domingo, 11 de julho de 2021

Um repouso lírico e aconchegante


É triste ter que testemunhar o amargo momento em que vive a música popular brasileira. Não me lembro de ter ouvido tanta coisa ruim ou meia-boca como nos últimos anos. E continuo preferindo os clássicos ou os novos trabalhos de quem hoje é clássico por mérito. Mais: termino de ler o extraordinário 101 canções que tocaram o Brasil, do escritor e produtor musical Nelson Motta, e me pergunto onde foi que erramos ou simplesmente saímos da estrada da forma tão retumbante. 

Já mandamos aquele braço a quem merecia, estivemos à procura da batida perfeita, tivemos coração de estudante, deixamos a vida nos levar, exibimos nossas emoções, nossa mania de você (de você só, não! de você, de mim, de todos nós), exaltamos a pérola negra, metamorfoseamos de forma ambulante, nos encaramos olhos nos olhos, esmiuçamos o país tropical, explodimos corações e muito, muito mais. Em suma... Se existe (ou existiu) algo rico em nosso país foi nossa música. Pelo menos, até agora. 

E eis que a cantora Marisa Monte - sempre ela - entrega exatamente o álbum musical que eu vinha esperando em tempos de covid, negacionismo, e gente sem noção falando besteira aos quatro ventos enquanto o país sucumbe a olhos vistos. E o nome desse álbum é Portas.  

Uma palavra para resumir esse trabalho: lúdico. Marisa mescla sonoridades, poesias e intenções as mais diversas à serviço da boa música e ainda dá uma cutucada na sociedade perdida de hoje (que o diga sua faixa título, que abre falando de escolhas - um tema atualíssimo no Brasil de hoje -, criticando a parcela da população que trata o país e o mundo como se ambos se resumissem à procura de um único caminho. Pobres coitados!).

A seguir emenda com "calma", faixa que já havia sido lançada como single e chamado a minha atenção logo de cara. Aqui ela fala do futuro e pede calma e serenidade a seus ouvintes, para dias melhores que hão de vir. "Depois do escuro vem a alvorada", completa ela. E eu concordo. O país anda impaciente, a música de Marisa - graças a Deus - não. Detalhe importantíssimo: prestem atenção no arranjo com os instrumentos de sopro. São um charme à parte. 

Da terceira faixa em diante o que vem é festa, pois a cantora já ganhou o seu público e como boa letrista (e jogadora) que é, apenas administra a partida que já está ganha com requintes que são pura genialidade. 

Saudades de um tempo que já passou, baladas românticas, a brincadeira com o jargão popular "Quanto tempo o tempo tem?", o amanhã, o amor, o risco, palavras, versos, melodias, tons, poetas, ideias, musas, plateias, odisseias, acordes, harmonia, santos, sentimentos, clima bossa nova, uma road music, desconstrução da língua portuguesa... Ufa! Marisa Monte é uma enciclopédia cultural. E assombra, pois parece tão novinha! Parece às vezes impossível que ela conheça tanta coisa. Mas conhece. 

E tudo isso luxuosamente acompanhado por uma guitarra poderosa; um piano esfuziante, escandaloso; flautas assustadoramente inebriantes e uma percussão que... Meu Deus! Sim, é o disco do ano o que eu estou ouvindo. 

Duas faixas ganharam minha predileção com folga: a primeira é "A língua dos animais": A canção mais Marisa Monte do disco. Viajei no tempo em seus álbuns anteriores (principalmente Memórias, crônicas e declarações de amor e Infinito Particular). É por causa de músicas como essa que me tornei fã de longa data da cantora. Ela praticamente "conversa" com a natureza. E a segunda é o samba "Elegante amanhecer", onde a cantora, de forma magistral, homenageia a Portela - sua segunda casa - e o carnaval.  

Ao fim do disco, acompanhada dos parceiros Seu Jorge e Flor, Marisa fala em melhoria (e nós estamos precisando - e muito). Ou seja: ela entrega o que eu chamo de um repouso lírico e aconchegante em tempos de fúria, ódio, extremismo e ignorância. E isso pode até parecer pouco para muita gente metida a importante, mas não é, não!

Agora só me resta ouvir mais umas quinhentas ou mil vezes, até enjoar. E ouvir de novo. Pois como disse no primeiro parágrafo: está tão difícil ouvir MPB de qualidade hoje em dia que quando eu encontro é melhor aproveitar ao máximo. Pois vai que desaparece do nada... 


Sem comentários:

Enviar um comentário