quinta-feira, 13 de maio de 2021

A cloaca do universo


Quando eu era mais novo tinha uma enorme dificuldade de entender Deus. Cheguei a tratá-lo como uma reles invenção humana. Com o passar dos anos e a chegada da adolescência entendi, enfim, que o problema de fato não era o criador e sim a própria humanidade, com sua eterna mania de distorcê-lo e transformá-lo numa coisa que em essência Ele nunca foi. Hoje posso dizer com enorme tranquilidade e também pesar que pioramos - e muito! - nesse quesito. 

A sociedade brasileira nunca esteve tão enfadonha, arcaica e principalmente raivosa. Passeio pelas ruas e vejo a virulência e a antipatia com que se trata o discurso religioso nos dias de hoje. Odeia-se simplesmente pelo fato de não comungarmos da mesma fé ou "acreditarmos no mesmo Deus" que os outros (e isso por si só, a alienação ideológica do "meu Deus", "seu Deus", etc, já é uma contradição em termos e em nada acrescenta em nossas vidas).  

E eis que me deparo com A idade de terra, último longa-metragem do cineasta Glauber Rocha, realizado em 1980, junto a um sem número de filmes nacionais disponibilizados no Now, serviço de video on demand da operadora ClaroNet. E ele fala exatamente disso bem antes do surgimento de qualquer rivalidade motivada por polarização política (como vemos nesse conturbado século XXI). 

A idade da terra surge da ideia de Glauber homenagear o também cineasta Pier Paolo Pasolini, recentemente assassinado. Em monólogo proferido pelo próprio diretor no longa ele diz que "sempre teve vontade de realizar um filme sobre a vida de Cristo num país do terceiro mundo". E aqui ele tem finalmente a chance. Se conseguiu ou não, somente os cinéfilos e fãs de sua obra poderão dizer. 

Glauber nos apresenta diferentes versões de Jesus: o Cristo negro (Antônio Pitanga), praticamente um Ogum encarnado; o Cristo índio (Jece Valadão); o Cristo militar (Tarcísio Meira), uma mescla de profeta e ditador, porém muito bem construída e o Cristo revolucionário (Geraldo del Rey), de pistola na mão e tudo. E a intenção de todos eles é combater o industrial Brahms (Maurício do Valle), cuja única crença é na salvação do mundo através do poder e das instituições, logo um devoto ferrenho do capitalismo. 

Corrupção política. poluição dos mares, a eterna condição de subjugado da classe trabalhadora, críticas à chamada "revolução de 1964", a falta de fé de grande parte da população em dias melhores por vir... O longa de Glauber, mesmo passados 42 anos de sua estreia, tem todos os elementos necessários para ser odiado pela atual sociedade brasileira, que pede a volta de um passado que ela própria não conhece ou entende e ainda por cima o transforma num grande oásis de plenitude. Logo, não discute absolutamente nada de forma crítica, pois prefere a crença no ilusório e num suposto discurso do "antigamente era muito melhor".

Em determinado momento da história o Cristo militar se refere ao que os brasileiros daquela época estavam vivendo como a cloaca do universo. E o Brasil ainda é exatamente isso. Um país cujo povo não conhece o próprio idioma, a própria cultura, não possui uma identidade nacional, acha que tudo o que é importado é infinitamente melhor do que o feito aqui, não sabe sequer cantar o próprio hino nacional e ainda assim se diz patriota de carteirinha. Tristes tempos vivíamos e ainda vivemos! 

Muitos verão A idade da terra apenas como um conjunto de colagens anárquicas, denunciatórias e desesperadas. E o filme, de fato, é confuso, não cronológico, e por vezes perturbador. Seus personagens, mais do que falar, berram. Seus monólogos são vômitos irracionais acerca de um país que simplesmente se recusa a dar certo. Contudo, trata-se da República Federativa do Brasil e nós, os ainda lúcidos sobreviventes dessa nação controversa, sabemos o quanto não poderia ser esta história contada de outra forma. 

Ao final do longa vemos um grupo de cidadãos brasileiros seguindo uma procissão religiosa. Eles acompanham um imagem sacra pelas ruas. Pelos trajes que vestem, percebe-se claramente que pertencem a classe menos favorecida do país. Quando veem a câmera de Glauber param, fazem pose, se exibem, sorriem. Naquele exato momento a liturgia perdeu completamente o seu sentido original. Virou objeto secundário diante de um traço cultural nosso: a eterna mania dos menos afortunados em buscar a fama a qualquer preço, onde quer que seja. 

E me pergunto neste exato momento: ainda é possível acreditar num país como esse, onde os que trabalham para manter o país de pé não veem sua existência de forma séria ou equilibrada? Ou será que já passou da hora de admitirmos de uma vez por todas que é tarde demais e nossa população simplesmente não aprendeu nada com seus próprios erros? Para mim, esse é o grande legado desse filme. 

E ainda assim vai ter gente que não entenderá uma vírgula sequer dele e tentará transformá-lo numa peça antipatriótica ou em "inimigo público número 1 do país". 


1 comentário:

  1. Assisti a cerca de 40 anos. Na época fiquei impressionado e confuso. Seu comentário me fez querer revê-lo.

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