Ninguém fez humor na literatura brasileira como ele. E poucos brincaram tanto com o texto, com tamanha astúcia e talento, como ele fez ao longo das décadas. Quando faleceu, aos 88 anos, eu senti o golpe, como acredito que todo mundo que é fã da boa escrita sentiu. Quem? Millôr Fernandes, é claro!
Se vivo fosse ainda, hoje estaria completando seu centenário e logo de cara eu imagino a grande piada que ele ia escrever em algum jornal ou tabloide de renome sobre o acontecimento. Tudo que ele se propôs a fazer em vida, fez bem: seja como tradutor, dramaturgo, prefacista de livros alheios, cartunista, chargista, poeta...
Autodidata por natureza - embora tenha sido aluno do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro entre 1938 e 1942 -, fez do sarcasmo não somente uma das características primordiais da sua obra, como também um projeto de vida. Afinal de contas, segundo ele, ninguém aguenta 24 horas de um Brasil careta, sacal e antipático. E somente a ironia combinada com a provocação fazia o público refletir sobre a realidade. Quando o alvo de suas críticas bem humoradas eram o poder constituído e as forças armadas a sátira era o melhor caminho. E eu conheci pelo menos dois militares de carreira que adoravam lê-lo.
E o seu pseudônimo que melhor representou essa verve mista de fúria e deboche foi, com certeza, Emmanuel Vão Gogo. Com ele não dá pra inocentar ninguém, nem ficar em cima do muro. Era dá ou desce!
Entre seus livros indispensáveis, aqueles que deveriam figurar na estante de qualquer leitor que admirem a sua cara-de-pau notória recomendo: Pif-Paf (1964), A maconha ou a vida (1968), O livro vermelho dos pensamentos de Millôr (1973), O livro branco do humor (1975), O homem do princípio ao fim (1978), Eros uma vez (1987) The cow went to swamp: A vaca foi pro brejo (1988)... e deixo as reticências de propósito para avisar que, provavelmente, se você tiver a chance, vai quer ler tudo.
E não somente nos livros, mas também nos veículos onde trabalhou: O cruzeiro (Onde começou cedo, aos 14 anos), Veja, O pasquim, Correio da manhã, Diário popular (em Portugal), O guri (publicação dos Diários Associados voltada para o mercado de quadrinhos), revista A cigarra, Diário da noite, TV Itacolomi, TV Tupi... Ufa! Não parava esse Millôr. E que bom para nós, leitores, saber disso.
Tornei-me leitor assíduo de William Shakespeare por causa das traduções dele. E, quando morando no Méier (onde vivi por quase duas décadas), soube que ele era cria do bairro, entrei na loucura de procurar saber em que rua ficava a casa onde ele morou. Pois é... Fã é maluco, eu sei.
Mas a cereja do bolo, o documento seminal para entendermos sua mente fervilhante de ideias é, com certeza, A bíblia do caos (publicada em 1994), onde cria um compêndio definitivo para entendermos de forma coloquial - e não menos brilhante - o que se passa na alma do povo brasileiro. Cheio de frases antológicas, retrata o país da maneira mais escrachada (e por isso mesmo, atual) que eu já vi até hoje como leitor. Vejam abaixo alguns momentos e tirem suas próprias conclusões:
"Brasil: um país governado por um gigantesco tour-de-farsa";
"Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim";
"Sempre que te derem um pontapé, ofereça a outra nádega";
"O pior mudo é o que quer falar";
"O intelectual é a empregada doméstica dos poderosos";
"Poligamia é uma espécie de ângulo equilátero";
"Fiquem tranquilos: nenhum humorista atira para matar";
"Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados";
"O ser humano é inviável";
"Sexo é a única atividade que pode dar prazer a duas pessoas que se detestam";
"O homem tem a idade da mulher que está com ele".
Para quem quiser saber muito mais sobre essa figura ímpar da nossa cultura popular, recomendo o site https://ims.com.br/titular-colecao/millor-fernandes/, repleto de boas e curiosas tiradas.
Ah, Millôr, você não faz ideia da falta que um cara como você está fazendo na imprensa de hoje... Se você soubesse!!! Ou talvez você saiba e foi somente eu que enlouqueci (de novo) nesse blog. Tudo de bom pra você aí em cima, mestre.
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