terça-feira, 30 de agosto de 2022

O que varremos pra debaixo do tapete


O cinema brasileiro é, no mínimo, curioso. Vive no interstício entre os previsíveis clichês que rodeiam (e assombram) nossa sétima arte em eterna formação - leia-se: favela movies, comédias românticas escrachadas, longas gospels, etc - e a luta, por vezes solitária, de autores fenomenais que suam (e muito!) para contar suas histórias. 

Resultado: as salas de projeção lutam com unhas e dentes por minguadas semanas de um Narradores de Javé aqui, um Carlota Joaquina ali e um Se eu fosse você acolá. E o público espectador nacional, infelizmente, também não ajuda na hora de criar uma plateia decente, equilibrada e pensante. 

Entretanto, de tempos em tempos, uma produção tupiniquim faz história, é reconhecida internacionalmente, produz um legado gigantesco e permanece sob debate constante, gerando novas opiniões e elogios. É o caso claro do (ainda) magnífico Cidade de Deus, da dupla Fernando Meirelles e Kátia Lund.

Na adaptação do romance homônimo do escritor Paulo Lins vemos o Brasil que o próprio país sempre gostou de esconder. Aliás, corrijo-me: sempre gostou de varrer para debaixo do tapete. Refiro-me à realidade das favelas (tem quem prefira o termo periferia). Uma vida sempre árdua e repleta de desafios indecentes. Em muitos casos, o único caminho propício à ascensão social é a criminalidade. 

E dentro desse funil sufocante habitam seres humanos - quase tipos sociais - como o jovem fotógrafo Buscapé (Alexandre Rodrigues), o chefe do morro Zé Pequeno (Leandro Firmino), Cenoura (Matheus Nachtergaele), o assaltante Cabeleira (Jonathan Haagensen), o cidadão Mané Galinha (Seu Jorge), que até tenta seguir uma vida digna, mas vê sua jornada ser atravessada e destruída pelo mundo do crime, a sonhadora Berenice (Roberta Rodrigues), e tantas outras "criaturas de Deus" com suas existências pela metade ou quase isso. 

De pequenos furtos à traições na hierarquia do banditismo, de esnobismo social à dificuldade de sobreviver num território tão espinhoso, do dia-a-dia melancólico à momentos de euforia fugaz, onde uma simples perseguição a uma galinha pode se transformar numa grande festa... O filme de Fernando e Kátia é sublime no que possui de cotidiano, sem inventar ou glorificar fatos, deixando claro desde o primeiro take que ninguém é somente certo ou errado. Que somos todos dúbios por natureza. 

E a consequência dessa verdade sem rodeios é a história que a produção construiu ao longo de duas décadas. Sim, Cidade de Deus completou 20 anos em 2022 com uma relevância cada vez maior! 

Indicado a quatro categorias do Oscar - direção, roteiro adaptado, cinematografia e edição -  em 2004 e figurando na lista da revista Time dos 100 filmes mais importantes do século XXI, o longa ainda ganhou em território nacional a fama de modernizador da sétima arte brasileira. E é fácil entender o porquê. 

Cidade de Deus é estiloso e de um apuro estético raras vezes visto na produção cinematográfica da época em que foi feito e mesmo a atual. E não perdeu a sua pecha de moderno, não. Longe disso! Digo até mais: fez a cabeça de muito diretor que bebeu com folga nessa fonte. Afonso Poyart e Andrucha Waddington que o digam! 

Ao fim, quem precisa agradecer - e demais - é o público brasileiro por ver seu nome sendo lembrado entre os maiores cinemas do mundo com mérito. De chato mesmo só a eterna - e enfadonha - elite brasileira que nunca se libertou do seu complexo de "quero ser estrangeiro" espezinhando o longa por rotulá-lo de "filme de pobre que nunca chega a lugar nenhum". 

P.S: graças a Deus Fernando Meirelles seguiu em frente com sua carreira e não voltou ao favela movie. Nada é mais triste do que virar refém de um gênero. E o circuito nacional anda cheio disso!   


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