sexta-feira, 5 de agosto de 2022

O último beijo do gordo


Hoje foi aquele dia em que você pensa: "É... o humor brasileiro morreu mesmo. De vez. Agora não tem mais jeito". E logo a seguir se pergunta como você faz um texto curto homenageando um cara que praticamente fez de tudo. Tudo mesmo. Atuou, escreveu, dirigiu, pintou, tocou, apresentou o maior talk show que esse país já viu, sambou, andou de moto - e pagou um preço alto por isso -, falou inúmeros idiomas... Ufa! Haja talento para explicar uma pessoa como o Jô Soares, que nos deixou hoje aos 84 anos. 

O garoto abusado, que dava pinta de artista na piscina do Copacabana Palace e se recusava a ser fotografado se o fotógrafo enrolasse muito; que estudou no exterior até onde pode (e a grana da família permitiu) e quando se deparou com as vacas magras nem assim abaixou a cabeça para a vida, arregaçou as mangas e trabalhou, muito!, para construir a sua própria história. E eu não saberia dizer ao certo onde ela começa. 

Alguns, de uma geração mais antiga do que a minha, dirão que foi com A família Trapo, na Record, ao lado do também magistral Ronald Golias e Carlos Alberto de Nóbrega, mas por ser um multiartista que fez tanta coisa na carreira é provável que mesmo essa informação seja imprecisa. Quer saber: que bom! Jô era inclassificável. Difícil rotulá-lo, mesmo pará-lo num só estilo. Ele era todos num só.

Como esquecer de Norminha, Zé da Galera, Reizinho (Sois rei, sois rei!), o general de pijamas, o padre que a todo momento silenciava seu assistente com o inesquecível bordão "cala a boca, Batista!", o dentista tarado (bocããão!!!), o tradutor de libras do jornal, os candidatos alucinados que satirizavam o horário eleitoral gratuito e, claro, o melhor de todos eles: o Capitão Gay, sempre acompanhado do seu fiel escudeiro, Carlos Suely (Eliezer Motta)!

Não tive a honra de vê-lo em Faça humor, não faça guerra ou em O planeta dos homens, mas não me esqueço das noites que passei no sofá da sala assistindo Viva o gordo, que tinha uma abertura divertidíssima com o humorista, entre outras peripécias, tabelando com Maradona, perdendo o cigarro por causa de um tapa do Gorbachev e roubando a carteira de um político. Junto com o programa dos Trapalhões aos domingos ele me fez cair na gargalhada toda semana. 

Cansado de se repetir ele decide assumir sua faceta entertainer como entrevistador e vai para o SBT, onde durante 12 anos, realiza o Jô Soares 11 e meia. Mas a infraestrutura da Globo o trouxe de volta por mais 16 anos no Programa do Jô. E ai de quem fosse pra cama sem ele! De Natalie Cole à Gisele Bundchen, de Francis Ford Coppola à Gilberto Gil, de Jean-Claude Van Damme à Miguel Falabella, de Andy Garcia à Arnaldo Jabor... Foram mais de 20 mil entrevistas em quase três décadas de puro deboche e inteligência afiadíssima. 

Com O Xangô de Baker Street, de 1995 - que eu li duas vezes - entrou de sola no mercado editorial (embora já tivesse se arriscado no segmento com o livro de crônicas O astronauta sem regime, em 1983) e se tornou best-seller aos 57 anos. Gostou tanto da experiência, que a repetiu nos também ótimos O homem que matou Getúlio Vargas (meu preferido dele, de 1998), Assassinatos na Academia Brasileira de Letras (2005) e As esganadas (2011). Como último ato literário ofereceu aos leitores, em dois volumes, O livro de Jô - uma autobiografia desautorizada (2017), que eu devorei em pouco mais de um semana, alucinado por sua vida frenética e histórias surreais. 

E para quem acha que acabou... Nada! Ainda é preciso destacar o incansável diretor de peças de teatro, o extraordinário cd de jazz que ele gravou ao lado do sexteto que o acompanhou durante toda sua saga nos talk shows, os inúmeros artigos que fez para O pasquim, Veja e outros veículos de imprensa, falando desde quadrinhos até os rumos da política nacional, as exposições como artista plástico e, óbvio, sua versão ator do cinema nacional (onde figurou até em pérolas da chanchada e do cinema marginal). Ei, espera aí!... Vão me bater se eu não disser que o Jô também dirigiu também um longametragem, O pai do povo. Ah tá! Agora sim. 

E esse senhor divertido, bonachão, sarcástico até a medula, que não tinha papas na língua, ganhou o respeito até de intelectuais como Carlos Drummond de Andrade e namorou - e casou - com as mulheres mais bonitas de sua época, certamente vai aprontar muito no andar de cima. Até porque Chico Anysio, Golias e Agildo Ribeiro estão a essa hora na porta do Éden para recebê-lo. Imagina a farra! 

Jô, só te conheço pela tv e pelos livros, mas mesmo assim você não faz ideia da mudança radical que realizou na minha vida. Se eu conseguir realizar 10% do que você fez em vida, pra mim já valeu ter vindo à terra. E é com um pesar indescritível que eu fico com este último beijo do gordo, pois esta quinta-feira pra mim foi isso. Fica em paz, mestre! E toda felicidade do mundo. 

Se tem alguém que merece, é você.  

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