domingo, 30 de junho de 2024

Os sedutores fumettis ainda me encantam


O que faz dos quadrinhos italianos - ou fumettis, simplesmente - um acontecimento ímpar para mim é a exuberância. Nos comics e charges americanas vemos o way of life cuspido e escarrado da terra do Tio Sam, com todas as suas idiossincrasias e defeitos evidentes. Nos mangás, acompanhamos os samurais e guerreiros em batalhas hercúleas. Já na nona arte made in Itália o que mais chama a minha atenção é a desconstrução do belo, do conceito de vilão ou mocinho, o desdobramento satírico de certo tipo de aventura (aliás, bem a cara do Sergio Bonelli, maior nome deste segmento).

Foi assim quando li uma hq italiana pela primeira vez, aos 15 anos - no caso, o Dylan Dog, de Tiziano Scalpi -; foi assim com Guido Crepax e Milo Manara, em Valentina e Click, dois mestres eternos; foi assim com Hugo Pratt e seu Corto Maltese, mas também me deleitando entre Diabolik, Zagor, Júlia - aventuras de uma criminóloga e outras sagas. Nunca leu um fumetti sequer na vida? Meu Deus! Em que planeta vocês vivem? 

Encontro muito por acaso, no meio da rua, ao lado de uma estação de metrô no centro da cidade, um vendedor ambulante se desfazendo da coletânea Fumetti - o melhor dos quadrinhos italianos, da editora globo, por míseros cinco reais. Em outras palavras: ele estava dando o exemplar. Levei-o na mesma hora. 

Só fui me dar conta de seu conteúdo ao chegar em casa e me deparar com histórias curtas de grandes personagens da Bonelli. Tex, Mister No, Martin Mystère, Dylan Dog, Nick Raider e Nathan Never. Só o folhear das páginas vagarosamente já foi mágico! Imagine, então, ler cada história com calma mais tarde. 

O pistoleiro sem medo de quem quer que seja; o ex-piloto militar, que troca a farda pela Amazônia; o especialista em antropologia, arqueologia, história da arte, línguas, cibernética, esoterismo, que une todos esses talentos como "detetive do impossível; o investigador particular de casos insólitos; o charmoso detetive do esquadrão de homicídios (sempre acompanhado de belas mulheres) e o agente espacial, mistura de James Bond com Blade Runner...

Todos a serviço da diversão. Querem femme fatales? Elas estão lá, em trajes pra lá de sexy, e totalmente amorais; Quer tiroteios apocalípticos e ferrenhos? Vai deparar com eles logo de cara; Quer um deboche muito bem construído em cima da maior reserva florestal do mundo? Lógico que também tem. E tudo isso - e muito mais - numa paleta de cores que anda em falta no mercado de quadrinhos atual em muitos lugares. Sim, eu tenho achado uns quadrinhos recentes cinzas em excesso... e isso nunca é bom.

Um extra importante: há também uma entrevista ótima com Sergio Bonelli na abertura do álbum, na qual fala de suas influências, das dificuldades do mercado distribuidor e sua paixão pelo Brasil. Leiam também!

Ao fim da leitura, um misto de nostalgia (sempre bem-vinda, principalmente nesses últimos anos, em que o país parece cada dia mais perdido e louco em meio a tantos falsos conservadorismos e cegueiras religiosas...) e um desejo: o de voltar a ler, muito em breve, quadrinhos antigos, até os gibis menores. O mundo parecia melhor naquela época... a as histórias, incrivelmente, também. Difícil mesmo é arranjar mais tempo! 


terça-feira, 25 de junho de 2024

Ele poderia, sim, ser crítico ou cineasta, se quisesse...


Não é de hoje que o cantor e compositor Caetano Veloso diz que a sétima arte faz parte de sua vida e tem papel fundamental na sua formação artística. Não trabalhasse ele com música, certamente teria escolhido o cinema como via de expressão (palavras do próprio ao longo da carreira). Começou a escrever sobre o assunto ainda novo, para um jornal na Bahia, e este que vos escreve sempre teve curiosidade de ler este material - até então em vão. 

Eis que os organizadores Claudio Leal e Rodrigo Sombra reúnem no excepcional exemplar Cine subaé: escritos sobre cinema (1960-2023) não somente o período universitário dos textos de Caetano, como tudo que ele produziu sobre o assunto em mais de seis décadas.

é maravilhoso, do início ao fim da obra, poder ler sobre aquilo que o autor de "Sampa", "Você é linda", "Tigresa" e outros hits da MPB, gosta, desgosta, não acha isso tudo ou acha um grande exagero da mídia, etc etc e tal. Em suma: trata-se de um livro sobre a defesa de opinião de um "leigo" na área, mas que conhece muito sobre o tema (tanto que chegou a dirigir um longa, Cinema falado, em 1986).

Caetano exalta a figura do diretor como principal protagonista da sétima arte; debocha das pessoas que chama de "piadistas do cinema"; considera Imitação da vida (de Douglas Sirk) um dramalhão; exalta A grande feira, de Roberto Pires, como grande acontecimento da nossa cinematografia; apresenta de tempos em tempos suas listas de melhores; não esconde que prefere Jorge Ben à Pasolini; compara o rock ao filme b e chama a tv de "eletrodoméstico"; repudia a 'chatíssima' canção Radio Ga Ga, do Queen; destrincha Je vous salue Marie em meio ao veto da igreja ao filme na época do lançamento, entre outras alfinetadas.

Há momentos intimistas muito fortes, como por exemplo, quando fala da grande aventura que foi rodar o seu próprio longa, com pouquíssimos recursos e muita garra e também ao mencionar a grande atriz Giulietta Massina (musa de Fellini), inclusive defendendo-a de seus detratores.

Ele também não foge de polêmicas e assuntos espinhosos: toma partido na discussão a respeito de Orfeu negro, de Marcel Camus (vencedor do Oscar de filme estrangeiro) e seu remake anos depois; comenta o rompimento entre Jean-Luc Godard - sua principal referência artística - e Truffaut;  não esquece de exaltar a amizade com Pedro Almodóvar; deixa claro que acha o comediante Jerry Lewis sem graça e não tem a menor vergonha de dizer que nunca foi fã do cantor David Bowie, entre outras pérolas.

Mas o ato final, em que comenta as trilhas sonoras que fez, os shows que produziu com direta homenagem ao cinema, bem como a seção de entrevistas ao longo das décadas, é com certeza o crême de la crême dessa coletânea de fôlego (são quase 500 páginas de pura cinefilia e conhecimento puro!).

Ao fim, o que mais me tocou foi a sensação de que, no íntimo, perdemos um extraordinário crítico de cinema, quem sabe um cineasta interessantíssimo... Mas a vida (e a música) o levou a trilhar outros caminhos, não menos sensacionais. Quem ganhou com isso foi a MPB e os ouvintes da boa música. Grande Caê! P.S: conheçam esse seu outro lado, esse artista "inconcluso". Vale cada página.


quinta-feira, 20 de junho de 2024

R.I.P Donald Sutherland


Vi inúmeros comentários na internet agora há pouco chamando o ator canadense Donald Sutherland - que faleceu hoje, aos 88 anos - de "coadjuvante de luxo". E deixo logo claro aqui: acho injusta a definição. Donald era um artista sublime, ciente de seu talento magistral e esteve presente em grande parte do que a cinematografia mundial já fez de melhor. Portanto, categorizá-lo como um reles elenco de apoio, acho meio aviltante.

Ele podia ser o pai preocupado, o mais sádico dos vilões, o fazendeiro inescrupuloso, o médico debochado, o presidente de cunho ditatorial, o ancião que viajou para o espaço, o militar inescrupuloso, enfim... Era uma enciclopédia de indivíduos e nuances. 

Acho que a primeira vez que o vi em cena foi no extraordinário Inverno de sangue em Veneza, de Nicolas Roeg, e foi o suficiente para eu entender que precisava saber mais sobre aquele ator. Logo a seguir, deparei-me entre as prateleiras das antigas videolocadoras com O buraco da agulha, de Richard Marquand (adaptado de um romance do escritor Ken Follett) e o hoje mais que cult M.A.S.H, de Robert Altman (para mim, um eterno injustiçado no Oscar).

Resultado: estava feito o estrago e, assim como aconteceu com Gene Hackman e Steve McQueen, comecei a entrar de sócio em várias locadoras à procura de longas que o tivessem no elenco. 

É possível dizer, sem exagero, que Sutherland praticamente fez de tudo: da comédia ao drama, da ficção científica à sátira ao terror. E sempre emprestando seu prestígio e elegância costumeiras. Difícil criar um kit básico sobre o que assistir com ele, mas vamos lá: se tiverem a oportunidade (está cada vez mais difícil em tempo de streamings e o sumiço recorrente de clássicos do cinema) ver 1900, de Bernardo Bertolucci; Gente como a gente, de Robert Redford; Klute - o passado condena, de Alan J. Pakula; Condenação brutal, de John Flynn; Os doze condenados, de Robert Aldrich; A águia pousou, de John Sturges e Invasores de corpos, de Philip Kaufman, não desperdicem a chance. 

Mas acreditem: tem muito mais a vasculhar. Só no IMDb são quase 200 créditos!

As gerações mais novas provavelmente o associam mais ao presidente Snow da Saga Jogos Vorazes (criada pela autora Suzanne Collins) e com razão. É das melhores coisas feitas no gênero distopia nos últimos anos e bem mais interessante do que 90% daquilo que hollywood vem produzindo para os jovens atualmente. Conheçam também. É praticamente a "despedida" dele das telas. 

E não bastasse tudo isso, ele ainda por cima era pai do Kiefer Sutherland (o Jack Bauer da série de tv 24 horas). É... Não precisa explicar mais nada. 

Donald, onde quer que você esteja, fique em paz. Você era um artista estupendo e deixou um legado cinematográfico incrível. Cabe a nós, cinéfilos de verdade, mantermos sua obra viva em tempos de blockbusters babacas e alienação em nome da bilheteria a qualquer preço.  


quarta-feira, 19 de junho de 2024

Chico Buarque, 80 anos


Como é possível falar de Chico Buarque de forma sucinta? Não é. Sua obra e legado estão longe de serem sucintos. Logo, façamos uma homenagem justa e possível dentro deste humilde blog. 

Francisco Buarque de Hollanda chega hoje aos 80 anos de idade e ainda esbanja charme, talento e um papel crítico - de resistência mesmo - gigantesco. Cantor, compositor, escritor, poeta (ele não gosta do termo, mas é, não adianta reclamar), dramaturgo, jogador de futebol bissexto, pensador, e o que mais for possível e eu não pude me lembrar agora, de primeira. Em suma: um vade-mécum da cultura brasileira.

De Ópera do malandro à Fazenda modelo, de Calabar (sua peça em parceria com Ruy Guerra) à Benjamim, de Gota d'água à Budapeste, de Roda viva (seu clássico eterno, tanto a canção - que apresentou no festival - quanto o espetáculo teatral) à Os saltimbancos trapalhões (sim, como esquecer daquela trilha sonora que até hoje eu ouço no you tube?), de Julinho de Adelaide, pseudônimo que criou para driblar a censura no período militar, à Leite derramado, de músicas antológicas como "Apesar de você", "Construção", "Pedro pedreiro", "Feijoada completa", "Olhos nos olhos" e tantas outras à O irmão alemão, do Polytheama (seu time de futebol) ao prêmio Camões recentemente ganho...

Chico é tudo isso e mais um tanto que não vai caber nesse post, pois pode estourar o limite de caracteres.   

Seus detratores - aqueles, vocês sabem... - andaram rotulando-o de vendido, de inimigo da liberdade de expressão, etc... Quer saber? Quem perdeu foram eles mesmos. Não entenderam o requinte, a denúncia, o despojamento, o enfrentamento cultural de um artista que não cabe numa simples biografia, que dirá neste texto primário. Eu próprio, fã do artista há décadas, não sei se consigo explicá-lo de forma definitiva. Por quê? Porque enquanto ele estiver vivo, não será definitivo. Há sempre o que esperar de novo da sua parte.

Por exemplo: dizem que seu próximo romance, Bambino a Roma, será uma autoficção, e eu já o aguardo ansioso. 

E como eu sei que muitos jornais, tabloides, sites e outros veículos irão falar dele exaustivamente no dia de hoje, paro por aqui. Entristecido, aviso desde já, pois gostaria de passar o dia dissecando sua obra. Mas ao mesmo tempo sei que nem uma tese de doutorado conseguiria tal façanha. 

Grande Chico! Feliz Aniversário! E que venham os 90, os 100, os 110, enfim... a eternidade.


sábado, 15 de junho de 2024

O vampiro quase centenário


E pensar que grandes nomes da literatura mundial sequer chegaram aos 40 anos! 

Leio nos jornais e sites da internet que o escritor Dalton Trevisan fez 99 anos e planeja a reedição de sua obra. Um dos autores mais fora da bolha da literatura brasileira bem perto do centenário. E ele merece! Criou um estilo todo próprio, feito de narrativas curtas, quase elipses, falando sobre os temas mais diversos.

Excêntrico? Olha... Se lhe perguntarem a respeito, é provável que ele até aceite o rótulo. Manteve-se longe de toda essa badalação do mercado editorial, cada vez mais cheio de "autores" que mais parecem celebridades fúteis e efêmeras, produzindo reles manuais de regras sem sentido, e bem fez ele. Esse afastamento da realidade virou meio que parte da sua personalidade. 

A maioria de seus textos trata quase sempre do confronto como tema (seja contra à sociedade, à tradição, à cidade, aos governantes etc). É preciso que haja um duelo de forças para que a narrativa aconteça de forma pungente. Contudo, mesmo seguindo essa forte característica, nem sempre os leitores conseguem enxergar o seu intuito e, por isso, muitos o veem como uma figura distante da realidade, por vezes egóica.

Seu conto mais famoso Uma vela para Dario é, com folga, das melhores coisas já escritas no gênero e também grande porta de entrada para conhecer o restante de sua obra. Entre seus livros que mais curto, recomendo de olhos fechados Novelas nada exemplares (1959), o eterno clássico O vampiro de Curitiba (1965), Guerra conjugal (1975), Essas malditas mulheres (1982), Cemitério de elefantes (1993), Rita Ritinha Ritona (2005) e O beijo na nuca (2014), mas não custa nada fuçar na longa bibliografia dele por novidades, digamos, exóticas. 

Sua relação com o cinema é um tanto quanto melindrosa. Raras vezes ele autorizou adaptações de sua obra e quando o fez foi apenas por se tratar de grandes diretores - como Joaquim Pedro de Andrade, que transpôs Guerra conjugal para as telas - ou de ideias que realmente fizessem jus à sua escrita. Para se ter uma ideia do empecilho causado pelo autor, Hector Babenco quis adaptar alguns de seus contos, mas ele não permitiu. Já o diretor Estevan Silveira pode se considerar um privilegiado, pois foi um dos únicos a conseguir trabalhar os contos de Dalton em formato curta sem impedimento do autor.

O motivo de tanta implicância: Dalton exige fidelidade absoluta àquilo que ele escreve (o que, na maioria das vezes, se mostra um trabalho praticamente impossível para quem dirige).

É muita bem vinda a notícia de que poderemos ver em breve nas livrarias um relançamento de sua obra (quem sabe em 2025, ano de seu centenário). A literatura nacional com certeza anda carente de um autor com a verve e a peculiaridade de Dalton, que é praticamente um estranho no ninho dentro do nosso mercado editorial cada vez mais pasteurizado.

Fiquemos no aguardo por novidades! 


quarta-feira, 12 de junho de 2024

Rascunhos (I)


Leminski

35 anos sem o poeta Paulo Leminski (ou, como diria o escritor Toninho Vaz, na biografia escrita sobre ele, o bandido que sabia latim). E a poesia - bem como a literatura brasileira em geral - nunca mais teve um autor como ele. 

Leminski manipulava a linguagem como pouquíssimos. E nem por isso foi sinônimo de demérito em sua obra. Em seus versos cabiam tudo: trocadilhos, palavrões, linguagem coloquial, humor até dizer chega e, claro, experimentalismos os mais diversos. Recomendo aos leitores de primeira viagem, Catatau. Aposto que terminarão a leitura transformados. 

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Nara Leão

E já que mencionei as três décadas e meia, é preciso lembrar também da cantora Nara Leão, a musa da bossa nova, que também nos deixou faz o mesmo tempo. 

Pensar que Nara era somente o clássico "baquinho e violão" apenas é um insulto. Principalmente depois que você fica sabendo da existência do show Opinião, ao lado de Zé Kéti e João do Vale (que também eternizou a baiana Maria Bethânia, que a substituiu) e de ouví-la cantando "Lindonéia" no álbum Panis et circensis ou ao lado de Chico Buarque em "João e Maria". Ela foi símbolo de uma época que não volta mais.

E se você, pobre mortal, não conhece ao menos isso, melhor eu parar por aqui e mandar você se inteirar a respeito... 

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O álbum novo do Bon Jovi

E ouvi no you tube Forever, último disco do Bon Jovi, em meio aos comentários sobre os problemas na voz do vocalista e a incerteza sobre o futuro da banda. E não bastasse isso, o álbum tem todo um clima nostálgico, bem a cara do que a banda fazia quando no auge. 

Se será o fim da jornada para o grupo eu não sei, mas que tem todo um sentimento de "está chegando a hora de desplugar os instrumentos" no tom das faixas, ah isso tem!


domingo, 9 de junho de 2024

Pato Donald, 90 anos


Durante muitos anos - mais especificamente no período pré-adolescente - eu tive implicância com o personagem. Via na tv aberta seus desenhos e ele estava sempre irritado, se incomodava com tudo e tinha aquela voz de gralha (cheguei a ler num artigo de jornal certa vez a expressão "cabrito assustado" acerca da sua voz). Contudo, acabei vencido. Era apenas o charme, a particularidade dele. 

E eis que o pato Donald chega hoje à inacreditáveis 90 anos de idade, ainda comovendo e divertindo gerações. 

Quando exibiam na Rede Globo os episódios de Mickey e Donald eu não perdia um. E acredito que qualquer pessoa da minha geração tenha passado pela mesma experiência. Eu tentava fazer a voz do personagem, sem sucesso, e quando conheci seu dublador num programa de entrevistas fiquei impressionado com a facilidade com que ele fazia o timbre. Eu quase estourei minha garganta tentando. 

Já o SBT, quando começou a exibir Duck Tales - que trazia o Tio Patinhas numa versão modernizada - eu fiquei louco e cheguei a procurar os episódios em dvd para rever quando quisesse. Era meio que a constatação derradeira do sucesso daquele personagem, bem como do universo Disney em geral (bem diferente do momento equivocado que a empresa vem trilhando nos últimos anos).

Nos Estados Unidos, seu nome completo é Donald Fauntleroy Duck e antes que me perguntem se ele é de fato um pato, vou logo respondendo: "não; trata-se de um marreco". Tem sua imagem muito associada à marinha por conta da roupa e do quepe azuis e volta e meia recebe a visita dos sobrinhos Huguinho, Zezinho e Luisinho. E ainda tem um interesse amoroso, a Margarida.

No período em que lia gibis (aqueles pequenininhos) quase religiosamente, uma das edições que mais apareciam aqui em casa eram os Almanaques Disney, e as primeiras histórias que eu lia eram sempre as do Donald. Quando ele era importunado, então, pelo seu primo Peninha, eu as devorava rapidamente. Cheguei, inclusive, a ler exemplares no original em inglês no período em que estudava o idioma no CCAA.

Para a sorte do próprio personagem ainda demora um pouco até que ele entre em domínio público e vire alvo de especuladores e criadores de conteúdo que fogem e muito da proposta original, chegando a deturpá-la completamente (vide o que andam fazendo com o ursinho Pooh, transformado recentemente em serial killer sanguinário num filme B).

Ao fim deste pequeno texto (em tese) que acabou crescendo mais do que eu esperava, uma certeza: a de que eu também estou ficando velho e não imaginava, nem em meus sonhos mais loucos, que veria a chegada das nove décadas de um personagem tão icônico. Agora o jeito é esperar o centenário. 


sexta-feira, 7 de junho de 2024

O caos tem um novo sobrevivente


A primeira vez que assisti Mad Max, o longa original de George Miller de 1979, eu tinha apenas 9 anos. O ano era 1985 e o Brasil mal entrara no processo de redemocratização. E mesmo que eu não tivesse entendido completamente as nuances daquele universo apocalíptico, terminei a sessão pensando: "isso é muito foda! não, é revolucionário e eu vou precisar assistir de novo!".

Fiquei tão em êxtase que o reassisti, ao longo das décadas, pelo menos umas 20 vezes.

O tempo passou, Miller continuou sua parceria com Mel Gibson em duas sequências (a de 1981, Mad Max 2: a caçada continua, é absolutamente brilhante; e a de 1985, Mad Max: além da cúpula do trovão, se destacou mais pela presença da cantora Tina Turner do que pelo longa em si) e eu fui cooptado de vez por aquele cenário caótico. 

Três décadas depois, agora com Tom Hardy na pele de Max, Miller nos apresenta - e assombra novamente - com Mad Max: estrada da fúria. Porém, ele introduz a Furiosa (Charlize Theron), uma personagem cheia de amargura e muita atitude, que toma o filme de assalto. Para mim, ela é a grande protagonista do longa. Tanto que muitos perguntaram: de onde veio essa moça? Qual a sua origem? 

Eis então que Miller nos entrega seu Furiosa: uma saga Mad Max com o intuito de responder a essas perguntas. E ele pode até não ter conseguido elucidar todas elas, mas com certeza nos entregou um grande épico. 

Furiosa nos traz essa nova sobrevivente do caos (agora interpretada por Anya-Taylor Joy), uma mulher a quem desde nova lhe foi roubada sua liberdade e foi usada até quase às últimas consequências por um mundo masculino bárbaro, atroz. Seu principal algoz é Dr. Dementus (Chris Hemsworth), que explora sua ingenuidade o máximo que pode até que ela vai parar nas mãos do irracional e maquiavélico Immortan Joe (Hugh-Keays-Byrne), praticamente o "dono do mundo" dentro daquela realidade inóspita.

Ela então entende que para sobreviver a dor e a penúria daquele lugar será preciso lutar com suas próprias regras. Galga posições dentro da hierarquia de poder, conhece - e forma aliança - com Praetorian Jack (Tom Burke), e finalmente terá a chance de ficar frente a frente com o homem que roubou sua vida e matou sua mãe. O resultado disso? um ensaio devastador sobre a ganância e a falta de limites da própria humanidade. 

Infelizmente (e não sei explicar o porquê) o novo longa de Miller parece ter flopado nas bilheterias. Muita gente nos sites e portais sobre sétima arte comentando (de novo) sobre o futuro do cinema em meio às megaproduções caríssimas e uma janela de exclusividade cada vez mais curta para a tela grande. É uma pena... Furiosa é bem melhor do que grande parte do que vem sendo produzindo nos últimos tempos. Merecia um maior destaque. 

Mas hollywood também é isso: nem sempre se acerta e o gosto atual do público, após produções como Barbie, Oppenheimer e a eterna encheção de saco envolvendo a dicotomia Marvel e DC, me parece às vezes um tanto aleatório. Sério. Não consigo entender o sucesso de certos longas contemporâneos. Definitivamente sou de outra geração. E pior: a velhice chegou.

Contudo, espero que Miller não pare por aqui. Ele continua sendo um mestre no gênero ação e continuo boquiaberto com sua arte. A questão é que, assim como Copolla, Scorsese, Lynch, Schrader e outras feras, ele se tornou um dinossauro e o público-alvo agora além de outro é chato, moralista e por vezes infantil em demasia. E será preciso enfrentar isso com unhas e dentes.  


segunda-feira, 3 de junho de 2024

100 anos sem Kafka


Ninguém sabe ao certo - pelo menos, não antes de começar a ler - o que irá nos guiar no vasto mundo da literatura. E acreditem: isso pode ser uma virtude. 

Há momentos em que o autor literário te ganha pelo que ele tem de magistral, de gênio à flor da pele, de grandioso. Porém, há outros - também brilhantes - que chamam sua atenção pelo exato oposto: a capacidade de não serem convencionais, de desconstruírem o mundo real ou de fugirem ao óbvio e se debruçar sobre o lado negro da vida (e da própria arte em si). Franz Kafka era desses. E que bom poder dizer "graças a Deus" por isso!

O gênio modernista cuja morte completa um século hoje, é o exemplo vivo do que convencionamos chamar de nonsense. Em Kafka o absurdo e o irreal ganham outras conotações. Da deformação da realidade ao realismo mágico, ele apresentou à sociedade um novo modelo de narrativa (e. por que não dizer, de existência).

Nascido em 3 de julho de 1883, em Praga, na República Tcheca, O escritor - filho de um comerciante judeu autoritário - se formou em direito, mas se aposentou precocemente devido a problemas de saúde (mais especificamente, tuberculose). E muito por conta desses inúmeros revezes ao longo da vida, sua literatura traz um clima extremamente forte, de opressão. Há inúmeros duelos arrebatadores entre seus personagens, bem como um sentimento de niilismo pungente.

Foi muito fácil virar fã de Kafka, após ler obras tão grandiosas como A metamorfose (1915) - este, em particular, eu releio sempre que posso e lembro de ter tido pesadelos quando o li a primeira vez, ainda adolescente - , Na colônia penal (1919), Um artista da fome (1922), O processo (1925), Carta ao pai (1952) - que me foi recomendado, por sinal, pelo meu próprio pai -, dentre outros. 

O autor se utilizava de alegorias e recorria ao fluxo de consciência de seus personagens para expor a angústia existencial dos intelectuais de seu tempo, o que acabava por desencadear uma visão pessimista do mundo, bem como uma descrença acerca do ser humano (isso antes mesmo do advento da internet e das tecnologias digitais bagunçarem a sociedade como um todo). 

Provavelmente muitos leitores da atual geração young adults o verão como um reles derrotista (algo que também deve acontecer muito com o filósofo Friedrich Nietzsche) e, desde já, adianto: não tirem conclusões precipitadas. Trata-se de um pensador que entendeu como poucos a época em que viveu e por isso seu texto parece tão seco, duro, direto ao ponto.  

Ao fim, o que fica de legado desse gigantesco artista da palavra é a certeza de estar diante de um dos maiores testemunhos já criados sobre o início do século XX. E que bom seria se os novos leitores o redescobrissem ao invés de perderem tanto tempo lendo babaquices internéticas e auto-ajuda. Mas os leitores de verdade não te esquecem, Franz! Jamais! Que venham os 200 anos!