sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Fragmentos de um cinéfilo apaixonado


Do pessoal ao universal; o microcosmo e o macrocosmo; o cinema como arte, como denúncia, como proposta de flerte; o dia-a-dia e um certo algo mais... Kleber Mendonça Filho acerta de novo em cheio e prova por a mais b porque é um dos cineastas mais interessantes - e relevantes - de sua geração. 

Retratos fantasmas, documentário que passou pelo Festival de Cannes em maio e é nosso candidato postulante à uma vaga no Oscar de melhor filme internacional, sabe ser lírico e ao mesmo tempo investigativo quando necessário. Mencionei a palavra documentário, mas em alguns momentos o diretor também brinca com o conceito de metaficção. E é muito bem-vindo nessas horas também. 

Nota-se de cara a evidente paixão de Kleber pela sétima arte. Ele fuça arquivos, lê jornais antigos, filma salas de cinema em Pernambuco (hoje fechadas), resgata a memória de um tempo, seleciona imagens com carinho, expõe sem vergonha a deterioração e o abadono de segmentos da cidade, ironiza ao mencionar a chegada das igrejas evangélicas que transformaram o local da cultura em centro de devoção.

Mais: vemos o carnaval de rua em sua máxima exuberância, testemunhamos o ator hollywoodiano Tony Curtis passeando pela cidade (cena que eu jamais poderia imaginar que pudesse acontecer) com todo seu garbo e elegância peculiares, apreciamos os vendedores de relíquias (cartazes e fotos de um tempo que, infelizmente, se foi), seguimos transeuntes e até mesmo gatos pelas ruas e vielas.

O apartamento da Setúbal onde morou, cenas de seus outros longas, de longas de outros diretores pernambucanos, até o surreal mezzo motorista de táxi mezzo fantasma, que encerra essa jornada com toques de universo fantástico, tudo está lá, a serviço da ode, do ontem, do que passou, do que poderia ter sido e não foi, por ganância (ou desleixo) de alguns. E ainda assim sem perder o foco e as implicações do hoje, do que estamos vivendo - e, claro, perdendo por conta desse mesmo desleixo. 

Se não falei da trilha sonora, melhor assim. Quero que vocês ouçam e tirem suas próprias conclusões, não vou meter minha mão nessa cumbuca. E as trilhas do Kleber são sempre ótimas! 

Retratos fantasmas fala, no final das contas, do papel da arte num país sem o menor compromisso com ele mesmo. Memória, cultura, conhecimento, pra quê? O que importa, para muitos alienados, é pedir a volta de um passado que nunca existiu ou foi deformado por falsas convicções. O resto: é perda de tempo. Se leva o Oscar ou não é o de menos. Valeu, Kleber! Que filme! Que viagem no espaço-tempo! 

P.S: desde já agradeço imensamente à Roland Barthes pela inspiração para o título desse famigerado post. 


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