Nunca se sabe de que maneira nos depararemos com grandes ideias ou autores. Às vezes eles entram em nossa vida da maneira mais inusitada possível. Aconteceu comigo essa semana.
A primeira vez que eu ouvi falar da escritora, cantora e roteirista Maya Angelou foi mais ou menos uns dois anos atrás, por conta de uma citação que a atriz vencedora do Oscar Viola Davis fez a respeito dela numa cerimônia ou do Critics Choice Awards ou do SAG Awards (confesso que não me lembro ao certo em qual dos dois eventos foi) e a impressão que eu tive foi de se tratar de uma mulher guerreira, que não levava desaforo para casa. Mais do que isso: suas palavras denotavam um sentimento de sobrevivência constante e de enfrentamento diante de um mundo opressor.
Daquele dia em diante decidi procurar por sua obra com afinco. E a princípio não foi nada fácil encontrar os livros dela. Cheguei a ver um de seus títulos escapar por entre meus dedos por coisa de uns 10 segundos. Uma senhora de seus 60 anos chegara no último exemplar disponível na Livraria Cultura do centro da cidade aqui no RJ - hoje já fechada - antes de mim. E eu fiquei semanas me perguntando porque eu não entrara antes na loja. Enfim... Eu perdera aquela disputa, mas não a próxima.
E digo isso por um motivo engraçado: toda vez que eu quero muito ler um autor ou autora a vida parece conspirar para que eu tenha acesso a ele (ou ela). E não é que dois anos depois me deparo com seu exemplar Carta à minha filha dando sopa no site Le Livros? Bom para mim que tive uma das experiências de leitura mais agradáveis deste 2021 até agora.
Carta à minha filha é composto de um conjunto de textos curtos, mas que nem por isso deixam de possuir uma profunda força narrativa. Falam de saudade, abandono, segurança, esperança, preconceito, autodescoberta e muito mais. E não somente isso: eles reforçam uma ideia que já havia sido defendida tempos atrás pela apresentadora e atriz - também ganhadora do Oscar - Oprah Winfrey. A de que "Maya Angelou era o que escrevia. Ela entendia que compartilhar sua verdade a conectava às maiores verdades humanas (...) é a percepção de quem você realmente é e a liberação que o amor traz". E nisso ela sempre esteve coberta de razão.
Ela começa o livro falando da casa e de como estamos seguros dentro dela. Digo mais: talvez ela, a casa, ainda seja nosso último refúgio sensato diante desse mundo louco, esquizofrênico e perturbador em que vivemos. Logo a seguir, proclama que a maioria das pessoas não cresce. E levando-se em consideração o que tem se tornado a humanidade nos últimos anos torna-se impossível desmenti-la.
Maya fala de tudo um pouco: da filantropia (ou a arte de doar um pouco ao próximo), da grande frustração que foi a perda da sua virgindade, do nascimento do filho, de espancamento que sofreu, das eternas mentiras sociais que regem o mundo, do estupro como ato de violência, da maneira equivocada com que a sociedade trata temas como obesidade e vulgaridade, da incomunicabilidade que vem nos destruindo nas últimas décadas, de benções, de seu eterno fanatismo pela cantora cubana Celia Cruz, da dificuldade em lidar com produtores de cinema, de grandes figuras afro-americanas (muitas vezes esquecidas pelo seu país), de amigos queridos que já partiram, da vida de professora universitária, da experiência como mediadora de conflitos e mesmo do futuro, que parece um tanto turbulento à primeira vista.
Além disso a escritora inclui no volume alguns poemas seus poderosíssimos sobre sobrevivência e termina a obra falando sobre Deus e, principalmente, "manter a fé" em tempos sombrios como os atuais.
Há, inclusive, um texto em específico, de nome "Poesia", que já valeu pelo livro todo. Só pela possibilidade de conhecer poetas negros extraordinários, de quem nunca ouvira falar antes por culpa de um mercado editorial que só se interessa que a maioria dos leitores olhem, ao mesmo tempo, para a mesma direção e os mesmos estereótipos consagrados, não permitindo que enxerguemos além da bolha (ou do algoritmo, como anda bem na moda atualmente). Recomendo a quem procurar o volume que comece por este texto. Aliás, a obra não exige uma leitura cronológica. É possível passear pelas páginas seguindo seus próprios interesses.
Ao final da leitura, percebo que me deparei com o perfil de uma mulher de fibra, que não se abateu diante de todas as porradas que levou da vida nem das adversidades que sofreu e entregou de forma precisa a sua interpretação coesa sobre o mundo ao qual (sobre)vivemos. E sua literatura é de uma lucidez assustadora, talvez até mais hoje do que na época em que foi concebida. E isso, meus caros leitores, é para poucos. Bem poucos.
E como bem diz a colaboradora do ator Lázaro Ramos no programa Espelho do Canal Brasil, Fernanda Felisberto: "Gostou do livro? Quer saber mais sobre ele?". Então vai à luta e entre na primeira livraria que você encontrar. Até porque não me parece ser o tipo de livro que fica dando pinta muito tempo nas prateleiras, não! E quem avisa, amigo é.
Sem comentários:
Enviar um comentário