segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Os EUA estão em colapso (e não é de hoje)


Nunca acreditei no discurso de Império, pois ele sempre esconde falcatruas monumentais. Nunca se sabe ao certo o que existe de real no discurso do imperialista, fodão, todo-poderoso. A única "certeza" (digamos assim) é: existem os que babam o ovo do sistema e existem aqueles que confrontam o sistema. E dependendo do tipo de interpretação que você tenha, esse segundo grupo pode ser chamado tanto de revolucionário quanto de terrorista. Cabe a você, interlocutor, escolher a definição que melhor lhe agrade.

No caso particular de Bob (Leonardo DiCaprio) e Perfidia (Teyana Taylor), os catalisadores principais da trama de Uma batalha após a outra, obra-prima contemporânea do diretor Paul Thomas Anderson, a escolha foi o grupo revolucionário Friend 75 que, cansado do tratamento dado às minorias e imigrantes ilegais, decidem tocar fogo no país, da forma que for possível. E mesmo que a priori essa história se passe durante o governo Reagan, ela tem raízes muito mais profundas e incômodas.

Como toda dupla "criminosa" (vocês já entenderam o significado das aspas a essa altura, não é mesmo?) que se preze, faz-se necessário um adversário ou algoz. E ele está presente na figura do obstinado e contraditório Coronel Steven Lockjaw (Sean Penn, fantástico!), que também nutre um desejo quase doentio por Perfidia. Após a prisão dela - que vai parar no programa de proteção de testemunhas, depois de trair seu próprio grupo - e sucessivo desaparecimento, o roteiro se volta para Bob e a "filha" do casal, Willa (Chase Infiniti, uma grata surpresa!) que, 16 anos depois, se vê novamente como alvo do Coronel, bem como um segmento político dentro do país que acredita piamente na supremacia racial.

O resultado? Uma hecatombe em forma de filme político com altas doses de adrenalina.

Há muito do que gostar em Uma batalha após a outra. A começar pela trilha sonora, misto de apaixonante e incômoda, de Jonny Greenwood, uma das melhores - senão a melhor - dele. Os planos sequências magistrais de PTA estão, logicamente, presentes de novo. O elenco extremamente bem escalado e pontual quando precisa se fazer presente. E se, por um lado, é extremamente difícil adaptar o romance Vineland, de Thomas Pynchon, para as telas (e todas as obras literárias escritas por ele são!), por outro é sublime ver o diretor procurando soluções impactantes que funcionem, não como lacunas, mas como outros pontos de vista, outras perspectivas possíveis.

O filme de Anderson surge num momento extremamente propício para debates, em plena era Trump parte II, dessa vez ainda mais cruel do que o mandato anterior. E ele deixa claro o quanto os EUA (ou a tão sonhada América, como eles gostam de se referir ao país) estão em colapso - e não é de hoje. Longe disso! Trata-se da terra que inventa oportunidades e sonhos, mas não necessariamente as cumpre do jeito que você acreditou. E o legado disso é desespero, niilismo e convulsão social pra dar e vender.

Tenho lido em alguns sites e fóruns sobre premiações (leia-se: o contraditório Oscar) que o filme de PTA é um dos favoritos à melhor filme. Na boa... Será que o eterno moralismo conivente de sempre vai permitir? Adoraria acreditar que sim. Contudo...

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

A grande dama do cinema italiano


O meu pai era apaixonado por ela. Na verdade, ela foi o crush de toda a geração a qual o meu pai pertenceu. Quando eu ouvia as conversas dos mais velhos acerca da sétima arte, o nome dela era sempre mencionado como ícone de beleza. "Mas quem é essa?", vocês, leitores deste breve post, perguntarão. Falo, obviamente, da atriz italiana Claudia Cardinale, que faleceu ontem, aos 87 anos.

Eu a vi na tela pela primeira vez junto com meu pai (sempre ele, é claro!) no sofá da sala de casa numa sessão em vhs do faroeste icônico Era uma vez no Oeste, clássico do diretor Sergio Leone. E naquele exato momento entendi o porquê dela enlouquecer tantos homens. Ela era realmente ímpar no quesito sedução.

Uma semana depois, assisto Fitzcarraldo, a obra-prima subestimada de Werner Herzog (e que precisa ser apresentada -urgentemente - a essa nova geração alienada e enfadonha), filmando na Amazônia, com direito a José Lewgoy e Grande Otelo no elenco e tudo. E lá estava ela, radiante, de novo. Ela sempre era radiante.

Talvez eu exagere ao dizer isso (os críticos de cinema e os metidos - como eu - costumam exagerar de tempos em tempos), mas Claudia Cardinale foi a Marilyn Monroe européia para muito cinéfilo que se preze. Seu sorriso, postura, elegância e sex appeal marcaram uma época do cinema que, infelizmente, não regressará mais, em tempos de busca desenfreada por bilheteria e prêmios em festivais.

A "Menina italiana mais bonita na Tunísia", prêmio que Claudia ganhou em 1957, fazendo alusão ao país onde nasceu, também marcou época em produções como Oito e meio, de Federico Fellini; O leopardo, de Luchino Visconti; além de marcar presença num dos longas da franquia A pantera cor-de-rosa, do diretor Blake Edwards.

Moral da história (se é possível uma, nesse caso): mal nos despedimos do gigante Robert Redford e o mundo da sétima arte nos dá outra cutilada na aorta, deixando os verdadeiros fãs de cinema ainda mais órfãos. E a má renovação constante, proposta por uma geração cada dia mais baseada em lucros e poses, que só pensa em status e box office, complica ainda mais o futuro desse mercado. Não é à toa que já tem imbecil projetando a inteligência artificial como a substituta do talento artístico. Negros tempos esses para a verdadeira cultura.

No mais, Claudia... Embora sejamos de gerações diferentes, fica minha eterna saudade. Você era realmente a grande dama do cinema italiano. Fica em paz!

domingo, 21 de setembro de 2025

Gonzaguinha, 80


Se você não ouviu Gonzaguinha (fosse você contemporâneo dele ou não), então não ouviu a MPB. Se você não sentiu, muito menos entendeu o que ele disse em suas letras poderosas, na boa... Você não entendeu - não entende ainda - absolutamente nada e merece perder tempo ouvindo as porcarias que as rádios e os festivais tocam hoje em dia. Gonzaguinha era mítico, num nível que a própria música brazuca não é mais capaz de entender.

Se vivo fosse, Gonzaguinha estaria completando 80 anos de idade. E posso lhes dizer, de tudo que ouvi, li e entendi acerca do seu trabalho, ele estaria certamente afrontado com o Brasil de hoje, saudosista das maiores atrocidades. Ele sempre se posicionou contra o sistema. Antes mesmo de raciocinarmos acerca da expressão "música de protesto", ele já era isso, na veia, 24 horas por dia. E sua voz combinadas a palavras poderosas já diziam isso, em alto e bom som.

Ouçam "O que é o que é?", "É", "Lindo lago do amor", "Espere por mim, morena", "E vamos à luta", "Eu apenas queria que você soubesse", "Comportamento geral", a extraordinária "Sangrando", "Um homem também chora", "Grito de alerta", "Ponto de interrogação", "Geraldinos e arquibaldos" e tantas outras e tirem as suas próprias - e necessárias - conclusões.

No dia de sua morte (na verdade, até hoje nutro esse sentimento) fiquei perplexo. Sua presença de espírito era tão avassaladora que me parecia meramente impossível me despedir dele daquele jeito. Poucas vezes a cultura brasileira se despediu de alguém que precisasse tanto ficar por aqui. Que dirá agora, em tempos tão funestos e deslumbrados com a própria covardia.

Muitos o achavam a antipatia em forma de pessoa, mas ele era repleto de personalidade, isso sim. Não fazia o jogo da mídia nem agradava aos interesses dos inescrupulosos homens da poder. Sua obsessão era com o povo, com suas mazelas e angústias. Quando precisou radicalizar em suas canções, radicalizou e ponto. Quem quisesse que o processasse. Assim era Gonzaguinha, o rebelde da MPB.

Imaginar que ele poderia estar aí, entre nós, nesse momento difícil pelo qual o país passa, me faz acreditar que a música é atemporal e precisa ser reapresentada urgentemente à essa nova geração. O quanto antes.

Mestre, onde quer que o senhor esteja, fica com Deus. Seu legado será eterno.  

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Um ator lendário


Ele foi o galã de muitas cinéfilas apaixonadas, foi o ativista da causa ambiental (embora não gostasse do rótulo), foi um artista engajado na luta em prol do cinema independente, criou o Instituto Sundance e deu oportunidades para o surgimento de cineastas como Quentin Tarantino, Richard Linklater e tantos outros, e não bastasse tudo isso construiu uma filmografia de respeito com, pelo menos, uma dúzia de hits (provavelmente mais).

De quem falo? Do ator Robert Redford, obviamente, que nos deixou hoje, aos 89 anos, para a tristeza dos amantes da sétima arte e de hollywood.

Difícil saber por onde começar quando o assunto é a carreira de Redford. Ele foi o jornalista Bob Woodward, um dos responsáveis pela matéria que levou ao desmascaramento do Escândalo Watergate, durante o governo Richard Nixon em Todos os homens do presidente, de Alan J. Pakula; Foi o pistoleiro Sundance Kid no clássico faroeste dirigido por George Roy Hill; foi o diretor penitenciário Henry Brubaker no longa homônimo de Stuart Rosenberg; foi Turner, o investigador da CIA acuado por seus rivais em Três dias do condor, de Sydney Pollack; foi o extraordinário Jeremiah Johnson de Mais forte que a vingança... Além de uma lista tão gigantesca que eu poderia passar o final de semana inteiro e não terminá-la nunca.

O garoto que, aos 11 anos, foi diagnosticado com poliomielite tornou-se sex symbol e vencedor do Oscar de melhor diretor por Gente como a gente, de 1981, tendo de conviver paralelamente com a timidez e os sucessos de bilheteria. Teve inúmeros amores, dentre eles a atriz brasileira Sônia Braga. E entre suas lutas mais ferrenhas, estavam a preservação ecológica e a postura contrária à mercantilização dos festivais (algo que vem se tornando uma tônica nos últimos anos!)

Se é possível classificar um artista como Robert Redford, talvez a palavra que melhor se enquadre seja lendário. E olha que, durante todos esses anos que eu acompanho a carreira dele, eu sempre tive a sensação de que a academia e a indústria de cinema americano não o reconheceram como ele realmente merecia. Ele deveria estar no mesmo panteão de nomes como Paul Newman, Steve McQueen, Jack Nicholson e outros medalhões, mas eu nunca percebi essa motivação por parte de hollywood. Sempre achei que o tratavam como uma ator subestimado, subvalorizado (o que é uma puta injustiça).

Redford é mais um que parte deixando hollywood ainda mais carente de ídolos e, como sempre costumo falar em meus posts sobre cinema, à anos-luz de uma renovação que seja minimamente digna. Assim como não acredito que a hollywood contemporânea nos dará um novo Steve McQueen (Bullitt é eterno, digam o que disserem), também não acredito na existência de um novo Redford nesse século XXI. E isso é triste demais.

P.S: uma dica para hoje à noite quando sentarem em frente à tv para ver um filme e quiserem homenageá-lo: procurem por Quiz show: a verdade dos bastidores, que ele dirigiu e foi indicado ao Oscar. Trata-se de uma joia rara muitas vezes esquecida em meio a uma cinematografia brilhante.

domingo, 14 de setembro de 2025

O homem-som


Existem artistas que cantam, existem artistas que dançam (e como dançam!), existem artistas que compõem como ninguém (e realizam obras-primas da música universal), existem até artistas que enganam o seu próprio público (e hoje em dia, então, nem se fala). Contudo, existem artistas que são a sonoridade em pessoa; que você, ouvinte, gostaria de poder definir num acorde e não consegue.

Eles são múltiplos, únicos, inexplicáveis, indecifráveis, ímpares. Hermeto Paschoal, que faleceu hoje aos 89 anos, era um desses. E vai aqui uma opinião pra lá de pessoal: acho impossível que vá surgir outro como ele. É dessas figuras que Deus jogou a forma fora após criá-lo em seus mínimos detalhes.

Há uma cena com ele que eu adoro, pertencente ao documentário O barato de Iacanga, sobre o famoso festival de música de Águas Claras (considerado por muitos no país como o "Woodstock brasileiro") em que é apreciado, durante sua apresentação, por uma multidão de pessoas em silêncio, ouvindo-o tocar flauta por horas. Sem precisar dizer uma única palavra. Hermeto era isso, sem mudar uma vírgula sequer.

Se o Jazz americano, em sua excelência, nos apresentou o gênio Miles Davis, a música instrumental brasileira nos deu Hermeto Paschoal. E olha que se trata de uma gênero musical do qual sou suspeito para falar, tamanha a quantidade de talentos que partiram ou ainda se encontram entre nós (Naná Vasconcelos, Egberto Gismonti, João Donato, Léo Gandelman, etc).

Ele tinha aquele jeito de viver meio que em um mundo próprio, particular, com aquela expressão serena típica. Mas quando produzia a sua música, aí meus caros, sai de baixo... Hermeto Paschoal era o que eu gostava de chamar de o homem-som, mescla de humanidade e ritmo em doses exatas e complementares. E se a MPB já chegou ao ponto de ter que despedir deles, cá entre nós, então estamos realmente lascados.

Muitos se perguntarão a partir de amanhã: "Será que encontraremos alguém à sua altura, para sucedê-lo?". E eu, na mesma hora, responderei: "Será isso humanamente possível? Espero sinceramente estar enganado. Nunca precisamos tanto de música de verdade quanto agora.

Mestre, que o Senhor o receba com todas as honrarias que você merece. Você era um espécime raro! 

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

De Os garotin eles só têm o nome...


São tempos tristes de MPB com bundas rebolando em excesso, playback em demasia, corpos esculturais construídos a base de bisturis e a música... Bem, a música, infelizmente, em segundo plano nisso tudo. Logo, qualquer artista que surja propondo o canto, a canção, a melodia, a arte de se apresentar, já é um grande alento. É exatamente esse o caso de Os Garotin, trio de São Gonçalo do qual não conhecia absolutamente nada até ver o nome da banda no line-up do The Town em São Paulo.

Tive, ao ver os talentosos rapazes, a mesma reação de quando ouvi pela primeira vez a extraordinária Fat Family. E na hora pensei: "Graças a Deus! Ainda há vida inteligente dentro da música popular brasileira".

Ouvir Os Garotin é como relembrar da época em que a dial do rádio era ocupada por monstros da música como Tim Maia, Sandra de Sá, Hyldon, Cassiano e companhia. Eles têm a pegada black music que andava esquecida nos últimos tempos de cantores fake e músicas fúteis, um quê de Motown bem lá no fundo (o que é sempre ótimo para qualquer bom ouvinte que se preze) e aquele deboche típico de quem sabe realmente o que está fazendo em cima do palco.

Confesso: andava desencantado com o mercado fonográfico. Ele vem perdendo tempo sucessivamente com gostosonas que não passam disso, vozes esganiçadas e fora do tom, e composições que... na boa, sem comentários.

O revoltante? Como pode um país que nos entregou Chico, Milton, Caetano, Elis, João Nogueira, Gil, Ivan Lins, Rita Lee, Renato Russo, Edu Lobo, Gonzaguinha e tantas outras feras, perder tanto tempo com engajamentos e mídia acerca de performers pra lá de medianos e composições altamente questionáveis? Sério! Isso precisa mudar o quanto antes. Não é à toa que as rádios comerciais foram do extorsivo jabá ao moralismo decadente da cultura gospel.

Que a chegada dessa galera cheia de bossa, de energia inesgotável, traga novos ares para o nosso cancioneiro (que precisa - e muito! - desse gás, dessa reinvenção, desse novo fôlego). Agora, pelo amor de Deus, para que não me chamem de maluco ou exagerado, entrem no youtube, no deezer, no spotify, onde quer que seja, e ouça essa rapaziada. Por que de Os garotin eles só têm o nome... Gente grande, da melhor qualidade, o que eles entregam.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Eles continuam entre nós, aqui, ali, em qualquer lugar


Não entendo pessoas que falam da "literatura brasileira indispensável" no Brasil e não incluem, junto com Memórias póstumas de Brás Cubas, Grande sertão: veredas, Dom Casmurro, O romanceiro da inconfidência e Os sertões, o magnífico (e ainda atualíssimo) Morte e vida severina, do mestre João Cabral de Melo Neto. Se essas pessoas fossem computadores, diria que se trata de um erro sistêmico grave.

Nunca entendi a implicância de certos leitores com Mr. João Cabral, um autor lendário e imprescindível para quem quer entender o que é realmente o Brasil. E fiquei ainda mais fã do poeta depois de ler a graphic novel produzida por Odyr (de quem já havia lido, anos atrás, o também extraordinário Copacabana, que recomendo aqui inclusive!).

O primeiro mérito da obra gráfica é fazer um paralelo entre os retirantes nordestinos e os refugiados que atravessam o mundo, seja por terra ou mar, à procura de uma nova nação onde possam sobreviver dignamente. Não é de hoje que vivemos num mundo onde parece cada vez mais difícil manter-se vivo no país natal, por conta de políticas culturais e econômicas extorsivas, que só servem para expulsar a classe trabalhadora do local.

Sim, meus caros leitores! Vivemos num planeta que cultua mentalidades como a da gentrificação e também do downsizing, com o único e claro objetivo de tornar pior a vida de quem luta diariamente para sobreviver, enquanto os mais ricos são sempre beneficiados por cortes de gastos e políticas de isenção fiscal. Resultado: não podendo mais sobreviver minimamente ali, multidões imigram desesperadamente na tentativa de encontrar um novo lar, menos explorador.

Odyr acerta em todos os aspectos: seja no uso das cores, nas cenas de dificuldade retratadas, e principalmente por deixar os semblantes dos personagens não tão nítidos, meio embaçados, nos dando a sensação de que teremos grande dificuldade de definir quem são essas pessoas, quais são suas histórias, o que pretendem esses "sobreviventes"

Ao fim, o legado que fica é o de que eles, os desgarrados do mundo, ainda se encontram entre nós, vagando, buscando um porto seguro, lutando contra uma realidade cada dia mais atroz, em meio a segmentos políticos que só sabem demonizá-los, tornando-os os verdadeiros culpados do colapso do mundo.

Terá solução para isso em algum momento? Esta talvez seja a pergunta mais importante que permeará todo esse século XXI cada dia mais injusto e conflituoso. 

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

O documentário em pessoa


Eu li a notícia e não acreditei, fiquei pasmo. Li de novo e a tristeza me abateu. Fiquei naquela: "escrevo ou não escrevo brevemente sobre ele?", pois havia postado recentemente e raramente emendo um texto no outro. Mas ele era foda. Ponto. Decido escrever.

O cinema brasileiro se despediu hoje de Sílvio Tendler, que eu costumava chamar de o homem-documentário. Sim, ele era o formato em pessoa. Transpirava ideias, posturas, desabafos... E o mais importante: sabia fazer arte política sem ser partidário (o que, no atual momento do país, é um talento que poucos exercem).

Difícil falar sobre Sílvio de forma breve. Seu cinema era complexo, múltiplo, cheio de debates indispensáveis para entendermos o que é o Brasil (e o mundo). E eu tenho uma relação meio doentia com a obra dele, da qual sou fã incondicional. Tanto que certa vez, conversando com colegas de faculdade, irritei o grupo ao dizer que Sílvio marcou mais a minha formação cultural do que o Eduardo Coutinho (e não digo isso em demérito deste).

Eu sempre tive a sensação de que Tendler falava exclusivamente para mim, para os meus anseios, minha aflições (principalmente na época de adolescente). Ele era mestre em nos fazer repensar nossos próprios raciocínios. Acreditava no poder da segunda opinião, de confrontar a sua versão com a dos demais (como, aliás, deveriam fazer todos os documentaristas).

Ele falou de Castro Alves, Glauber Rocha, Ferreira Gullar, João Goulart, Juscelino Kubitscheck, Haroldo Costa, Carlos Zéfiro, ditadura, privatizações, utopia, barbárie, Oswaldo Cruz, Marighella e até dos Trapalhões, tudo isso sem perder sua verve ácida, mas não menos bem humorada. De todos os seus longas, o que mais me toca é Glauber o filme, labirinto do Brasil, sobre o cineasta baiano. Por quê? Porque foi meu pontapé inicial para começar a procurar mais sobre o homem por trás de clássicos como Terra em transe, Deus e o diabo na terra do sol e O dragão da maldade contra o santo guerreiro.

Uma pena. É mais uma voz importantíssima que parte num momento em que o Brasil precisa - e muito! - de vozes contundentes, que combatam o entreguismo e o comodismo que vem ganhando força nos últimos anos por aqui. Fica em paz, mestre!

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Os dispensáveis


"Os idosos estão sendo homenageados", diz o governo em uma atitude mais fake do que uma nota de 3 reais, e que certamente esconde sórdidas intenções. E Tereza (Denise Weinberg, excepcional!) sabe disso como ninguém. Já ouviu essa mesma ladainha zilhões de vezes. Aos 77 anos, ela é recrutada para a colônia, local que passa a abrigar as pessoas da terceira idade que não contribuem mais para o avanço do país.

Satisfeita? Orgulhosa de sua conquista? Longe disso! Tereza não entende o porquê de tal decisão. Mas não tem jeito. Ela deve se apresentar ao local de embarque como os demais e aceitar o seu destino. Até a filha, guardiã legal dela, sabe disso - e concorda. O problema: convencê-la de que essa é a melhor escolha.

Cheia de sonhos, Tereza quer realizar o sonho de voar. E foge. Realizar a façanha de forma legal está fora de cogitação, então ela tenta meios ilícitos. Conhece um Brasil dentro do Brasil. Sua vida cruza com a de uma estrangeira que comprou sua própria liberdade e agora vive em seu barco, de vilarejo em vilarejo, vendendo bíblias online. Ali, Tereza encontra paz e um motivo para continuar vivendo. Distante do que chamamos de mundo real.

O último azul é distópico, adjetivo que é a cara do cinema do diretor Gabriel Mascaro, um de nossos maiores realizadores cinematográficos na atualidade. Porém, esqueçam Blade Runner e Mad Max... Aqui o futuro é ainda mais sórdido porque é quase uma cópia xerográfica dos tristes tempos em que vivemos. No Brasil de O último azul, não à toa a baba azul que escapa do caracol é, talvez, o último resquício de contato com que o resta de realidade.

Mascaro realiza um grande ensaio humano sobre os dispensáveis, os que - a priori - não têm mais serventia para o contexto social. Se ser idoso não é fácil em lugar nenhum do mundo, imagine num país como o Brasil, que não reconhece seu próprio racismo, sua própria homofobia, sua própria diferença de classes?

Tereza é o retrato de uma nação que não aconteceu, que ficou presa num passado de falsos idealismos, moralismos e vitórias fúteis. E por conta disso, precisa ser descartada em nome de uma "limpeza" federativa (leia-se: maquiagem intencional). E assim como já havíamos visto em Boi Neon e Divino Amor, o diretor elege sua estrutura opressora como mote para o dilema da protagonista. Saem o agronegócio e as igrejas neopentecostais, entra o próprio governo federal.

O resultado? Aterrador, mas não menos realista do que o mundo como o conhecemos. Merecidíssimo o Urso de Prata no Festival de Berlim. E Rodrigo Santoro também está impecável na pele do barqueiro que faz amizade com a encantadora e rebelde Tereza. Vejam! O quanto antes!