a certas práticas do setor. 

Esta semana eu enfim consegui assistir o interessante Rogai por nós, longa-metragem de estreia da diretora Evan Spiliotopoulos (responsável pelo roteiro do live action de A bela e a fera para a Disney), do qual eu vinha ouvindo comentários instigantes na internet. E ela fala, à sua maneira, exatamente dessa mentalidade torpe dos chamados religiosos de carteirinha. 

No longa, a jovem muda Alice (Cricket Brown) começa a ouvir a voz de uma mulher que ela considera ser a da Virgem Maria e reúne um número gigantesco de fiéis ao redor da pequena cidade onde vive. Alguns moradores preferem sair do povoado o quanto antes - por acreditar que o ocorrido possa estar relacionado à algo maligno num futuro próximo -, enquanto outros almejam permanecer ali por tempo indeterminado, pois acham que ela trouxe a esperança vindoura tão aguardada. O Vaticano manda um especialista para investigar a jovem e comprovar o milagre por trás dela, mas a moça exige nos encontros a presença de Gerry Fenn (Jeffrey Dean Morgan), um jornalista expert em matérias sensacionalistas. 

O resultado não poderia ser outro, é claro: embates entre o funcionário do Vaticano e o padre da paróquia, tio de Alice, com Gerry. Mas à medida que o jornalista vai investigando o caso e descobre a existência de uma outra Maria, esta uma força bem mais diabólica do que a mãe de Cristo, ele percebe que na verdade a população que rodeia a jovem Alice está se tornando refém de uma trama maligna com possíveis consequências catastróficas. E decide denunciar suas suspeitas, para repulsa dos interessados em perpetuar o milagre. 

Rogai por nós é aquele tipo de produção no limiar entre o terror e o gospel que me faz pensar no quanto estamos equivocados como sociedade. E o pior: todo esse equívoco é tratado com grande deboche por parte daqueles que preferem ser cegos a questionar certas profecias ou desígnios supostamente sacros.

Vivemos tempos sombrios e a sociedade atual - como já disse antes, desesperada -, espera sofregamente por falsos ídolos que lhes devolvam a esperança de épocas passadas, hoje rotuladas de "tempos melhores" por uma gigantesca fração do mundo que nunca enxergou a realidade como ela realmente era. Perdemos, em nosso íntimo, a capacidade de sermos lúcidos e quando o assunto é fé tudo parece um grande jogo ou disputa de poder. Capitalizamos nossas crenças e afetos a tal ponto que até mesmo falar em nome de Deus virou um assunto monetário dos mais lucrativos. 

Deem uma boa olhada nos fieis das igrejas e templos que vocês, leitores, frequentam e vejam quantos estão ali somente pensando em mudar de vida (leia-se: status social). Trata-se do traço mais mesquinho da chamada teologia da prosperidade. Nunca associamos tanto o criador à bens materiais e, ao mesmo tempo, nos fingimos de santos ou humildes. Todos se dizem cristãos, mas quase ninguém pensa de fato no restante da humanidade. 

Se Alice, protagonista desta história nefanda (e quem ouviu de fato o suposto milagre) foi objeto de um embuste em forma de possessão, imaginem então os devotos de parca instrução que abundam as instituições religiosas atuais. E olha que eu nem cheguei a mencionar o número de igrejas que vêm sendo incendiadas ao redor mundo nos últimos anos por desafetos religiosos interessados em projetos de poder inescrupulosos. Como eu disse dois parágrafos atrás: tempos sombrios. 

O Padre Hagan (William Sadler), tio de Alice, em determinado momento do longa diz ao jornalista em busca de prestígio que teme as consequências por trás do milagre envolvendo a sobrinha. "Pois quando Deus constrói uma igreja, o diabo costuma construir uma capela logo ao lado", ele diz. E eu complemento com o seguinte raciocínio: normalmente quando a escuridão e a sombra dão as caras em algum lugar a cegueira está sempre presente em larga escala, aplaudindo-as. Assim na arte como na vida. E de certeza apenas uma: não será a última vez que a sociedade será enganada, seja na ficção ou na vida real. E por culpa dela mesma e de seus exageros morais. 

P.S: enquanto os créditos iam descendo a tela eu me peguei pensando: os fãs do recente longa Deus não está morto vão gostar disso aqui! Tirem a prova dos nove, quem quiser.  

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