quarta-feira, 28 de julho de 2021

Peru com mel, de Vila Isabel


Eu acredito piamente que certas pessoas entram na vida da gente para virá-la de ponta a cabeça no melhor sentido do termo. E não fossem elas certamente o meu mundo - não! o nosso mundo - seria infinitamente menor. No meu caso, fui invadido desde moleque por figuras antológicas das quais volta e meia preciso falar e falar e falar de novo. E sou insistente nisso, pois acredito que as novas gerações precisam conhecer essas pessoas também (às vezes na marra). 

Foi assim com Maria Clara Machado e seu Tablado; com Graciliano Ramos que me ensinou a ler ainda novo, devorando Vidas secas e São Bernardo; com as histórias em quadrinhos de Stan Lee, Maurício de Sousa e Ziraldo; com o palhaço Bozo no SBT; com o deboche anárquico de Nelson Rodrigues em Vestido de noiva, A falecida e Toda nudez será castigada, que o Brasil sempre teimou em rotular de anjo pornográfico. 

E podem ter certeza: foi assim com o ator, comediante, dublador e gênio Orlando Drummond. 

Eu não consigo imaginar a minha infância e adolescência sem ouvir a voz do Orlando. Ele era mestre supremo. Ficava na frente da tv tentando imitá-lo a qualquer custo, mas nada consegui. Era batalha injusta, desigual. Eu não tinha o dom. Porém, mais do que ouvi-lo passei a entender esse país através de sua voz e descobri que o brasileiro, mais do que um sobrevivente, é um ser humano que gosta de aproveitar a vida. Do jeito que for. 

Passo pela sala e ouço com tristeza que Orlando Drummond faleceu, aos 101 anos, vítima de complicações por conta de uma infecção urinária. Ele estava internado desde maio e chegou a ser vacinado contra a covid. Uma pena! Tenho certeza que a minha geração sentirá - e muito! - a sua falta. 

Drummond foi contrarregra, trabalhou na TV Tupi, foi "lançado" (palavras dele) pelo ator e também gênio Paulo Gracindo, imitou Elvis Presley, atuou, fez rir e muito. Mas minha primeira lembrança dele foi como dublador de vozes que até hoje eu continuo ouvindo porque minha criança interior não consegue viver sem elas. 

Ele foi Scooby-Doo (e graças a ele entrou para o Guiness Book, o livro dos recordes); o marinheiro Popeye; o extraterrestre Alf, de Melmack; O vingador, eterno vilão do desenho Caverna do dragão; Patolino; Gato Guerreiro, parceiro do He-man; Frajola, sempre correndo atrás do piu-piu; Hong Kong Fu, Bionicão, Gargamel, o algoz dos Smurfs; A coisa; Papai Smurf, Lex Luthor, em Superamigos etc, etc e haja etc para explicar 80 anos de uma carreira tão longínqua.

Já em sua versão live action (ou: de carne e osso mesmo) seu personagem mais famoso foi, sem sombra de dúvidas, o Seu Peru, o homossexual divertidíssimo da Escolinha do professor Raimundo. Com seu bordão afiadíssimo "Peru com mel, de Vila Isabel" desancava figuras históricas, duvidando da masculinidade delas, sempre querendo levá-las para a irmandade. Mais politicamente incorreto e genial, impossível!

Ao procurar na internet informações sobre sua profícua carreira, encontro no IMDb o crédito dele no filme Bonga, o vagabundo, dirigido por Victor Lima em 1971, um clássico com Renato Aragão anterior ao sucesso com o grupo Os trapalhões na Rede Globo. E na hora me pego aturdido, pois vi o longa muitos anos atrás e não me lembrava da presença dele. Eis um bom motivo para reassistir agora, não é mesmo?

Orlando é dessas figuras midiáticas que você, escritor, sabe de antemão que deixará o texto incompleto, pois há tanto a dizer e tão pouco tempo. Logo, só me resta agradecer por tudo o que ele me ensinou e, claro, continuar a ouvir a sua voz nos youtubes e vimeos da vida. Esse, como ele próprio provocava, usou e abusou. 

Fica com Deus. Você, com certeza, fez por merecer!!!


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