terça-feira, 17 de setembro de 2024

50 anos de um delírio chamado de futuro


Quase tomo um susto ao ler uma série de matérias em jornais distintos falando dos 50 anos do filme Iracema, uma transa amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, que acaba de ser restaurado. Como assim já tem todo esse tempo? É, com folga, uma das coisas mais poderosas que o cinema novo já produziu em sua história e nada deve a clássicos eternos do período como Terra em transe, Vidas secas, A falecida, Os fuzis, etc.

Iracema é o Brasil hoje, agora, nesse exato momento, com todas as suas controvérsias e distorções, porém contado cinco décadas atrás (o que faz do longa, de certa forma, uma espécie de premonição macabra). 

Acompanhamos a saga daquela jovem índia (vivida por Edna de Cássia) e toda a ilusão vendida como futuro, e promovida pela construção da transamazônica - um dos maiores escândalos governamentais da história desse país - com olhos opacos, por vezes marejados de lágrimas. E pensamos na mesma hora: será que algum dia esse país chegará a algum lugar que preste? Ou nunca seremos nada mais do que oportunistas? 

Sebastião - ou, simplesmente, Tião Brazil Grande -, personagem de Paulo César Pereio (brilhante!) é a cara desse país que não é nação, como já bem disse uma vez numa canção o célebre Renato Russo, vocalista do Legião Urbana. Ele é o brasileiro típico, o famoso retrato do "dane-se o país, eu quero é me dar bem ao preço que for". E ao olharmos fixamente para suas tramoias e esquemas sujos, não há como não duvidar do brasileiro médio. Estamos contaminados por essa cultura até o talo. E ai de quem negar!

Nesse Brazil com Z, ame-o ou deixe-o (como se escolher entre uma opção e outra fosse tarefa tão difícil assim!) tudo é negociável e o povo, como mercadoria de escambo, é objeto chulo, baratíssimo, preço de banana, quase 0800. Ai de nós, sobreviventes dessa república federativa...

Numa das análises que li sobre o filme o crítico chama Iracema de "o filme mais contemporâneo do país". E está coberto de razão. Vejam o que acontece na região nesse exato momento. O que mudou? A abordagem. Já os personagens, os agentes da vilania, continuam os mesmos, senão piores. Triste legado o da nossa ignorância, o da nossa mesquinhez. 

O filme de Jorge e Orlando é tão gigantesco que pega até mal eu contar os mínimos detalhes aqui. E eu preciso - mesmo! - que vocês, leitores, vejam. E tirem suas próprias conclusões. Vocês nunca mais verão o cinema nacional com os mesmos olhos preconceituosos e de vira-latas de agora. Se permitam. Isso aqui é uma obra-prima incompreendida. 

Eu queria muito estar vivo quando celebrarem o centenário dela... Será que consigo? Só o tempo dirá (e eu espero que ele me favoreça pelo menos uma vez). 


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