Parece loucura dito por um cara que começou a ler com míseros 10 anos de idade e hoje, mais de três décadas depois, lê praticamente de tudo - de bula de remédio à relatório policial -, mas a verdade é que nunca havia lido 1984, clássico da ficção científica escrito por George Orwell e publicado em 1949. Conhecia a fama da obra através de relatos de críticos literários e celebridades e assisti por duas vezes a adaptação cinematográfica feita por Michael Radford e que traz o ator John Hurt na pele do protagonista. Mas o livro original nunca havia encarado de frente. Até semana passada.
E peço desculpas por isso aos amantes da literatura.
Enfim... Hoje, após terminar a leitura da última página desse clássico atemporal, me pego perguntando a mim mesmo, perplexo, sentado no sofá da sala: "como pude esperar tanto tempo? Eu devia estar louco, só pode! Não existe uma razão plausível para tanto adiamento."
1984 é, definitivamente, uma obra-prima irretocável, secular, de uma grandeza ímpar. E mais: a prova viva de que a expressão distopia não se resume apenas à esfera literária. Estamos vivendo de fato tempos negros, quase apocalípticos e Orwell, maliciosa e inteligentemente, enxergou tudo isso com décadas de antecedência. E ainda tem gente que quer condenar ou cancelar um gênio desses!
Acompanhamos a saga de Winston Smith em meio a um mundo, a uma realidade melhor dizendo, indigesta. À sociedade não é dado o direito a pensar ou mesmo deter qualquer tipo de conhecimento. Memória, então, esqueçam! Tudo é minimamente controlado pelo Grande Irmão e seus asseclas.
A novilíngua muda a forma de falar, de se expressar, o tempo todo. No final das contas nós, seres humanos, não passamos de cobaias ou experimentos incompletos que outra coisa não esperam senão o abate ou a eterna escravidão. Quem não é leniente com os fatos, quem não obedece o sistema com unhas e dentes, paga com a vida e antes disso é torturado, para servir de exemplo aos demais.
E mesmo assim Winston escolheu pensar, investigar o passado, se apaixonar, em suma, fazer suas próprias escolhas. Resultado: precisa ser apagado da história para que sua decisão não influencie os outros, não repercuta. Em outras palavras: ele precisa ser contido, pois do contrário virará um símbolo da rebeldia e da resistência. E o mundo acredita piamente que divergências tornam a vida pior. Ponto final.
Agora pare e pense em todos aqueles filmes hollywoodianos que você viu nos últimos, sei lá, 20, 30 anos, e que abordaram de alguma forma o futuro (ou um possível futuro) e se pergunte quantos tomaram o livro de Orwell como referência... Sim, ele é atual nesse nível. E não fica datado um segundo sequer, tendo em vista que o mundo real caminha exatamente para o mesmo ponto com as mesmas consequências catastróficas. É, eu sei... Parece mediúnico (e talvez até seja).
Há tempos não lia ficção científica desse nível e após terminar essa leitura avassaladora tomei uma decisão radical: preciso retomar meu convívio com o gênero, com as distopias, os ciberpunks, os William Gibsons e Isaac Asimovs. O mundo ganhou contornos macabros na última década e é preciso estar atento aos sinais. Não custa nada e ler - sobre esse ou qualquer outro assunto - não faz mal a ninguém.
Quer dizer: se você não perdeu a lucidez ou não se entregou à ignorância (como o sábio Orwell e este que vos escreve) realmente não. Agora é com vocês. Deem uma chance a esta obra-prima. Detalhe: é mais fácil de encontrá-la do que parece, mesmo com tanta gente inculta detonando ela quase todo dia. E no final das contas a ideia que me ficou na cabeça é a de que o hoje nunca pareceu tanto com aquele ontem. E isso é por demais terrível para simplesmente deixarmos pra lá.