sábado, 29 de janeiro de 2022

A nave


Já bem disse o trio Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Brito, integrantes da banda Titãs, lá pelos idos de 1987, ao comporem a música Comida: "A gente não quer só comida/ a gente quer comida/ diversão e arte/ A gente não quer só comida/ a gente quer saída/ para qualquer parte.../ A gente não quer só comida/ a gente quer bebida/ diversão, balé/ A gente não quer só comida/ a gente quer a vida/ como a vida quer...". E em tempos de liberdade de expressão comprometida, então, já viu né! O povo brasileiro, no fundo, nunca se satisfez com o trivial e quando o assunto é cultura, diversão e entretenimento, isso fica ainda mais nítido. 

Logo, que grande ironia ver um bando de loucos montando uma lona de circo na praia do arpoador, em plenos anos 1980, ditadura ainda rolando, mas a sociedade desejando a tão sonhada abertura política, oferecendo ao público a possibilidade de ser o que você quiser, sem freios ou rótulos, muito menos estereótipos. Assim nascia em janeiro de 1982 o Circo Voador, que agora em 2022 completa quatro décadas de existência e pura rebeldia (mas com engajamento, é bom que se diga!).

Não fosse o circo o rock brazuca jamais teria dado as caras na cidade maravilhosa. Em shows antológicos e pioneiros até a medula, conhecemos Barão Vermelho, Blitz, RPM, Capital inicial, Titãs, Legião Urbana, Camisa de Vênus, Ultraje a rigor, Plebe Rude, Paralamas do sucesso... Ufa! Você que é fã de rock como eu, sabe que a lista é grande então paro por aqui (mas com uma dor no coração, pois não quero ser injusto com ninguém). E importante que se diga: equivocam-se aqueles que pensam ser o circo espaço exclusivo do rock n' roll. Não, meus amigos! Por aqui também passaram feras da MPB como Adoniran Barbosa, Cauby Peixoto, Tim Maia, Luiz Melodia e tantos outros. O circo sempre foi democrático e se orgulha disso.

E não somente música: cursos, palestras, oficinas, teatro, audiovisual, espetáculos circenses, performances, dança... A nave, como bem gostam de se referir a ele seus frequentadores, absorve tendências, estilos, plataformas as mais distintas. Em uma palavra: um local destinado à inovação, ao saber e à arte. Até mesmo os projetos sociais, como a creche-escola (que não parou de funcionar nem na pandemia), a Escola livre de artes e o Estação Circo Voador (que oferece cursos profissionalizantes gratuitos) viraram cartões de visita desse templo do entretenimento e da cultura. 

Eu não consigo imaginar o Circo Voador sem poder falar de duas figuras fundamentais de sua história: a primeira é Perfeito fortuna, membro e criador do grupo de teatro Asdrúbal trouxe o trombone, que revolucionou as artes cênicas na década de 1970 com Trate-me leão, responsável pela grande ousadia que foi montar um espaço apto a receber jovens artistas à procura de um lugar (até então inexistente) para mostrar do que eram capazes. E a segunda é a avalanche em forma de mulher Maria Juçá, que quando viu o circo ser despejado da Lapa em 1996 - sua segunda casa, depois que os dois primeiros meses na praia se encerraram e o grupo foi expulso pelo estado - por conta de irregularidades vistas pelo então prefeito César Maia (que custou ao local oito anos de inatividade), arregaçou as mangas e lutou pela resistência do projeto com unhas e dentes, saindo vitoriosa da batalha. Sem eles dois, acredito que o circo já tivesse ido pras cucuias há tempos.  

Até porque chegar na Lapa naqueles tempos de decadência, com iluminação pública deficitária, ausência de segurança e um retrato vivo do abandono era uma jornada a qual poucos iriam querer enfrentar. E nesse momento, acredito, surgiu a grande sacada do grupo: embora fossem habitantes da zona sul carioca, entenderam rapidamente que o circo precisava ser um local de todos, não somente cariocas, e mesmo os cariocas não somente a elite. O subúrbio precisava estar ali; o norte, o nordeste, o centro-oeste, o sul, o Brasil como um todo, precisava - e muito! - estar ali. Por quê? Porque havia uma urgência do povo brasileiro em voltar a ter uma voz, não aceitar o que vinha de cima, de boca fechada ou braços cruzados. Era o momento de grande reviravolta para o país e a sociedade entendia isso. E faria o que pudesse para consegui-lo. 

Duas imagens em forma de pessoas me fizeram pensar no legado criado pelo Circo Voador com o passar dos anos: 

1) Eu tive uma vizinha nos tempos em que morei no Méier que lembra com riqueza de detalhes da Surpreendamental Parada Voadora, que saiu da Praça Nossa Senhora da Paz, em Copacabana, e foi até o Arpoador para anunciar a estreia do circo em 1982. Mais: via nos olhos dela, descrevendo a cena, o mesmo brilho daquele dia, do que aquelas pessoas à frente do seu tempo significaram para a sua história e formação. 

2) Conheci antes da pandemia, dentro do Oi Futuro Flamengo, um jovem de pouco mais de 16 anos, que em 2015 esteve presente no Arpoador quando o circo reavivou suas origens montando uma nova lona na praia durante uma semana. E ele me disse na hora: "eu daria a minha vida, se pudesse, para ter vivido aquela época. Pareceu-me que naquele tempo as pessoas eram mais verdadeiras, tinham mais prazer em viver". 

É de histórias e memórias como essas que o Circo Voador vive e ainda viverá, pois quero muito crer nisso, por muitos e muitos anos. Dentro do circo, seja no Arpoador ou na Lapa, pessoas conheceram o amor pela primeira vez, se tornaram namoradas, noivas, gente se casou ali dentro (e com orgulho). Conheço gente que daria a vida por aquilo ali. E acreditem: não são fanáticos religiosos ou pessoas desequilibradas. São simplesmente pessoas que reconhecem que nunca mais houve outro lugar como aquele e, por isso, o circo precisa resistir. A qualquer custo. 

Para quem quiser saber mais ou aqueles que não frequentam o espaço ou sabem pouco sobre o lugar e a sua história recomendo de olhos fechados o livro Circo Voador - a nave, de Maria Juçá, que é praticamente um making of do local em versão impressa (e que rendeu um filme homônimo, dirigido pela cineasta Tainá Menezes) e o documentário A farra do circo, de Roberto Berliner e Pedro Bronz. Todos os três projetos culturais são singelas tentativas de retratar a vida agitada daqueles tempos em que o povo decidiu, enfim, voltar a viver. 

Faltou dizer alguma coisa? Certamente que sim. Um lugar desse tamanho, com tantas histórias e lembranças, não tenham dúvidas! Nem uma tese de doutorado consegue descrever de forma definitiva o que foi o circo. Mas se quiserem saber mais, entrem no site do Circo Voador agora que vocês vão encontrar o que falta. Ah se vão! E que venham os próximos 40 anos. 


terça-feira, 25 de janeiro de 2022

The black Woodstock


1969 não foi um ano nada fácil para os Estados Unidos. E quando você pertence a raça negra, então... Já viu! Guerra do Vietnã, segregação, os irmãos Kennedy mortos, Malcolm X e Martin Luther King assassinados, exploração de todos os lados, chacinas, desrespeito, violência e mais violência. Tudo isso na Grande Nação (como eles bem gostam de se autodenominar). 

E em meio a tanta tragédia e caos, como fazer para encontrar paz e esperança por dias melhores? Mais do que isso: onde encontrar um lugar que fale a minha língua, respeite a minha cultura, quem sou, minhas escolhas, meu direito a ser diferente? Eis que nesse momento entra em cena o cantor Tony Lawrence e organiza, entre os dias 29 de junho e 24 de agosto, no Mount Morris Park, o Festival cultural do Harlem, e oferece ao público o melhor da música negra. 

E dessa experiência, que ficou engavetada dentro de um galpão por cinco décadas, sem uso aparente, nasceu o extraordinário documentário Summer of Soul ...ou, Quando a revolução não pode ser televisionada, do diretor Questlove. 

Agora imaginem - e eu disse: só imaginem - poder sair da sua casa para assistir lendas como Stevie Wonder, B. B. King, Nina Simone, Gladys Knight, Sly and the family stone, entre outras feras, sem precisar pagar um centavo sequer. Parece um grande delírio ou conto da carochinha, não é mesmo? Pois aconteceu e por interesses meramente políticos e ideológicos, ficou esquecido da memória do povo que lá esteve por tantos anos. Motivo: o velho e arcaico racismo (e tem gente que até hoje, em pleno século XXI, diz que ele não existe ou é velado).

O simples fato de Questlove ter trazido à tona todas essas imagens fortes e nostálgicas já vale por um século dos EUA, pois trata-se também da história do mundo, sendo apagada de forma vil e covarde. Mas quando nos deparamos com os depoimentos de quem lá esteve, testemunhou aquilo tudo e, ao longo dos anos, foi induzido a acreditar que tudo aquilo não passava de uma ilusão, de uma lenda urbana, engrandece ainda mais a importância deste longa - que desde já figura na minha lista de melhores coisas que eu pude ver no ano que acabou. 

Depoimentos altamente políticos e controversos como o do pastor e ativista Jesse Jackson, inflamando a plateia cansada de tantas injustiças; a apresentação meteórica de Steve Wonder ao teclado, levando os fãs ao delírio; as canções politizadas e afiadíssimas de Nina Simone, expondo o racha no qual o país vivia naqueles tempos; instrumentistas em transe dedilhando suas guitarras e tremelicando seus corpos numa catarse que nada deve à Jimi Hendrix no Monterey Pop. 

E isso tudo para ficar apenas numa singela amostra do que rolou naquelas seis semanas que mais pareceram uma eternidade. Desde já, adianto: quem quiser saber mais, só vendo o documentário cuja única palavra que o define é sublime.  

O Festival cultural do Harlem aconteceu na mesma época do Festival de Woodstock e não à toa acabou eclipsado pelo seu primo rico e famoso. Embora todas as apresentações tenham sido gravadas, conforme relatado por um dos produtores, ninguém se interessou em transmitir a festa negra. Teve até gente recalcada dizendo que tudo aquilo havia sido criado como um grande cala boca, para que o povo negro, revoltado, não pusesse fogo no país todo. Enfim... A demagogia ou polarização nossa de todo dia!

Há um raciocínio que costumo fazer - e que deixa muitos de meus colegas hipócritas e falsos burgueses putos! - acerca da minha descrença sobre o capitalismo que cai como uma luva para entender o legado dessa produção magnífica. O capitalismo, em sua forma mais pura e nefanda, adora encontrar maneiras de destruir nossa memória e nossa capacidade de construir narrativas. Ele sobrevive de nossa ignorância e de nossa tendência a sermos escravos, obedientes, sem quaisquer perspectivas de vida. 

Pois foi exatamente isso que Questlove mostrou aqui: durante 50 anos o país que se vende como a nação mais poderosa do planeta escondeu de sua própria população um dos maiores manifestos já realizados pela comunidade negra. E tudo isso por um simples motivo para lá de mesquinho: a covardia étnica. Fossem os artistas que se apresentaram ali Frank Sinatra, Tony Bennett, Elton John e companhia limitada, e essas imagens não estariam amarfanhadas em meio a toneladas de poeira. Isso é triste e diabólico, eu sei...

E, infelizmente, também diz muito sobre a terra do Tio Sam, famosa por sua hipocrisia de longa data disfarçada de patriotismo. 


sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

A mulher do fim do mundo


Tem artista medíocre, que não passa de mero gravador de cd, mero replicador de playback, que só grita, pula e mostra a bunda; tem artista que é luta até dizer chega e não consegue chegar aonde realmente quer porque o mercado fonográfico não dá a mínima, só sabe perder tempo com vaidade e propaganda vazia e tem artista que é aquela força indescritível, que rompe barreiras, enfrenta desacatos, cai e levanta, não desiste, enfrenta e quando chega a sua hora de ir embora, você sabe lá no fundo, bem lá no fundo, que ele (ou ela) vai deixar saudade, não estava na hora, nunca está na hora.

Elza Soares, que faleceu ontem em casa, no Rio de Janeiro, de causas naturais, aos 91 anos, certamente fazia parte deste último grupo. Teve muita gente recalcada que não gostava dela e a culpou de tanta coisa e não é agora que vai mudar de opinião. Mas que se danem eles, pois a cantora que foi eleita a voz do milênio, disse tudo o que tinha pra dizer, encarou de frente seus demônios, deu um tapa na cara do conservadorismo e realizou o seu maior sonho: cantou até o fim. E são poucos os que conseguem realizar isso nesse país injusto e desigual. Só nos resta chorar e, principalmente, lembrar do seu legado. 

A menina que casou com apenas 13 anos, numa união arranjada por seu pai e viu seus dois primeiros filhos morrerem ainda recém-nascidos, vítimas de desnutrição, já percebia ali o quanto sua vida seria uma saga dolorosa, dessas de encarar um leão por dia. Mas acham que ela se acovardou? Longe disso. Transformou sua vida numa jornada apoteótica, intensa, e emocionou o mundo com sua voz, sua força de vontade e sua determinação. Em poucas palavras: Elza era um caso sério. E tive a nítida sensação disso ao ouvir seguidamente vários de seus discos no spotify, durante horas após o anúncio de sua morte. 

Elza Gomes da Conceição começa a mostrar a que veio na MPB no final dos anos 1950 como parte da cena do Sambalanço com o disco Se acaso você chegasse, em 1959. Mas se perguntassem a ela nos anos 1960 a quem ela devia sua entrada nesse mundo espinhoso ela certamente citaria dois nomes importantíssimos para a sua carreira: o cantor Miltinho, com quem gravou vários álbuns, e o baterista Wilson das neves. Sem eles, ela provavelmente estaria tentando até agora. Ainda mais sendo mulher, negra e pobre num dos países mais preconceituosos do mundo. Precisou se impor - e muito!

Prova viva disso é que quando perguntada por Ary Barroso, num programa de calouros do qual participou, de que planeta ela vinha, respondeu na lata: "Do mesmo planeta que você, seu Ary. Eu venho do Planeta fome", título de um dos seus últimos trabalhos.

É fundamental dividir a carreira de Elza em dois momentos: o primeiro é o período do samba, agregando as décadas de 1960 e 1970, com releituras extraordinárias de clássicos do gênero da lavra de Noel Rosa, Ataulfo Alves, Dorival Caymmi, Lupicínio Rodrigues, Zé Keti, Candeia e outras feras. E o segundo a partir dos anos 2000, em que insere no seu repertório elementos do hip-hop, do funk e da música eletrônica. E seja lá por que caminho você decida começar a conhecer a cantora, saiba desde já que ficará deslumbrado. 

Um dica pessoal e definitiva: ouça os discos ao vivo que Elza gravou. Vê-la no palco era um deleite à parte e o que se percebe ouvindo suas apresentações é que ela sempre entrega tudo de si e ainda mais um pouco. Ela era dessas: nunca se bastava no exercício do seu ofício. 

Ela também passou por um tempo de vacas magras e não me refiro ao caso explosivo, cheio de revezes, tratado como escandaloso pela mídia, que teve com o jogador de futebol Garrincha (com quem viveu de 1966 a 1982) ou a perda do filho Garrinchinha, aos 9 anos, num acidente de carro, mas do ostracismo musical que viveu nos anos 1980, quando ninguém queria gravá-la, pensando até em desistir da carreira. Acabou salva por Caetano Veloso, com quem gravou Língua e viu a retomada de sua carreira acontecer em meio a uma nova geração de artistas, admiradores do seu talento e sua bossa negra. 

Sua marca registrada e inconfundível era o scating, que fazia com que sua voz ganhasse uma sonoridade diferenciada, gutural, única. No programa Conversa com Bial ela disse que a característica guardava semelhanças com o que o cantor Louis Armstrong fazia com a sua voz e que a cantora Ella Fitzgerald também era adepta do estilo. Quando viajou para o exterior, chegou a ser vista como uma imitadora do mestre por trás de "What a wonderful world". Mal sabiam eles, os gringos, que a luz de Elza era própria e potentíssima. 

Além dos artistas aqui citados acima, Elza também cantou Cazuza, Chico Buarque, Martinho da Vila, Assis Valente, Jorge Ben, Wilson Simonal, Tito Madi, Tom Jobim, Marcos Valle, Lulu Santos, Luiz Melodia, Gonzaguinha... É mais fácil perguntar quem ela não gravou. Entre os muitos sucessos de longa data, "Mulata assanhada", "Palhaçada", "O meu guri", "Beija-me", "Sal e pimenta", "Diz que fui por aí", "Gamação", "Bom dia, Portela", "Malandro" e outras dezenas. 

Elza Soares foi a mulher do fim do mundo (nome de seu álbum homônimo, realizado em 2015 e verdadeira reviravolta em sua carreira); falou que Deus era mulher, provocando a fúria dos conservadores religiosos; alardeou aos quatro ventos que "a carne mais barata do mercado é a carne negra", muito antes dos recentes assassinatos em massa de jovens negros em favelas. O racismo não derrubou essa mulher, o machismo não derrubou essa mulher. Virou enredo da escola de samba Mocidade, virou Biografia - sublime, por sinal! - escrita pelo jornalista Zeca Camargo, virou personagem avassaladora no documentário My name is now, de Elizabete Martins Campos. E como bem disse José Louzeiro, num outro trabalho literário sobre ela, "cantou para não enlouquecer". Pois a única coisa que ela queria era "cantar, cantar até o fim. Me deixem cantar". E assim o fez.     

O que dizer mais dessa mulher de fibra, que não suportava rótulos, acompanhou o seu tempo, não admitia ficar parada, na pista, e deu com elegância a segunda face a todos que quiseram lhe pôr no chão? Só o meu muito obrigado. E fica com Deus, Elza! Se tem alguém que merece estar com Ele agora, é você.

P.S: eu sei que o artigo ficou grande, mas em meio ao 34 discos gravados, não custa nada oferecer um kit básico para você, leitor, ouvir, curtir, sentir e delirar ao som de Elza Soares. É o mínimo que eu posso fazer.

O samba é Elza Soares (1961)

Sambossa (1963)

Na roda do samba (1964) 

O máximo em samba (1967)

Sangue, suor e raça (1972) ao lado de Roberto Ribeiro

Elza pede passagem (1972)

Do cóccix até o pescoço (2002)


quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

A pimentinha


Tem artistas que são dúbios e essa é com certeza a melhor qualidade deles, pois não vejo o meio artístico como uma ciência exata ou um emprego público, de bater ponto, salário fixo e certo no final do mês. Só começo a me interessar pela figura do artista quando ele escancara os limites do possível, quando ele transgride, foge do óbvio, ultrapassa o bom senso. E nesse sentido, a cantora Elis Regina preencheu todos os pré-requisitos e com folga. É difícil falar de Elis (e me refiro à pessoa, por vezes complexa, contraditória, de temperamento forte). Mas também é fácil falar de Elis e sua voz e presença de palco deixaram isso muito claro ao público. 

Hoje, 19 de janeiro de 2022, completamos 40 anos sem Elis Regina. Sem suas interpretações magistrais, sem sua voz inconfundível, sem seu talento para cativar plateias Brasil afora. E a MPB nunca precisou tanto de alguém como ela (vide o que as rádios e os programas de auditório vêm apresentando nos últimos tempos e chamando de hit parade!).

A menina de Porto Alegre que com onze anos de idade já se apresentava no programa Clube do guri, na Rádio Farroupilha, com quinze já tinha contrato na Rádio Gaúcha e chegou a ser eleita "a melhor cantora do rádio" e no ano seguinte veio para a cidade maravilhosa de mala e cuia para gravar seu primeiro disco, o hoje nostálgico Viva a Brotolândia, era precoce mesmo e deixou claro para o país e quiçá para o mundo que sabia bem o que queria da vida e nada a faria mudar de opinião. Não foi à toa que Vinicius de Moraes, o poetinha, a apelidou de Pimentinha. 

Entre 1964, o contrato com a TV Rio para apresentar o programa Noite de Gala (onde então conheceu o seu primeiro marido, Ronaldo Bôscoli) e 1965 e a sua participação no 1º Festival de Música Popular Brasileira, na TV Excelsior, cantando "Arrastão" de Edu Lobo e saindo vitoriosa, veio o ponto de virada na carreira. A partir daí, tudo o que Elis cantasse virava sucesso. 

Contudo, a consagração definitiva mesmo junto ao público veio com aqueles que eu considero seus dois melhores trabalhos: Elis e Tom (1974), no qual realiza uma extraordinária dobradinha com um dos pais da Bossa nova e fez de "Águas de março" um clássico do nosso cancioneiro, e o seminal show Falso Brilhante (1975), transformado em disco no ano seguinte, em que interpreta sucessos como "Fascinação", de Ivan Lins e "Como nossos pais", de Belchior. Recomendo o álbum aos fãs de boa música de olhos fechados. É das melhores coisas que o nosso mercado fonográfico produziu até hoje! 

Há ainda vários pesquisadores e estudiosos da música brasileira e da carreira de Elis que incluem nesse pacote de pérolas da cantora o também ótimo Saudade do Brasil (1980), um de seus últimos trabalhos. Aqui é possível ouvir a cantora na exuberância da sua voz em canções eternas como "Maria Maria", de Milton Nascimento e "Alô alô marciano", de Rita Lee e Roberto de Carvalho. 

E isso sem contar o programa O fino da bossa, que apresentou entre 1965 e 1967 na TV Record em São Paulo ao lado do cantor Jair Rodrigues e do grupo Zimbo Trio e que rendeu os álbuns Dois na Bossa I, II e III, o famigerado show no Olympia de Paris em 1968, do qual saiu ovacionada pela plateia e os também hits "O Bêbado e o equilibrista" (considerado o hino da anistia), "Madalena", "Casa no campo", "Romaria", "Upa neguinho", "Se eu quiser falar com Deus", entre outras façanhas musicais.

Elis era, em uma palavra, eclética. Ia da MPB ao jazz, sem fugir do rock (mesmo com a polêmica envolvendo a manifestação contra as guitarras elétricas no Festival da canção de 1967 e que, com o passar dos anos, se provou uma grande bobagem), da bossa nova e, claro, do samba. É considerada por muitos como a melhor cantora brasileira de todos os tempos. Nesse terreno eu prefiro não meter a minha colher por causa da minha adoração quase mediúnica pela Gal Costa (e isso já rendeu pano pra manga em discussões com colegas meus) e sua morte abrupta a transformou em mito, reconhecida até por artistas do quilate da cantora Bjork.

Ela produziu sete álbuns ao vivo, 21 de estúdio, 33 compactos, porém mais do que isso, criou um legado inestimável para a nossa historia cultural. Com seu canto cênico e apresentações por vezes intimistas, introduziu um estilo de apresentação. Tanto que até hoje é regravada e reverenciada por novas vozes femininas da nossa música, que não perdem a chance de beber nessa fonte cada vez mais moderna e necessária. 

Seus filhos, João Marcelo Bôscoli, Pedro Mariano e Maria Rita, continuam por aí, todos eles - como a mãe - atrelados à música. Para muitos, são sua perpetuidade. Pena que as pessoas que vendem música no Brasil hoje em dia prefiram perder tanto tempo com tanta coisa descartável, de baixo calão. E isso, infelizmente, os apreciadores de boa música não podem fazer nada para corrigir, pois estão nas mãos de interesseiros com um extremo mau gosto que só visam o lucro fácil. 

Logo, só nos resta recorrer aos arquivos, às lembranças, aos vídeos do you tube e alguns poucos serviços de streaming que ainda se interessam por fazer ecoar a voz, o sentimento e o talento de uma das figuras mais icônicas da nossa música. Saudades, Elis! (e olha que eu nem posso dizer que pertenci a sua geração, pois nasci em 1976, mas ainda assim sou seu fã de graça).


domingo, 16 de janeiro de 2022

A miséria humana

 


É mais fácil o mundo como o conhecemos chegar à sua extinção do que conseguirmos realmente entender o que é a sociedade contemporânea". A frase é de um sociólogo que palestrou no Congresso Internacional do Medo, que eu fui assistir no Teatro Maison de France, no centro do RJ, anos atrás. E quando ele proferiu essas exatas palavras foi extremamente aplaudido pela plateia. De fato, a humanidade como a conhecemos é a grande incógnita do mundo. 

Levando-se em consideração o triste fato de que somos criados, desde pequenos, a viver imersos em mentiras ideologicamente fabricadas, o que sobra de valor na construção disso que chamamos de ser humano? Honestamente... Muito pouco ou quase nada, como bem diria meu pai, um dos homens mais críticos que eu conheci em toda a minha vida. Contudo, é preciso seguir em frente. É isso que diz o senso comum que move o mundo e suas controvérsias. E, de vez em quando, aguardar um grande desabafo de alguém lúcido (e corajoso) o suficiente para comprar essa briga.

Um desses é certamente o cineasta pernambucano Cláudio Assis, um típico exemplar do homem arretado, como costumam se referir aos corajosos o povo nordestino. Vide o que ele fez em seu longa de estreia Amarelo Manga, que chega aos 20 anos de existência neste 2022 confuso, perdido e devastador sem perder um segundo sequer de sua lucidez e, principalmente, sua força narrativa. 

Cláudio construiu - ao lado do seu magnífico roteirista, Hilton Lacerda - um magistral caleidoscópio da sociedade frágil, infame e vil na qual sobrevivemos todo santo dia. E é dos encontros e duelos entre esses personagens que nos daremos conta do quanto a civilização procura diariamente a sua própria exclusão, mentira, autodestruição, hipocrisia, entre outros substantivos ainda mais torpes. 

Entre o decadente Texas Hotel, praticamente caindo aos pedaços de tão velho - e eu falei velho mesmo, não vintage -, o Bar Avenida, administrado pela sensual e poderosa Lígia (Leona Cavalli), repleto de bebuns, boêmios e misóginos de carteirinha e o matadouro onde cabeças de gado são sacrificadas para alimentar o apetite voraz de uma sociedade cada dia mais faminta, vamos nos deparando a conta gotas com a verdadeira silhueta da humanidade, que teima em rotular suas catástrofes e cafajestisces de "o lado B da vida". Tudo para que não enxerguemos a realidade como ela realmente é. 

A dona de bar que não aguenta mais a sua vidinha mais ou menos e não consegue vislumbrar uma mudança na sua rotina desgastante; O homossexual faz-tudo do hotel, cujo único objetivo na vida é ter para si o amado, o açougueiro grosseirão (Chico Diaz), casado com uma evangélica raiz e com uma amante a tiracolo; O estereótipo máximo do trambiqueiro, canalha, machista (interpretação magistral de Jonas Bloch), um homem fascinado pelo seu próprio desprezo pela morte; O padre católico falido cujo únicos fiéis que ainda frequentam sua paróquia são os cães de rua, vadios, que passeiam pelas ruas do Recife à procura de comida. São apenas algumas amostras dessa grande alcateia amoral que virou o Brasil desde aquela época (e que duas décadas depois só fez piorar). 

Como pano de fundo - mas na verdade, um importante personagem para a trama - a própria Recife, com seus trabalhadores sofridos, seus sobreviventes, suas ruas destruídas, rachadas, arrebentadas, seja pela mão do tempo ou do próprio homem, esse predador notório que a tudo destrói com uma imensa facilidade e ainda tem a cara de pau de dizer que "não é bem assim, não!". 

A cada take, plano ou ângulo filmado de cima - um ângulo definitivamente intrusivo, de quem tem a clara intenção de bisbilhotar o outro -, percebemos a degradação desse bicho homem sórdido, cada vez mais voltado para seus próprios prazeres e interesses. E o país nisso? Que se dane! Vivemos no Brasil do "eu não ganho pra isso", "farinha pouca, meu pirão primeiro", "quando eu ganhar na mega-sena eu dou um jeito na minha vida", "bom mesmo é ser funcionário público e ter algum garantido no final do mês" entre outras pérolas desse nosso Febeapá nacional. Você não conhece a obra do Stanislaw Ponte Preta? Então você tá mais fodido do que eu!

Há algo na malícia, no deboche, no sarcasmo vivo do diretor que me fez vê-lo durante um tempo como uma espécie de Tarantino do agreste (mas me refiro ao Tarantino de Cães de aluguel e Pulp Fiction, não o de seus últimos filmes). O discurso seco, feroz, o dedo na cara provocativo, as frases poderosas e atualíssimas - "O pudor é a forma mais inteligente de perversão", "O ser humano é estômago e sexo" - e a correlação entre a vida cotidiana e amarelo pálido, da hepatite, do pus, da covardia diária, das feridas abertas, da falta de perspectivas sociais, são seus cartões de visita. 

Tudo isso à serviço da construção da miséria humana. Sim, porque ela é construída paulatinamente, se desdobra em inúmeras nuances e formatos, todos dotados da sua parcela óbvia de mau caratismo latente. Ao fim do longa, a então religiosa, desmascarada pela vida, entra num salão de cabeleireiro e pede que mude seu visual, agora, o quanto antes. Ela, a politicamente correta, também cansou. Cansou de esperar o amanhã, a vida eterna, o paraíso. Entendeu que a existência é bem mais cruel e macabra do que um mero sonho ou delírio baseado em dogmas. 

E já que o mundo não favorece o homem, que ele busque o que deseja a qualquer custo. Nem que seja na marra, ilegalmente, de forma injusta. Afinal de contas, que diferença vai fazer mesmo? Nós destruímos o que havia de melhor e faz tempo. Que Deus ainda possa ter piedade de nós!


quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

No que ele pensa tanto?


É comum nos depararmos a todo momento, dentro da indústria cinematográfica ou do segmento teatral, com a ideia de versões. Quem já adaptou Shakespeare para os palcos ou filmou sobre a segunda guerra mundial sabe do que eu estou falando. Todo grande artista do cinema ou do teatro que se preze já pensou (ou sonhou) em fazer a sua versão sobre um clássico, dar a sua interpretação sobre os fatos. E elas existem aos montes. 

Contudo, quando nos referimos às artes visuais não nos damos conta disso, pelo menos à primeira vista. Quando pensamos na Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, ela é sempre única. Aquela exposta no Louvre. Não existe outra. O mesmo se refere à Guernica, tela seminal de Picasso. Os grandes trabalhos dos mestres da pintura, da escultura, das artes plásticas em geral, precisam lidar com essa espécie de "ineditismo". Aquele raciocínio na linha "não veremos outra como esta". 

Só que às vezes esquecemos - ou não sabemos mesmo, por pura ignorância - que a obra famosa, aquela que decidimos idolatrar é parte de um contexto ainda maior e existem várias versões dela espalhadas ao redor do mundo. E preferimos fazer vista grossa, por acreditar que isso diminui a sua importância, genialidade ou pioneirismo.

O pensador, escultura de Auguste Rodin, é meio que um contrassenso nesse sentido. A figura do homem sentado numa pedra com a cabeça encostada em um dos braços que entrou para a história das artes plásticas, é desdobramento de um trabalho ainda mais gigantesco e acabou sobrevivendo e adquirindo luz própria de uma maneira um tanto quanto curiosa. São muitas as teorias acerca do trabalho de Rodin e é provável que elas venham a continuar existindo no século XXI. O que só abrilhanta ainda mais o seu legado, pois o grande mérito da arte é justamente esse: suscitar debates e opiniões as mais diversas.

Rodin foi um gênio, em muitos aspectos, incompreendido ou não valorizado como realmente deveria. Nasceu em 12 de novembro de 1840, em Paris, e aos míseros 13 anos já demonstrava seu talento para o desenho. Embora tenha demonstrado interesse por uma formação acadêmica, tradicional, acabou recusado três vezes pela Escola de Belas Artes de Paris, o que o levou a buscar o autodidatismo. E cá entre nós, fez bem, pois parece que isso lhe acentuou a capacidade criativa, mesmo no começo da carreira, quando produzia peças decorativas. 

O pensador, sua peça mais famosa, nasce numa versão menor - de meros 70 cm - como parte de O portal do inferno (trabalho que o consumiu por inacreditáveis 37 anos) e ficava localizado na parte de cima da criação, numa espécie de meditação não só sobre o inferno, como também sobre a própria obra em si. Era chamado inicialmente de O poeta e tinha como referência direta, dizem alguns estudiosos, o poeta Dante Allighieri, criador de A Divina Comédia. Porém, há quem prefira acreditar, que ela faça referência ao próprio Rodin, questionando o seu trabalho ou mesmo à Adão, figura bíblica, e as decisões que teve de tomar no paraíso.

O fato concreto é que O poeta (transformado então em O pensador, por conta de uma influência relacionada à Michelangelo) ganhou destaque, virou peça autônoma em 1888 e teve várias versões (a mais famosa em bronze), que estão espalhadas em diferentes países. A ideia do homem que reflete sobre o mundo e a sociedade em que vive atraiu mais adeptos do que a sua mera presença observando o inferno, uma terra de perdição e lamento. Em outras palavras: ele ganhou corpo e uma base crítica, que se propôs a estudá-lo, bem como questioná-lo. 

E trata-se de uma obra de extrema exuberância, de traços firmes, músculos bem definidos, extremamente expressiva. E porque isso? Porque o artista desejava que a escultura pensasse não somente com o cérebro, mas com todo o corpo, fazendo do conjunto da obra uma reflexão em si mesmo. É, na minha modesta opinião, um dos trabalhos mais perfeccionistas de toda a história da arte. 

Entre os que se propuseram estudar a escultura, são muitas as interpretações sobre o papel reflexivo da obra: tem quem o veja como um juiz, enquanto outros prefiram acreditar que ele seria um condenado, bem como os outros habitantes do reino das trevas. Eu conheci tempos atrás, dentro do Centro Cultural da Justiça Federal na Cinelândia, um professor de história da arte que acreditava piamente que O pensador refletia sobre a miséria do mundo, o que fizemos de errado com ele. Daí sua expressão triste, amargurada. Lembro de ter ficado meses pensando nessa possibilidade e confesso que até hoje não a descartei totalmente. Para vocês perceberem a contemporaneidade do trabalho, que não envelhece nunca. 

São muitas as possibilidades de vermos uma das versões de O pensador com nossos próprios olhos: em Paris há estátuas no Museu Rodin; em frente ao Pantheon; em Meudon, no jardim da casa do artista e sobre o túmulo do escultor. Já fora da França, temos uma versão disposta no Instituto Ricardo Brennand, em Pernambuco, feita utilizando o molde original e posicionada na galeria, com acesso restrito, e também uma nos jardins do curso de filosofia da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Vai depender da sua vontade e disponibilidade financeira. 

Ao fim desse arremedo de análise crítica, o que nos sobra é a certeza da criação de um legado histórico incomensurável, com uma vasta fortuna crítica sobre ele, produzido por um artista que se fez por conta própria, contrariando aqueles que esnobaram o seu talento e/ou capacidade. E ainda assim vai ter gente burra nesse país achando que arte não serve pra absolutamente nada. Não é à toa que a escultura tem tanto a pensar até hoje e nenhuma resposta aparente... 


sábado, 8 de janeiro de 2022

Orfeu negro


Nem bem terminei de postar o obituário que eu escrevi sobre o diretor Peter Bogdanovich nos grupos aos quais participo e a internet me despeja outra bomba: o fantástico ator Sidney Poitier também faleceu, aos 94 anos. A notícia é dada por Fred Mitchell, Ministro das Relações Exteriores das Bahamas, país de origem de Sidney (ele tinha dupla cidadania, pois nasceu em Miami, durante uma viagem dos pais aos Estados Unidos). 

E então eu penso: e agora? Por onde eu começo este texto? Dizer que Poitier foi o primeiro ator negro a ganhar o Oscar é óbvio demais, a quintessência do clichê. Todo mundo que ama cinema tem a obrigação de saber disso. É preciso mais e o ator, com sua carreira prolixa dentro e fora das telas, possui esse mais com louvor.

Sidney lutou contra a pobreza, o analfabetismo e o preconceito até se tornar um dos primeiros atores negros a ser reconhecido e aceito em papéis importantes pelo grande público. Entre O ódio é cego, de Joseph L. Mankiewicz (1950) e Construindo um sonho, de Gregg Champion (2001), foram mais de 50 títulos, muitos deles de um arrebatador sucesso. E não à toa ele é reconhecido pela comunidade negra e os atores das gerações posteriores como um pioneiro. 

Lembro da apresentadora de tv e produtora de cinema Oprah Winfrey, quando ganhou o Cecil B. DeMille durante a entrega do Globo de Ouro em 2018, falando da emoção da mãe dela ao ver Sidney faturando o Oscar de melhor ator em 1964 por sua interpretação em Uma voz nas sombras, de Ralph Nelson, e fiquei pensando na mesma hora o que aquilo representava para uma pessoa da etnia dela. Certamente, muito mais do que eu era capaz de imaginar. Entretanto, quando comecei a assistir Sidney em cena eu tive uma certeza: ele foi único em seu tempo - e até mesmo hoje. E desse dia em diante passei meio que a vê-lo como o verdadeiro  Orfeu negro do cinema  (muito mais do que aquele filme meia-boca do Marcel Camus, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes) 

De toda sua carreira gloriosa, um ano o define com folga: 1967. Embora tenha começado a despontar em 1959, com Acorrentados, de Stanley Kramer, que lhe rendeu sua primeira indicação ao Oscar, foi oito anos depois que fez seu nome de vez em três produções que marcaram época: Adivinhe que vem para jantar, de Stanley Kramer (que fala de racismo velado e mostra, de maneira ousada para a época, um noivado inter-racial), No calor da noite, de Norman Jewison (filme que até hoje me faz pensar na reação que o público teve no cinema quando viu o detetive interpretado por Poitier dar um tapa na cara do xerife racista da cidade, algo até então nunca visto nas telas) e Ao mestre, com carinho, de James Clavell (que traz o ator na pele de um professor de métodos nada usuais, tentando incentivar um grupo de alunos de uma instituição escolar cheia de desajustados). 

Porém, eu preciso fazer um aparte para exaltar aquele que é o meu filme preferido com ele: Sementes da violência, de Richard Brooks (1955). Aqui, num show à parte e ao som de um rock alucinante, Poitier enfrenta o professor vivido por Glenn Ford, designado para lecionar num colégio barra-pesada. Não pretendo dar spoilers, pois quero que os leitores deste artigo procurem pelo filme, que é um marco da era de ouro de hollywood. Mas tenham uma certeza: é um tapa na cara, no bom sentido.

Poitier também enveredou pela direção em nove longas. Os que mais se destacaram foram o western Um por Deus, outro pelo Diabo (1972), no qual também atua ao lado do amigo e cantor Harry Belafonte e a comédia Loucos de dar nó (1980), com a dupla Gene Wilder e Richard Pryor. Sua última incursão atrás das câmeras foi em 1990 com Papai fantasma, que traz o comediante Bill Cosby na pele de um espírito para lá de atrapalhado. 

A ascensão de Sidney Poitier dentro da indústria de cinema hollywoodiana coincide com o avanço do movimento pelos direitos civis nos EUA nos anos 1960. Tanto que seus personagens passam a refletir o pacifismo e a integração exigida pelo movimento na época. O ator também soube recusar muitos papeis, pois não queria se ver associado a imagem do marginal, do criminoso. E por muitos anos, embora fosse naquela época um dos cinco atores mais bem pagos da indústria, foi sempre boicotado quando o assunto era ser o par romântico de alguém nos filmes. Daí a importância de Adivinhe quem vem para jantar dentro da sua cinematografia.

Fora das telas, Sidney engajou-se em várias causas, chegando a receber por sua constante atuação a Medalha Presidencial da Liberdade pelo presidente Obama, em 2009. Além disso, também foi Embaixador das Bahamas no Japão entre os anos de 1997 e 2007. 

De seus últimos longas antes da aposentadoria - ou seja: antes de ganhar em 2002 um Oscar pelo conjunto da obra - gosto muito de O chacal, de Michael Caton-Jones (1997), em que persegue um assassino brutal pelos EUA ao lado de Richard Gere, Atirando para matar, de Roger Spottiswoode e Espiões sem rosto, de Richard Benjamim (ambos de 1988), no qual atua no segundo ao lado da então revelação hollywoodiana do período, o ator River Phoenix.

E mesmo depois de ter visto tudo isso, admito que ainda há um parte considerável de sua obra que eu ainda não conheço e que não é tão fácil assim de encontrar nem no mercado, nem na internet. Bem que eles podiam colocar num desses serviços de streaming uma série de películas antigas com o ator, numa espécie de homenagem ao seu legado. Sei lá... Só uma sugestão de um cinéfilo enxerido que ama o bom cinema. Vai que alguém lê isso aqui!

No mais: fica com Deus, Sidney! Por aqui embaixo você disse a que veio - e com folga.     


sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

O teórico do cinema


A Nova Hollywood foi muito mais do que uma vanguarda cinematográfica dentro dos EUA. Foi uma maneira de reimaginar o cinema norte-americano, dentro de outras bases, digamos, menos heroicas. A partir daquele grupo de desajustados - como eram chamados pelos ícones da indústria - hollywood passou a entender a necessidade de outros personagens mais amorais, fora do eixo, "bolas fora da curva", como nos referimos ocasionalmente a criações que fogem do padrão ou do costumeiro. E depois deles a sétima arte nunca mais foi a mesma na terra do Tio Sam. 

Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Steven Spielberg acabaram meio que virando uma tríade dessa geração, mas o grupo não se resumiu a eles. Longe disso! É possível encontrar grandes histórias e sonhos na obra cinematográfica de gigantes como Brian de Palma - um de meus favoritos dessa época -, Monte Hellman, Michael Cimino e Paul Schrader (responsável pelos roteiros dos extraordinários Taxi Driver e Touro indomável), entre outros.

Contudo, há um nome que muitos cinéfilos deixam escapar com frequência dentro dessa galeria genial de artistas e que eu considero um crime, pois mais do que um mero diretor de cinema, ele foi também um grande teórico do audiovisual. Publicou muita coisa boa sobre grandes nomes da história da sétima arte mundial. Falo do diretor, ator, produtor e escritor Peter Bogdanovich, que faleceu ontem aos 82 anos de idade.

Filho de imigrantes europeus fugidos do nazismo para Nova York, Bogdanovich era daquelas figuras que à primeira vista parecia um esnobe. Fosse pela maneira como se vestia, com seus cachecóis e pose de elitista, fosse pelo seu discurso empolado. Confesso: quando o vi pela primeira vez, dando uma entrevista, não tive uma boa impressão, não! Mas tudo passou imediatamente quando assisti Marcas do destino, com a cantora Cher. Vi ali que estava diante de um artista coeso, que não tinha vergonha de se expor e abordar temas polêmicos. 

Impossível imaginar dentro de sua cinematografia filmes que repercutiram mais do que A última sessão de cinema (até hoje o seu clássico eterno), pelo qual recebeu duas indicações ao Oscar em 1972, para direção e roteiro e Lua de papel. Porém, se tiverem tempo sobrando, deem uma fuçada na obra dele como um todo. Ele era, em suma, um diretor que fugia do convencional sempre que podia. 

Já na sua faceta autor e pesquisador, Peter esmiuçou a carreira e a vida de artistas do quilate de Robert Aldrich (mestre por trás do épico Os doze condenados), Orson Welles (criador do seminal Cidadão Kane), John Ford, Fritz Lang e tantos outros. Eu tive a oportunidade de ler dois deles: Nacos de tempo: crônicas de cinema (1986), numa versão em espanhol e Afinal, quem faz os filmes (2000), obra raríssima e supervalorizada, vide o preço que andam cobrando por um exemplar dele no Estante Virtual. Digo mais: acho a carreira autoral de Bogdanovich ainda mais sólida do que a cinematográfica. 

Após inúmeros fracassos durante os anos 1990 e quando muitos consideravam sua carreira encerrada, sem nada mais a dizer ao público, o diretor acabou se redescobrindo a partir dos anos 2000 na pele do analista Elliot Kupferberg, da série de televisão Família Soprano. A geração contemporânea talvez lembre mais dele atuando aqui do que em suas produções mais famosas. E eu não vejo problema algum nisso, afinal de contas, são gerações distintas, com gostos e opiniões diferentes. 

Entre seus últimos projetos constados no site IMDb, dois documentários - um sobre a banda de rock Tom Petty and the Heartbreakers e outro sobre o gênio da comédia Buster Keaton -, a comédia um tanto insossa e descartável Um amor a cada esquina, com Owen Wilson (que traz o diretor Quentin Tarantino, admirador de Bogdanovich, numa ponta no final do longa) e o misterioso One lucky moon, que figurava em pré-produção, interrompida pela pandemia e cuja única informação que consegui encontrar no Google foi a de que seria ambientada num parque temático do velho oeste.

Parece pouco para a geração que escolheu amar a Marvel, a DC e os streamings, eu sei... Mas é bem como disse o próprio cineasta em uma de suas últimas entrevistas: "o cinema anda em crise, mas as lendas ainda o alimentam". 

Acaba que, de concreto mesmo, apenas a certeza de que hollywood e o cinema mundial perderam mais um gigante das telas e nem sequer se davam conta disso. O que é não só uma pena, como terrível. Por isso eu vivo martelando em meus textos sobre cinema que a atual geração precisa deixar de ser preguiçosa e procurar saber mais sobre o ontem, sobre o que o cinema foi e continua sendo. Sim, meus amigos. Porque não existe esse papo de filme velho. Velho é quem fica dando prazo de validade ao cinema. 

Peter, fica com Deus e toda paz do mundo a você, onde quer que você esteja!       

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Aquela a que chamavam amaldiçoada


Dizem que 2022 chegou. Que seja. Mesmo que estivéssemos em 2030, 2040, 2100, ainda assim uma cultura não muda nesse país nem no mundo: a ideia fixa de que a mulher precisa estar abaixo do homem ou viver dentro de uma caixa, sem direito a fala ou espaço. E isso é triste, continua sendo triste. 

Contudo, ao longo da história, milhares de mulheres decidiram não seguir essa regra infame e foram a luta, peitaram o sistema, escolheram não se acovardar diante do machismo. E a dramaturga Consuelo de Castro certamente está entre elas. Vide o espetacular Medeia que escreveu.

Na verdade ela reescreveu, em 1997, o mito grego sob a ótica da personagem feminina e o chamou de Memórias do Mar Aberto – Medeia conta a sua história. E desde já adianto: ela atualizou a trama de uma maneira tão forte e destemida, que me faz ter fé no futuro (embora a civilização adore me desmentir de tempos em tempos).    

Medeia - vivida de forma brilhante pela atriz Bete Coelho - é Deusa, guerreira, imortal, amante e mãe. Apaixonada por Jasão (Flávio Rocha), faz de tudo por seu homem e acaba traída por ele, tanto politicamente quanto na cama. Ele se envolve sexualmente com Glauce (Luiza Curvo), filha de Creonte (Roberto Audio), com quem irá se casar, pois tem interesse no privilégio que isso trará para sua carreira, mas discorda do destino que o rei pretende dar a sua ex-mulher, mãe de seus filhos, e entra em conflito com ele, chegando a ameaçá-lo de se bandear para o lado do inimigo. 

Detalhe importantíssimo: entre as muitas perdas sofridas, a pior delas é a morte de seu irmão, Apsirto (Matheus Campos), a quem o marido acusa de ter sido verdadeiramente o seu único amor dela. 

Magoada, por muitos vista como a amaldiçoada, a mulher que levará a Grécia à ruína, ela decide ir às últimas consequências e se vingar no dia do casamento do ex-marido, pois acredita que é a única forma de retomar a vida junto com os filhos, sua razão de viver depois de tantas tragédias seguidas. Entretanto, para quem conhece esse universo teatral, sabe bem que nem sempre os planos originais chegam a um feliz objetivo. E por isso mesmo essas peças teatrais eram chamadas a seu tempo de tragédias. 

Mais do que o desfecho macabro dessa trama, é possível olhar a Medeia de Consuelo de Castro também sob a ótica do feminismo (um tema que não tem saído de moda no país nos últimos anos, e com todo o direito). Trata-se de uma mulher à frente do seu tempo, que não se envergonha de suas decisões. Talvez de suas escolhas movidas pela paixão; já a decisão de dar a volta por cima, nunca. E nesse mundo de homens inescrupulosos e sedentos pelo poder, ela precisa jogar com as cartas que possui. E elas são, certamente, amargas. 

No quesito parte técnica, vale a pena ressaltar a direção segura de Bete Coelho ao lado de Gabriel Fernandes (também responsável pela maravilhosa fotografia em preto-e-branco que dá o tom soturno necessário à trama) e ao trabalho magnífico de Cássio Brasil, que cuidou da direção de arte, da cenografia e do figurino. Raras vezes vi no teatro nacional um resultado tão esplêndido quanto aqui e é fácil entender porque muitos espectadores chamaram este de o melhor espetáculo do ano que passou. Ele merece essa honraria e com folga!

Até mesmo a canção final, na voz da cantora Tulipa Ruiz - artista que deveria ser mais valorizada em nossas terras, ao invés de perdermos tempo com funkeiras e sertanejos vazios - cai como uma luva para encerrar esta pequena obra-prima, de pouco mais de uma hora de duração. Não sei por quanto tempo mais ela ficará disponível no you tube, por isso desde já aviso: corram enquanto podem. Normalmente coisas boas o site tira logo do ar e você, fã de teatro, certamente não vai querer perder essa experiência por nada. 

E ciente de que eu já disse o suficiente para fazê-los procurar o espetáculo e tirar suas próprias conclusões, só me resta salientar um ponto: esqueçam esse papo chato de sexo frágil - como bem gostam os conservadores e demagogos. Enquanto houverem mulheres como Medeia, haverá espaço para o debate, o enfrentamento, a luta. E nós precisamos mais do que nunca (e muito) disso. Portanto, deixem de ser babacas e se permitam viver fora dessa bolha moral que absorveu uma parte gigantesca da sociedade. Podem ter certeza: ela nunca serviu para nada no final das contas.