sexta-feira, 21 de maio de 2021

Um fruto incomum


Adoro história e tenho uma relação um tanto quanto sarcástica com ela. Embora saiba que, muitas vezes, alguns historiadores não consigam fugir da ideia de que ela seja uma grande fabulação e, portanto, está sujeita as mais diversas, subjetivas e por vezes calhordas interpretações, ainda assim sempre que posso estou debruçado em algum livro sobre o tema. E desde já adianto: gosto dos mais diferentes assuntos. Guerra do Vietnã, Capitanias hereditárias, Inconfidência mineira, Feudalismo, etc etc etc. O céu é o limite quando estou dentro desse universo. 

Contudo, é preciso dizer aqui que a história, a maneira como ela é contada muitas vezes, me faz pensar que ela (e nesse caso, leia-se: o sistema, as autoridades, etc) gosta de perseguir àqueles que não se adequam ao padrão imposto por um regime determinado. Todos aqueles que não obedeceram as regras do jogo, que não abaixaram a cabeça para os "donos do poder", de alguma forma pagaram um preço alto por isso. Veja o caso, por exemplo, da cantora Billie Holiday. 

Em 1937 uma lei que revogava o linchamento que era imposto à comunidade negra norte-americana não passou no Senado e a cantora decidiu fazer de uma canção, "Strange fruit", um manifesto contra a injusta decisão. Os críticos musicais da época rotularam a canção dela de "uma interpretação lírica sobre a violência que era cometida contra o povo negro". Resultado: o governo federal se incomodou. Mais do que isso: era preciso tirar aquela mulher de circulação o quanto antes. 

E para isso, o FBI, na figura do diretor Harry Anslinger, decidiu perseguir a artista por conta de seu vício de longa data em heroína. Pior: escondeu essa perseguição sob a falsa alcunha de que se tratava do combate às drogas e ao narcotráfico que assolava o país. Entretanto, muitas pessoas brancas também viciadas não sofreram a mesma compulsiva investigação. Teria, então, não passado tudo isso de racismo disfarçado? 

Para esmiuçar questões como essa e tantas outras, mais de sete décadas depois o diretor Lee Daniels - do extraordinário Preciosa -  realiza o excelente Estados Unidos vs. Billie Holiday e se debruça sobre um país que em nada difere do atual Estados Unidos da América da era Trump. Na verdade, ele só era naquele período mais cínico. 

Billie Holiday (interpretada pela cantora Andra Day), à parte o fato de ter sido uma das maiores cantoras da história dos EUA, comeu o pão que o diabo amassou desde a infância e sabe como poucas o real significado da palavra sofrimento. E não bastasse isso viu sua vida ser devassada e rotulada nos mais perversos níveis por ditos "homens da lei" que não passam de figuras preconceituosas ao extremo. Anslinger (vivido por Garrett Hedlund), que no fim da vida chegou a ser homenageado pelo presidente Kennedy por "bons serviços prestados ao país", de tão covarde se presta a ter um bode expiatório na figura de um agente negro em ascensão, o jovem Jimmy Fletcher (Trevante Rhodes). Tudo para que, no futuro, não seja lembrado como racista e que digam que ele também deu oportunidades de crescimento à pessoas da etnia. 

Parece cruel e é. Billie é presa, sofre maus tratos, tiram-lhe sua licença para trabalhar, é obrigada a se apresentar ilegalmente e se não fosse suficiente o inferno astral pelo qual passou, ainda por cima fez escolhas de vida terríveis, como o péssimo gosto que sempre teve para homens violentos e que só fizeram lhe explorar. Sim, ela muitas vezes foi a própria responsável pela tragédia pessoal que viveu. 

Como pano de fundo para realçar a história de provações e injúrias cometidas uma direção de arte impecável, a trilha sonora espetacular (cabe aqui um aparte: embora Andra Day seja uma cantora interessantíssima, aqui ela é dublada por Billie e achei a escolha do diretor acertadíssima, pois a musa do jazz é realmente insuperável) e um clima de nostalgia que sempre me aprisiona de cara. Como disse no parágrafo de abertura: adoro história e o passado sempre mexe comigo de alguma forma. 

Assim como sua canção polêmica, motivo de todo o revés que sofreu, Billie também era um fruto estranho, incomum, pois não se submetia aos ditames do que a América considera correto, polido, de bom tom. Durante uma entrevista que ela concede o jornalista lhe pergunta: "por que você simplesmente não acata as decisões do governo? Até quando vai aturar todo esse sofrimento?". Porém, trata-se de um homem branco. E isso diz muito sobre o país no qual ela vive. Pessoas como ela não podem ter opiniões ou fazer escolhas próprias. Precisam, isso sim, ser marionetes de uma estrutura tendenciosa, fabricada para colocar toda uma classe no seu devido lugar. 

Ao final da projeção fico me perguntando o que faltou para Estados Unidos vs. Billie Holiday entrar na lista de indicados ao Oscar desse ano. Era, pelo menos para mim, evidente ser uma produção bem melhor do que ao menos dois dos oito indicados. Deve ter faltado lobby para tanto. Mas enfim... Quem perdeu com isso foi a própria Academia de artes e ciências cinematográficas que realiza o evento.

E quem como eu é fascinado pela história, pelo ontem e pelas eternas distorções que o mundo promove de tempos em tempos, tem aqui um prato cheio para refletir nessa época de tanta alienação e falta de caráter. 

P.S (eu quase deixei de fora, mas minha língua coçou): se puderem, conheçam toda a cinematografia do diretor Lee Daniels. É das melhores coisas que apareceram em hollywood nos últimos anos. 


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