quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

O rei do futebol


É incrivelmente difícil falar de uma lenda. Primeiramente, porque elas mesmas não estão isentas de falhar, cometer deslizes, fazer más escolhas, serem humanos imperfeitos. E depois porque, por mais que falemos delas, sempre fica aquela sensação cretina de que esquecemos de mencionar alguma coisa, tamanha a grandiosidade dele ou dela. 

Hoje perdemos nossa maior lenda do esporte, que vinha lutando nos últimos anos contra seu adversário mais duro. Nenhum outro oponente, nos campos por onde passou mundo afora, o tirou de uma competição de maneira tão dolorosa. Uma pena! Mas chegou o dia em que Pelé, o eterno rei do futebol, nos deixou aos 82 anos. E por mais que tenha sido uma vida ilustre, ainda queríamos mais, quiçá a imortalidade (tendo em vista o que ele produziu dentro e fora dos estádios).

O menino Dico, filho de Dondinho - que também jogou futebol -, que brincava em Bauru nos campinhos de barro e prometeu ao pai ganhar uma Copa para ele quando o viu chorando após a derrota do Brasil na final do mundial de 1950 para o Uruguai, tem uma história de vida tão gigantesca que nunca caberá neste mísero artigo. E ainda assim vou tentar com todas as minhas forças. 

Chega ao Santos e logo percebem que ele tinha algo incomum, que nunca seria igual aos demais (e realmente não era). Com seu jeito quieto, mas liso com a bola nos pés, faz a história numa época em que o futebol não era anos-luz o marketing e a publicidade dos dias de hoje. Honestamente... Graças a Deus! Eram tempos de craques, de bola rodando e nada de cabelos descoloridos e chuteiras douradas.

Ganhou mais de trinta títulos, alguns deles imprescindíveis como o tricampeonato mundial com a seleção (1958-1962-1970) e o bi pelo mundial de Clubes com o Santos (1962-1963) contra Benfica e Milan, respectivamente. E quando muitos na imprensa pensavam "agora ele para", surpreendeu a todos encerrando sua carreira no Cosmos, clube de Nova York, numa tentativa de levar o futebol profissional aos EUA. 

Dentro das quatro linhas é fácil exaltar Pelé. Mesmo eu, que não o vi jogar, apenas acompanhei suas imagens pelo Canal 100 e outros arquivos esportivos, fico deslumbrado com seu talento e capacidade física. Não à toa foi chamado de "O atleta do século" pela mídia da época. 

Contudo, é preciso também destacar um marca que notabilizou o craque: os gols que ele não fez e ainda assim foram comemorados com o mesmo impacto. Num deles, Gordon Banks (goleiro da Inglaterra) impediu com aquela que é considerada, por muitos, a maior defesa de todas as Copas. No outro, o goleiro uruguaio Ladislao Mazurkiewicz leva um extraordinário drible da vaca que para tristeza, mas também delírio de quem estava no estádio, passa rente a trave. Meu pai, antes de falecer, jurou a vida toda que a bola tocava no calcanhar do zagueiro. Vejam o lance no youtube e tirem suas próprias conclusões! 

Outro acontecimento lendário foi o milésimo gol, contra o Vasco. Revejam-no também e reparem na raiva do goleiro Andrada, que quase toca na bola. Ele ficou marcado até o fim da vida pelo feito. 

Fora dos campos e competições, Pelé virou ícone pop e sinônimo de Brasil no mundo. Tornou-se serigrafia do artista plástico Andy Warhol (que disse que, no caso do jogador, a fama duraria 15 séculos e não 15 minutos), frequentou a notória danceteria Studio 54, participou de inúmeros longas cinematográficos (de filme dos Trapalhões até o mais cult Fuga para a vitória, de John Huston, ao lado dos astros Sylvester Stallone e Michael Caine), virou personagem de história em quadrinhos de Maurício de Sousa, foi até Ministro dos esportes do governo FHC. 

E mesmo com tudo isso e todas as outras milhões de histórias que vocês terão que descobrir sozinhos senão este texto ficará imenso, continuou sendo a cara de um esporte que em mais de cinco décadas só fez se sofisticar, engrandecer e aumentar ainda mais sua legião de fãs.

O que importa de fato para este que vos escreve é deixar claro que hoje, 29 de dezembro de 2022, o Brasil e o mundo não perderam somente Edson Arantes do Nascimento e sim o maior atleta, a maior figura esportiva da história da humanidade do último século. E o futebol, seu ofício por natureza, nunca mais será o mesmo depois de hoje. Podem até surgir outras feras nos gramados, mas o que esse homem fez - de forma absurda, quase irreal para muitos - não se repetirá. Não mesmo. 

Dito isto, só me resta desejar toda a paz e felicidade do mundo para ele, e que agora encontre outros campos lá em cima para mostrar sua genialidade. Aposto que não vai faltar torcida. Fica com Deus, camisa 10!      

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

O clipe-manifesto


Existem artistas que entretém, outros que não passam de caça-níqueis ávidos por mais grana e status e os que entram para a história com todo o mérito de seus respectivos trabalhos (esses são os meus preferidos). Contudo, há uma quarta categoria dentro dessa classe que também chama - e muito! - a minha atenção. Refiro-me aos provocadores, aqueles que não se contentam unicamente com o seu ofício (seja escrever, atuar, cantar, etc) e vão além, enfrentam o mundo e suas constantes tomadas de decisão infelizes. 

Roger Waters, membro da antiga banda Pink Floyd, é desses. Morrisey, ex-vocalista do The Smiths, também. Entretanto, ninguém enfrentou seu país natal e o mundo de uma forma geral com tanta empáfia e cabeça erguida nos últimos anos quanto as moças da banda russa feminista Pussy Riot. Elas já protestaram, 10 anos atrás, contra uma lei discriminatória russa contra os gays do seu país e quase foram excomungadas por conta disso. Já tiveram três de suas integrantes presas e submetidas a trabalhos forçados, levando a população mundial à uma comoção internacional sem precedentes. E isso só para ficar no básico e largamente difundido pela mídia. 

Acham que elas desistiram? Nada. Só serviu para elas acentuarem ainda mais seus ataques anti-governamentais. Prova disso é o seu mais recente clipe, Mama, don’t watch tv

São pouco menos de quatro minutos de pura ousadia, polêmica e dedo na cara, questionando não somente a recente guerra entre Rússia e Ucrânia (que, tudo leva a crer, não tem data para acabar) como também o presidente, que é chamado abertamente pelas moças de "terrorista". Mais: elas pedem que Putin seja processado por seus crimes de guerra. 

Há um clima de repúdio e exasperação na canção que em alguns momentos me lembrou as letras, também diretas e anárquicas, do grupo de armênios do System of a down. Elas não medem as palavras e sentam a pua em governantes, militares e quem mais estiver envolvido nessa guerra doentia. De amoroso mesmo, apenas o apoio à rival Ucrânia, diariamente massacrada no conflito. 

Entre cenas de apresentações da banda em shows lotados e regados à posicionamentos políticos radicais e imagens de um país destruído pela guerra insana, com direito à soldados covardes quebrando câmeras para ocultar provas e funerais improvisados em meio a destroços, as moças desfiam o rol de horrores e lamentações que já se tornou marca registrada do grupo. Só que dessa vez com um acidez acentuada.

O refrão da música (“Mãe, não há nazistas aqui. Não assista TV”) faz alusão a um depoimento de um soldado russo capturado que, em uma conversa telefônica com a mãe, disse isso num ato de desespero. Mas a narrativa caótica proposta por elas não se limita a essa frase. As meninas desconstroem todo o conceito de guerra como o conhecemos e, em alguns momentos, chegam a ironizar certas práticas oficiais e as intenções escusas por trás delas. 

E como se não bastasse todo o horror e o sarcasmo embutido naquelas palavras, ao fim do vídeo - que não demora muito, creio, será provavelmente retirado do you tube - uma das integrantes, encapuzada, mija num quadro de Putin em pleno show, para uma plateia de fãs ensandecidos. Sim, a narrativa chega a tal extremo. Mas como disse em parágrafo anterior: elas são provocadoras (por natureza) e isso precisa fazer parte do contexto também. 

Como resultado final (seja musical ou ideológico) Mama, don’t watch tv é o clipe-manifesto de 2022. E que curioso que tenha vindo à toa quase no final do ano! Certamente é intencional da parte delas, que querem que fiquemos com essa última lembrança de um ano marcado por decisões macabras, mas buscando uma virada de página urgente. E que venham elas logo, por favor. 

Afinal de contas, o mundo não aguenta mais figuras como Putin e outros extremistas no poder que veem a sociedade e o mundo apenas pela ótica da guerra e do terror. É preciso dar um basta nisso e a banda entende que só endurecendo o discurso teremos uma chance. Resta saber o que 2023 nos trará de novo. 


quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

O plano definitivo para combater o crime


2022 chegando ao fim e eu quase me esqueço de falar sobre Robocop - o policial do futuro, de Paul Verhoeven - que completa 35 anos de existência esse ano - e da grande revolução que ele provocou na minha vida. 

É preciso, porém, dizer antes: na época em que as videolocadoras eram o suprassumo em termos de ficar antenado com o que acontecia na sétima arte, o meu gênero preferido nas prateleiras era o policial. Eu não podia ver dando sopa um exemplar de Dirty Harry ou Desejo de matar e corria imediatamente para casa para assistir. E se ainda por cima fosse um longa noir, como o antológico Relíquia macabra, de John Huston (inspirado no romance de Dashiell Hammett), aí é que eu enlouquecia de vez.

Imagina então se deparar, aos 11 anos, com um misto de narrativa policial com ficção científica e robótica? Lógico que eu nem li a sinopse. E os dizeres na capa do VHS eram bastante sugestivos: "parte homem, parte máquina, todo policial". Resultado: revi o filme, na época, umas três vezes, fora as inúmeras reexibições na famigerada Sessão da tarde da Rede Globo.

Na trama, acompanhamos o policial novato Alex Murphy (Peter Weller) acompanhado de sua parceira, Annie Lewis (Nancy Allen) em sua primeira missão investigativa, que acaba mal. Alex é estraçalhado pela gangue liderada por Clarence Boddicker (Kurtwood Smith) e vai à óbito. Entretanto, a OCP - empresa privada que controla a polícia numa Detroit governada pelo caos e pela violência - tem, na figura de um de seus executivos, Bob Morton (Miguel Ferrer), que almeja a direção do orgão, outros planos.

Cansado de colocar as vidas de milhares de policiais em risco todos os dias, ele decide criar um agente meio homem, meio máquina, que combata o crime. E para isso ele precisará do cérebro de um policial morto em combate (no caso, Alex). Embora seu projeto seja visto com ressalvas por muitos executivos da organização, ele mesmo assim consegue pô-lo em prática.

O problema: as memórias pessoais do agente Murphy, o passado, a família, começam a vir à tona e interferem em todo o processo. Mais do que isso: Murphy deseja se vingar daqueles que destruíram a sua vida, transformando-se numa espécie de vingador cibernético. 

Cheio de sátiras ao mundo real, campanhas publicitárias criadas para explicitar o quanto é difícil viver naquela cidade e com um hype e um estilo que, sinceramente, não cabem nessa crítica de tão elevados que são, Robocop é desses fenômenos de audiência que hollywood, no passado, produzia com bem mais frequência (e talento) do que no cinema atual.

O "robô" que é vendido para a população de Detroit como a solução definitiva contra a violência urbana percebe que, além de ter uma vida toda controlada pelo sistema (entre outras deliberações impostas pela hierarquia de comando ele nunca deve se voltar contra um executivo da OCP, seja em que circunstância ele se encontre), há situações nas ruas - o verdadeiro campo de batalha - muito mais complexas do que apenas seguir o livro de regras imposto a ele. 

E é nesse momento que ele precisará se livrar de todo esse aparato, que nada mais é do que um limitador de suas funções, para conseguir realmente realizar o seu trabalho - o clássico "proteger e servir".

Primeira produção hollywoodiana do diretor Paul Verhoeven, que já mostrara ser bom diretor com os longas Louca paixão e Conquista sangrenta (ambas parcerias com o ator Rutger Hauer), Robocop não só fez um retumbante sucesso nos cinemas como também gerou duas continuações (nenhuma delas, contudo, teve sua participação no projeto), uma série de tv de pouca repercussão e um remake desnecessário dirigido pelo cineasta brazuca José Padilha, o mesmo dos arrebatadores Tropa de Elite I e II. 

Porém, seu maior legado foi certamente ter popularizado de vez a figura do androide nos cinemas. Peter Weller e Nancy Allen podem até não ter dado uma interessante continuidade às suas carreiras (e olha que eles mereciam, hein!), mas ainda assim vejo o longa como um grande catalisador de um tipo de cinema que, até então, hollywood tinha medo de investir. Precisaram trazer um diretor da Holanda, então meio desconhecido, e arriscar. 

E no caso dele, Verhoeven, deu mais certo do que a própria franquia que construíram. Procurem no IMDb a carreira do diretor e me corrijam se eu estiver enganado. 

O que mais faltou dizer? Que se você ainda não assistiu esse clássico da ficção-científica oitentista, você sempre entenderá o pioneirismo de O exterminador do futuro, de James Cameron (1984) de forma isolada. E bons cinéfilos que se prezem não se bastam com isso. Não mesmo. 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

O melhor filme da história?


Listas são problemáticas. Digo mais: elas são a ruína quando o assunto é o debate sobre a sétima arte. Por quê? Porque elas não definem - nem de longe! - o que é o fazer cinematográfico. No máximo explicam o gosto particular de um indivíduo, o que ele considera como cinema. E como todo espectador que se preze é fruto de uma época, acho extremamente natural que ele não considere certos clássicos do cinema como os "seus clássicos".

E é preciso salientar aqui: acho muito difícil que a atual geração que frequenta os cinemas hoje em dia - uma geração baseada no que produtoras como a Disney e Netflix, só para ficar em duas das maiores (ou mais visíveis) - venha a considerar gigantes da sétima arte como Federico Fellini, Ingmar Bergman, John Ford, Akira Kurosawa, Roberto Rossellini e tantas outras feras em suas listas pessoais. Eles, a tal nova geração, buscam uma outra relação com o cinema, mais voltada para a bilheteria, a perpetuação das mesmas ideias (na forma de remakes, spin-offs, sequels, etc), a grandiosidade dos efeitos especiais, os orçamentos milionários...

E qualquer outro debate, em tempos de Rotten Tomates e Metacritic influenciando quem vive à sombra dos mesmos temas, torna-se menor ou desnecessário.

Dito isto, a nova lista dos melhores filmes da história do cinema produzida pela revista Sight and Sound - publicação que sempre polemiza e incomoda com suas escolhas a cada nova década - ganha um novo contorno de discórdia. Mas cabe aqui um aparte importante: fosse quem fosse o número 1 da referida lista o debate seria o mesmo (e preconceituoso), que dirá a insatisfação de determinados grupos cinéfilos que vivem de resmungar e falar mal de tudo. 

O número 1 do famoso top 100 da revista nesse ano de 2022 - após, nos últimos anos, testemunharmos o legado de Cidadão Kane, de Orson Welles e a liderança na última edição de Um corpo que cai, de Alfred Hitchcock - é Jeanne Dielman, de Chantal Akerman (1975). E bastou que um filme dirigido por uma mulher encabeçasse a lista para que os revoltados de plantão rugissem, com as mesmas diversas - e despudoradas - reações. 


"É a mania de enaltecer esse feminismo de butique vigente hoje em dia";

"Maldito cinema experimental! Está acabando com a sétima arte";

"Essa gente maluca de revista só quer mesmo é aparecer, não entende nada de cinema";

"O cinema morreu de uma vez por todas!"

E etc etc etc... e outros milhões de desnecessários etcs.


Na prática, entretanto, o que temos é - pelo menos, para mim - uma grande provocação por trás dessa escolha.

Jeanne Dielman é um longa-metragem de 3 horas e 20 minutos (tudo que os imediatistas mais detestam!) que se debruça sobre a história de um dona de casa, viúva, que vive com o filho adolescente, e paga suas contas mensais levando homens para o seu apartamento, onde exerce a profissão de garota de programa. É... Já vejo os conservadores babacas de sempre gritando: "enalteceram uma puta! era só o que faltava!".

Mais do que isso, o filme de Chantal Akerman - que é uma sublime artista e eu recomendo aos leitores deste texto que procurem por sua filmografia - é um consistente ensaio sobre a rotina sufocante do dia-a-dia. E é nesse exato momento que reside a grande bronca dos detratores da lista.

Como fazer com que um grupo gigantesco de alienados cinéfilos, que resumem o cinema à IMAX, CGI, 3D, cenas de ação intermináveis, o culto aos blockbusters que não passam de caça-níqueis, heróis musculosos e personagens canastrões que emulam um estilo de vida vazio, entendam que a sétima arte é mais do que isso? Não foi à toa que citei num parágrafo anterior a palavra provocação. 

A decisão da Sight and Sound ao colocar Jeanne Dielman no topo da lista provoca os amantes do cinema - sejam lá quem eles forem - a sair da sua zona de conforto, da sua bolha existencial baseada em maniqueísmos fajutos e discursos vagos. E eu, claro, gosto muito dessa tentativa heroica por parte da publicação. Redescobrir-se como espectador é, para mim, uma grande missão. E assim deveria ser para os outros (embora muitos prefiram idolatrar o comodismo).

Ao fim dessa rápida explanação (que se promete também polêmica quando eu postá-la em minhas redes sociais, repletas de fãs enjoados que adoram uma reclamação e um mimimi), digo: continuo detestando a ideia de listas dos melhores do que quer que seja. Elas limitam o debate e isso é sempre muito ruim. Contudo, é preciso elogiar esse caso específico, pois os cinéfilos e adoradores da sétima arte precisam urgentemente sair de suas trincheiras culturais. Do contrário, o cinema não evoluirá nunca. Pior: morrerá no espaço-tempo. 

E o que eu menos desejo quando penso em sétima arte é a permanência do banal, do óbvio, travestido de espetáculo barato. Tudo, menos isso!  


terça-feira, 29 de novembro de 2022

O abismo que nunca chega


Certos livros perturbam (às vezes até demais). Já outros, atendem de cara nossas mais loucas expectativas. Entretanto, há um terceiro tipo que me agrada ainda mais: aqueles que unem essas duas vertentes, ou seja, atendem minhas expectativas justamente porque perturbam. São tão realistas em suas intenções que me fazem repensar e/ou desconstruir minhas próprias ideias ou o próprio mundo que me rodeia. 

Favelost, do escritor, músico, agitador cultural e poeta Fausto Fawcett, que eu enfim consegui ler depois de perseguí-lo em vários sebos sem sucesso por quase dois anos, faz parte - com folga - desta terceira categoria. E não há momento melhor para lê-lo do que no Brasil de hoje, cheio de fanáticos e ignorantes tolhendo a liberdade alheia e distorcendo qualquer tipo de debate ou discussão. 

O livro de Fausto, outrora vocalista da saudosa banda Os robôs efêmeros que tanta saudade deixou lá pelos idos de 1980 tocando "Kátia Flávia - Godiva de Irajá", está anos-luz do que possa ser classificado como um romance tradicional. Na verdade, cabe melhor na ideia de uma grande crônica do absurdo, que é o que virou o país e o mundo nos últimos anos. 

Acompanhamos habitantes mezzo perturbados mezzo irônicos como Jupiter Allighieri e a Eminência Paula nos introduzindo no convívio com essa sociedade louca, por demais catastrófica, imediatista e que não abre mão do menor dos privilégios, pois somente assim eles se considerarão "sobreviventes da nova era". 

Favelost é cheio de ecos à grandes obras literárias (o que não significa que elas tenham sido as referências do autor para construir seu trabalho) como O uivo, de Allen Ginsberg e Zero, de Ignácio de Loyola Brandão. Bebe na mesma fonte de águas turvas e nada insípidas, muito menos incolores ou inodoras. E mesmo assim destila seu veneno e sua acidez muito bem construída desde o primeiro parágrafo. 

Fawcett costuma dizer em suas raras entrevistas que sua literatura nada tem a ver com o gênero ficção-científica, pois ele se limita a retratar a realidade. No entanto, é visível o flerte com essa linguagem. Eu poderia (até com certa folga) situar sua narrativa no ano de 3105, por exemplo. Quem sabe até colocá-lo lado a lado com Deckard, protagonista do clássico sci-fi Blade Runner - o caçador de androides. Mas, infelizmente, o que ele narra é atualíssimo, vil, por vezes grotesco de tão desumano, e mesmo assim por demais necessário para que consigamos entender que mundo é esse no qual estamos atolados até o pescoço. 

A frase que pontua toda a angústia do cidadão que escreve sobre o absurdo cotidiano ao qual sobrevivemos é "o Brasil é o abismo que nunca chega". E nisso, ele, Fawcett, está corretíssimo. 

Para aqueles mais acostumados a love stories açucaradas e livros de auto-ajuda, Favelost será leitura árdua e temo até em dizer: muitos vão chamar - obra e escritor - de condenados (expressão que anda em voga na boca dos falsos moralistas). Contudo, se você como eu ainda admira quem tem culhões e sabe colocar suas ideias no papel, não deixe de ler. 

Da ideologia da falsa felicidade construída à base de consumo banal e desenfreado à amores eletrônicos e fúteis que não passam de um dia, quiçá uma semana, o "romance" de Fawcett nos entrega uma reles molécula da realidade líquida e disforme que Zygmunt Bauman tão bem esmiuçou em seus formidáveis livros. E não satisfeito vai mais além e debocha. De tudo e de todos. 

Melhor parar por aqui, pois não quero estragar todo o elán do livro que promete muitas tiradas e reflexões interessantíssimas, tanto sobre os seres humanos quanto as corporações desse século XXI cada dia mais Tempos Modernos, de Charles Chaplin. Certo? Então... Agora é com vocês. Tomem coragem, pelo menos uma vez na vida, e entrem nesse inevitável campo de batalha. Até porque o mundo não vai deixar você fugir desse jeito. Não mesmo. 


terça-feira, 22 de novembro de 2022

O tremendão


Antigamente quando eu me excedia

ou fazia alguma coisa errada

naturalmente minha mãe dizia

"Ele é uma criança, não entende nada"

por dentro eu ria satisfeito e mudo

Eu era um homem e entendia tudo...


É, Erasmo, não foi só você não, meu caro! Eu passei por isso também e foram várias vezes (até porque minha mãe, que Deus a tenha lá em cima em bom lugar, jogava duro a maior parte do tempo).

A canção "Sou uma criança, não entendo nada", que integra o box Mesmo que seja eu com os discos do cantor Erasmo Carlos gravados nas décadas de 1970 e 1980, espelhou de forma nítida a minha infância e puberdade, bem como acentuou a minha relação de admiração por um cantor e compositor que, injustamente, sempre foi visto - pela crítica e por quem nada entende de música - como a sombra do rei Roberto Carlos. Em uma palavra: ignorância. 

E eis que hoje, 22 de novembro, dia do músico (que ironia!), ligo o celular e me deparo com a notícia de que Erasmo, o eterno tremendão, nos deixou aos 81 anos de pura sabedoria, após ter sido internado de novo. Logo ele, que no dia de finados, ao ser liberado pelo hospital, fez piada, dizendo: "não me quiseram". A MPB, assim como chorou recentemente com Gal Costa, verte lágrimas profundas novamente, pois perdeu um dos seus gênios mais incompreendidos. 

O menino que nasceu em 1941 em plena Tijuca efervescente de rebeldia, que virou do avesso a Rua do Matoso junto com Tim Maia e Jorge Ben em suas múltiplas travessas de roqueiro em formação, que fundou tanto The Sputniks (1957) como The Snakes (1958), que trabalhou ainda novo na Rádio Nacional com Carlinhos Imperial e viu na música o único caminho possível para se chegar em algum lugar, aprontou tudo e tirou todas de letra. 

Com Roberto Carlos, Wanderléa e companhia ilimitada agitou as jovens tardes de domingo e apresentou ao mundo a Jovem Guarda (que os puristas, é claro, nada entenderam e ainda debocharam). Na verdade, a crítica nunca o entendeu de fato e quis rotulá-lo. Impossível. Ele sempre foi mais irrequieto do que ela. 

Os sucessos, pergunte a qualquer fã, eles conhecem de cor: "É preciso saber viver", "É proibido fumar", "As curvas da estrada de Santos", "Emoções", "Detalhes", "Jesus Cristo", "Além do horizonte", "Se você pensa", "Nossa senhora", etc etc etc... Contudo, eu gosto de exaltar o fato de que certas canções sempre tiveram mais a cara dele do que da dupla. Falo de músicas como "Todos estão surdos", "Sentado à beira do caminho", "Minha fama de mau" e o clássico eterno "Festa de arromba". Isso, sem contar, seus hits solo como o inoxidável "Pega na mentira", "Mulher (sexo frágil)" e "Mais um na multidão" (em parceria com Marisa Monte).

São mais de 600 composições que não saem da boca do povo e por lá permanecerão pela eternidade. Agora mesmo, enquanto escrevo este arremedo de artigo-homenagem, uma vizinha aqui do lado ouve "cavalgada". E, provavelmente, chora. É, Erasmo...

Entre os que colecionam e amam seus álbuns dois são sempre citados com paixão: Carlos, Erasmo (1971) - cheguei a ouvir pessoas falando dele doentiamente - e Erasmo Carlos convida (1980), em que dividiu o microfone com outras estrelas do naipe de Maria Bethânia, Nara Leão, Gilberto Gil, Rita Lee, Caetano Veloso e, claro, o amigo do fé, o irmão camarada, dentre outros. 

O gigante gentil, outro apelido com que foi agraciado pelos amigos, teve marca de roupa e também se aventurou pelo cinema. Assistam, assim que possível, Roberto Carlos e o diamante cor-de-rosa (1968), Roberto Carlos a 300 quilômetros por hora (1971) - ambos do diretor Roberto Farias - bem como Os Machões (1972), de Reginaldo Faria. Há também uma participação dele, nostálgica, em Paraíso Perdido (2018), de Monique Gardenberg. Erasmo era múltiplo, debochado e arisco. E isso era o que mais os fãs gostavam nele! 

São poucos os artistas que passaram por inúmeros desafios e sobreviveram, deram a volta por cima. Erasmo é desses. Foi vaiado no Rock in Rio 1985 (por uma geração que, certamente, não entendeu - e não entende até hoje - o que ele cantou), fez ode à maconha em "De noite na cama" e foi mal compreendido, enfrentou um tumor no fígado, perdeu um filho e a primeira esposa, Narinha, foi desacreditado pelas gravadoras num certo momento, pois não entendiam o seu estilo, a sua marca pessoal, e ainda assim... continuou grande.

Na última entrevista que vi com ele, num videocast, disse sua última frase antológica: "hoje em dia o tosco é enaltecido", referindo-se à pobreza musical dos dias de hoje. Soberbo e sucinto! Como foi em toda a sua vida e carreira. Mestre, onde quer que você esteja neste exato momento, fica em paz, com Deus, e com a certeza de que sua obra é - e sempre será - maiúscula. Se tem algo de que eu me ressinto na vida é de não ter feito parte da sua geração. E muito obrigado, por tudo.  

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Saramago, 100 anos


O escritor e poeta português Gonçalo M. Tavares - autor de Short Movies e Jerusalém - disse em um dos seus textos que "a melhor maneira de respeitar um autor é fazer alguma coisa com o que ele escreveu". E eu sempre tentei fazer exatamente isso com Machado de Assis, nosso maior autor. É muito fácil chamá-lo de gênio, mas sempre o tornamos inacessível para grande parte do público leitor brasileiro (e eu sempre tentei apresentá-lo aos mais jovens da forma mais palatável possível). 

Contudo, é preciso também deixar claro aqui. A mesma frase - ou aforismo - cai como uma luva para explicar o mestre José Samarago, que hoje comemora com toda justiça o seu centenário. E mais: não acredito que conseguimos até hoje dimensionar a grandeza deste homem, único vencedor do Prêmio Nobel de literatura em língua portuguesa (em 1998).

Saramago, o garoto nascido na província do Ribatejo, filho de trabalhadores rurais, que se formou como serralheiro mecânico pois a família não tinha como pagar sua universidade, mesmo depois de publicar em 1947 o seu primeiro livro, Terra do pecado, não fazia ideia da reviravolta que sua vida tomaria anos mais tarde. Inclusive, reza a lenda, que sua trajetória começou a tomar um novo rumo quando foi demitido do jornal onde trabalhava, o Diário de Lisboa, durante a Revolução dos cravos. 

Sua obra literária é carregada de um realismo profundo; repleta de elementos sociais e políticos, bem como uma crítica religiosa e anticlerical ferrenha (o que o levou, muitos vezes, a ser excomungado pela crítica literária). Mestre na arte da paródia - fruto da intertextualidade que seus livros mantêm com autores clássicos como Camões, Fernando Pessoa, Antônio Vieira e Almeida Garrett -, também dialogava com fragmentos do chamado realismo mágico, tornando seu trabalho uma alegoria fascinante.

Outra marca forte em seu trabalho era a maneira bastante particular com que tratava a linguagem em seus textos. Nada de aspas, travessões, dois pontos, ponto e vírgula... Apenas vírgulas pontuais. E um detalhe: sempre lutou junto às editoras para que seus livros viessem escritos no português de Portugal e não na variante brasileira. Sim, corajoso o moço! E bem fez ele, pois lutou até o fim por sua língua e nação. 

Dentre os livros que publicou nenhum obteve mais atenção da mídia do que o polêmico O evangelho segundo Jesus Cristo (que chegou a ganhar uma montagem teatral aqui no Brasil). Nele, mostrou um Jesus mais humano, menos divino, repleto de defeitos morais e apaixonado por Maria Madalena, o que levou os religiosos mais extremos à fúria. Já O ensaio sobre a cegueira (que ganhou, em 2008, adaptação para o cinema do diretor Fernando Meirelles) é certamente seu exemplar mais famoso, aqui e no mundo. E tem motivos de folga.

Perdi as contas de quantas vezes reli a história da sociedade que acorda completamente cega após a passagem da chamada "treva branca" e vê o mundo entrar num completo caos. Recomendo. Leiam o livro e, se possível, vejam o filme, que também é brilhante.

Outras obras publicadas que, a meu ver, também merecem o tempo do leitor desta humilde homenagem são: Memorial do Convento (um clássico que eu li ainda no ensino médio), A jangada de pedra (que também ganhou versão na tela grande, pelas mãos do diretor George Sluizer em 2002), a magistral série de diários Cadernos de Lanzarote (publicados entre 1994 e 1998, e que expõem o autor a nu), O homem duplicado (também adaptado em 2014, por Denis Villeneuve) e os mais recentes, mas não menos interessantes, As intermitências da morte, A viagem do elefante e Caim.

Entretanto, procurem a fundo e encontrarão também contos, poemas e até uma peça teatral criada por ele. Saramago era eclético e metódico em tudo o que fazia. E não à toa dizia que "a leitura é, provavelmente, uma outra maneira de estar em um lugar" e "eu suponho que tenho todos os direitos do mundo de escrever sobre tudo aquilo que eu entender". Ele tornou seu trabalho parte dessa nova realidade. 

Em 18 de junho de 2010 nos deixou, mas sua Fundação por aí continua, agora administrada pela esposa, Pilar del Rio. E não somente ela, mas um legado impressionante e uma cultura ímpar (o que me faz pensar a todo momento qual a pinimba que o Nobel tem com o nosso idioma. Já tivemos tantos autores formidáveis. É recalque, isso? Só pode!)

Faltou mencionar algo? Claro que sim. Um autor dessa grandeza... Sempre falta. Mas eu que não sou louco de falar demais e acabar entregando o que não devo. Melhor encerrar com o meu mais profundo obrigado. Por tudo. 

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

A voz que não desafinava


Não é à toa que a palavra música pertence ao gênero feminino. É para que não nos esqueçamos jamais de vozes eternas, que vieram ao mundo com o único propósito de embalar as nossas vidas e os nossos sonhos. Elis Regina, Whitney Houston, Elza Soares, Adele, Billie Holliday, Tina Turner, Ella Fitzgerald, Mercedes Sosa... São tantas, inúmeras, cada uma com o seu estilo, sua vida, seus dilemas. 

Hoje - é triste dizer isso, mas não tem outro jeito - a música popular brasileira chora e lamenta (muito!) a perda de uma das suas maiores vozes. E digo mais: se passarão décadas até que outra a suceda no mesmo nível. O país viu partir, aos 77 anos, a cantora Gal Costa. 

Talvez os fanáticos por Elis se irritem com o que vou dizer agora, mas... Para mim, Gal era com folga a maior cantora do Brasil. Ela pontuou toda a minha relação com a música nacional desde que eu me entendo por gente e ouvinte. 

A menina Maria da Graça Costa Penna Burgos tinha um sonho. E mesmo trabalhando como vendedora numa loja da Roni Discos ou sentindo a ausência do pai (que faleceu quando ela ainda era uma adolescente), nada a demoveu dele. Seu destino era cantar. Mais do que isso: brilhar. E assim o fez. A começar pela estreia em junho de 1964 no show Nós, por exemplo, realizado na inauguração do Teatro Vila Velha, em Salvador).

Sua voz era única, capaz de duelar até mesmo com os riffs da mais potente guitarra (duelo esse que ela encarou de frente, ao vivo). Deu voz à artistas sensacionais da MPB que, não fosse a perspicácia e o talento dela, provavelmente hoje teriam morrido no ostracismo. Que o digam o poeta Waly Salomão (de quem gravou "Vapor barato") e Luiz Melodia (sua interpretação de "Pérola negra" é única!). 

Deixou registrado em nosso cancioneiro milhares de sucessos que certamente estão sendo ouvidos e reouvidos nesse exato momento: "Um dia de domingo" (que celebrizou num dueto marcante com Tim Maia), "Chuva de prata", "Baby" (faixa indefectível do álbum seminal Panis et circensis), "Barato total", "Festa do interior", "Divino maravilhoso" (expressão citada até num longa de Glauber Rocha), "Brasil", "Tigresa", "Sorte", "Vaca profana"... E um detalhe à parte: ninguém, absolutamente ninguém, cantou "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, como ela.

No quesito discos gravados o meu coração fala mais alto, pois é praticamente impossível não me lembrar dos exatos dias em que ouvi seus melhores trabalhos a primeira vez. E a segunda. E a terceira. E todas as demais. A música de Gal é mediúnica nesse sentido. Sua expressão corporal, então, nem se fala... Como esquecer da turnê de Fa-tal: Gal a todo vapor, a ousadia, os seios de fora, a coragem, sem pudores ou receios? Aquilo entrou para a história e permanece, vivo, mais do que nunca. 

E justamente por não conseguir ser preciso ao esmiuçar tamanha coragem, tamanho enfrentamento, deixo abaixo - até porque é preciso fazer com que essa "nova geração" fascinada por artistas de plástico conheça a voz e a atitude dessa moça - um top 5 básico da discografia dela:

Gal Costa (1969);

Fa-tal: Gal a todo vapor (1971);

Cantar (1974);

Doces Bárbaros (1976)*;

Caras & bocas (1977).

*Só a reunião com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia já renderia um artigo próprio e inesgotável de ideias. Este é um álbum para se ouvir todo ano, pelo menos umas 30 vezes ao ano, até o fim da vida. Ouçam. Pelo amor de Deus, ouçam! Agora, se possível. 

E como um precioso bônus track ainda vale uma fuçada no extraordinário Acústico MTV, que ela lançou em 1997, repleto de clássicos da MPB repaginados ("Falsa baiana", "Força estranha", "Como 2 e 2", "Paula e Bebeto", "London, London", "Lanterna dos afogados, entre outros). Tem fã que diz que esse é o ato final da carreira dela. Eu, tenho minhas dúvidas. 

Gal faleceu sem ter visto a cinebiografia que fizeram sobre ela (Meu nome é Gal, dirigida pela dupla Dandara Ferreira e Lô Politi, e com a atriz Sophie Charlotte interpretando-a). Uma pena! Como também foi uma pena ela precisar cancelar seu show no recente festival Primavera Sound por conta de uma cirurgia no nariz. Enfim... A vida não permite avisos, ensaios, estreias. Ela simplesmente acontece.

Como resumir essa força da natureza? Impossível! O máximo que dá para dizer nesse momento tão triste é que Gal Costa era a voz que não desafinava. Pronto. Agora vão lá descobrir quem ela era nos you tubes e spotifys da vida.

E chega, gente. É hora da despedida. Fica com Deus, moça! E você vai fazer uma falta danada aqui embaixo. Ô se vai!  

terça-feira, 8 de novembro de 2022

A cirurgia é a nova forma de arte


"Estica aqui, aumenta ali, corrige acolá, diminui um pouquinho aquela curva do...". Sim, passamos de seres humanos à objetos que precisam ser anatomicamente consertados ou remendados o tempo todo. Em outras palavras: nos tornamos reféns do bisturi, artefato cada dia mais relevante e imprescindível nesse século XXI baseado em corpos, poses e opiniões contraditórias. 

E a pergunta que não me sai da mente é: o que sobra depois disso? Resposta sincera: praticamente nada. Resposta oficial: um mundo de possibilidades (quais, exatamente, já é assunto para outro texto, pois eu preciso pensar mais a respeito). Contudo, a tecnologia não para, avança a galope e promete um mundo no futuro ainda mais tenebroso. 

E é exatamente desse mundo tenebroso que o diretor David Cronenberg fala no mórbido, porém necessário, Crimes do futuro

Cronenberg é um cineasta ligado, em sua origem, ao universo da maquiagem e do body horror. E fez disso um talento raro, para pouquíssimos na sétima arte (que o digam seus clássicos A mosca, Videodrome e Gêmeos - mórbida semelhança). Porém, nos últimos anos atrás das câmeras, vinha se dedicando a outros territórios, chegando a adaptar uma HQ - Marcas da Violência - e se propondo a falar de Freud, Jung, máfia russa e até mesmo as consequências do Occupy Wall Street no mundo. 

Mas, saudoso de seus primeiros anos na direção, se reinventa e nos apresenta um retrato sórdido (digo mais: sarcástico) e por vezes doentio do mundo contemporâneo e dos exageros à vaidade. 

Seu protagonista, Saul Tenser (Viggo Mortensen, parceiro recorrente nos últimos projetos) é aquilo que podemos chamar de "um artista do horror pós-moderno". Realiza cirurgias complicadas e as transforma num show business macabro que enche os olhos dos admiradores que assistem suas performances. Sua alma gêmea, Caprice (Léa Seydoux) é, em tese, a única capaz de seguí-lo até o inferno, se preciso. E eu digo em tese, pois há mais gente querendo esse lugar. 

Lang Dotrice (Scott Speedman) e Timlin (Kristen Stewart) também veneram o talento deste showman insano a ponto de lhe propor as mais nefandas ousadias. A questão mesmo é: será que ele topará? Saul parece tão devotado à sua própria vaidade e talento que todo o resto parece banal diante de seus olhos. Nem mesmo o elogio ("a cirurgia é o novo sexo") proferido por Timlin é capaz de quebrar sua armadura de empoderado. E aqui começa justamente o legado do longa.

Cronenberg desenha bem uma sociedade afeita ao efêmero e à estrelismos os mais diversos, na qual o mais importante é ser venerado pelos demais e comer plástico é sinônimo de avanço social. Muitos espectadores chatos talvez digam de forma leviana: "isso é papo de filme; na realidade não é bem assim, não!". Entretanto, quando me dou conta do que andam chamando de artista, gastronomia e show business hoje em dia, eu chego à conclusão de que, na verdade, não tem nada de ficção aqui. Não mesmo. 

Se preparem, adeptos e fãs de longa data do diretor, para as deformações e máquinas exóticas costumeiras do seu cinema presentes aqui (e nesse sentido, o filme me lembrou muito de Existenz, outra bola fora da curva dentro da sua carreira). 

Ao fim, enquanto os créditos correm após a satisfação estampada no rosto do protagonista ao provar plastic food pela primeira vez, me pego num sentimento dúbio entre o niilismo e o apavoramento com os dias que ainda virão. Não é de hoje que a sociedade mundial vem me assombrando com suas escolhas equivocadas e, porque não dizer também, monstruosas. Da destruição da arte para favorecer as NFTs à crise dos refugiados, passando pela proposta de controle populacional ao preço que for, caminhamos para um abismo às gargalhadas, achando tudo de mais terrível extremamente natural. 

E acreditem: isso é tudo o que o mundo não está sendo nas últimas décadas, pelo menos. E em meio a tanta negatividade travestida de exibicionismo, só me resta agradecer ao diretor - mestre em descortinar ao longo da carreira o amargor do que chamamos de natural impunemente - por mais essa peça rara dentro do seu currículo cinematográfico. Que venha o próximo!    


quarta-feira, 2 de novembro de 2022

De Cambuci para o mundo


Como é triste ser hater!

A humanidade adora rótulos, só não gosta mesmo de se ver rotulada. Apontar o dedo acusador para falhas e escolhas alheias virou um esporte nacional nas últimas décadas, principalmente quando a vítima é oriunda da periferia, do gueto ou pertence à etnia negra, indígena, etc. Contudo, quando eles - os acusados, os que sofrem bullying - chegam lá, atingem um patamar nunca antes imaginado ou visto, é notória a grandeza de suas histórias.

Foi exatamente assim que me senti desde o primeiro momento em que pisei no Centro Cultural Banco do Brasil para assistir a exposição Os Gêmeos - novos segredos, regresso da dupla de grafiteiros Gustavo e Otávio Pandolfo ao espaço após 12 anos, e vi na rotunda o imenso boneco de braços abertos para o público. Abaixo dele, uma espécie de casa onde os visitantes entravam e se deparavam com milhares de desenhos e ilustrações da dupla se autorevezando num enorme telão de plasma. 

Primeiro desafio: encarar a fila gigantesca de curiosos em êxtase para conseguir um ingresso. E olha que eu fui num dia de semana! Mas acreditem: a espera vale cada segundo. 

São mais de mil itens que abarcam praticamente toda a carreira dos irmãos, dois dos artistas mais famosos do país no segmento e os que melhor souberam conduzir sua carreira internacional até o presente momento. Não é de hoje que fico estupefato diante dos desenhos inebriantes dos dois expostos em ruas nas principais capitais da Europa. E fico possesso de saber que vários desses murais já foram apagados por decisão de gestores pseudo-conservadores, seja por motivação administrativa ou ideológica. Definitivamente, essa gente não entende nem quer saber o real significado da palavra arte!

Retratos de família, críticas sociais e políticas, objetos pessoais, até um boneco dançando break no meio do salão (influência do hip-hop na carreira de ambos) levam a garotada - e, claro, seus pais - ao delírio. O grafite, meus caros leitores, não tem mais nada de marginal, de subarte, de underground. Ele se tornou tão vivo e reflexivo no século XXI quanto qualquer Van Gogh, qualquer Picasso, qualquer Goya. 

E para aqueles que continuam fazendo uma correlação cretina entre a pichação chula, de rua, e esse trabalho artístico por demais complexo e rebuscado, recomendo irem urgentemente à exposição e tirarem a má impressão o quanto antes. 

Fiquei sabendo com detalhes sobre o trabalho dos dois após assistir na tv a cabo ao extraordinário documentário Cidade Cinza (2013), de Marcelo Mesquita e Guilherme Valiengo, que mostra toda a parafernália necessária para que eles criem aqueles murais impressionantes. Fica a dica. E vejo no conjunto exposto aqui não somente um complemento, mas um registro definitivo do trabalho épico realizado pelos dois irmãos. 

O grafite brazuca, aliás, vive um momento interessantíssimo dentro e fora do país. Eduardo Kobra, outro gigante nosso, acaba de criar um painel para a sede da ONU e vem expondo na Europa e nos EUA com certa regularidade. E eu espero sinceramente que essa "brazilian wave" (e pego aqui de empréstimo uma expressão que nos últimos anos vem sendo usada no surf mundial, principalmente depois do aparecimento e vitória do Gabriel Medina) se perpetue mais e mais, alavancando novos artistas. 

E, é claro, que os detratores e invejosos estão se roendo de inveja, porque os caras - aqueles que saíram de Cambuci, em São Paulo, quase que com uma mão na frente e outra atrás - são foda, num nível que realmente não dá pra explicar. E ponto.    


quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Repórter era isso!


Falamos mal do jornalismo o tempo todo e, muitas vezes, por culpa do próprio jornalismo que está mais interessado em ser uma representação do poder do que fazer de fato o seu trabalho, que é reportar, denunciar, avisar o público das mazelas que o rodeia, etc. Entretanto, quando alguém dessa área exerce o seu ofício de forma digna, é impossível não homenageá-lo(a).

Pois bem: ontem o jornalismo brasileiro perdeu uma dessas pessoas. Uma mulher que foi à luta, não se abateu diante de suas próprias limitações, mostrou tudo o que estava errado, expôs erros da nossa administração pública aos montes e ajudou - sim, ajudou - muita gente na cidade do Rio de Janeiro.

Seu nome: Susana Naspolini. 

Eu acompanhei seu trabalho no jornal RJTV (ela fazia o quadro RJ móvel) todo santo dia. Vi ela rir, chorar, comer, beber, andar de skate, de carrinho de rolimã, de caiaque, subir em árvore, pular muro, comprar briga de morador do cu do Judas, cobrar de prefeito e governador na cara dura e levar seus calendários para marcar na frente da equipe ao vivo. E ainda dizer: "e eu voltar a reclamar se não estiver pronto". 

E ainda assim não conheço uma pessoa no RJ que não gostasse dela! 

Susana era o retrato vivo do que eu considero o verdadeiro repórter. Aquela pessoa que não esperava ninguém mandar. Ela ia atrás, procurava, fuçava até onde não podia e ai de quem dissesse "aí não". Com ela, o buraco era sempre mais embaixo. 

E ela fez da vida dura dos cidadãos menos favorecidos do Estado da Guanabara a sua missão de vida. Às vezes o lugar era tão detonado, mas tão detonado, que você pensava na hora: "dessa vez não vai ter jeito". Mas ela, inacreditavelmente, dava um jeito. Não sei como, mas dava. Nem que fosse na marra. E nesses momentos eu chorava, porque pensava comigo: nesse país eu ainda acredito.

Perdemos Susana, infelizmente, para o câncer, doença com a qual vinha lutando desde os 18 anos. E até nessa hora ela mostrou sua garra. Disse ao jornal que ia continuar com seu quadro ao preço que fosse. E foi, até onde deu. Quando soube de sua última internação fiquei muito triste. Quando li o depoimento de sua filha adolescente, mais ainda. Ela era energia pura, num nível que não dá sequer para explicar. 

Nos deixou como legado, além de dois livros publicados (um deles escrito durante a pandemia), uma história de vida ímpar, de quem batalha, batalha, batalha, e cai de pé. E ainda ri da cara do adversário. O jornalismo certamente tem muito a aprender com ela e ficou mais pobre hoje. Paupérrimo. Precisamos de mais Susanas e menos fake news e profissionais presepeiros que adoram se esconder atrás do sensacionalismo.

Não foi só a Júlia, a filhota dela, que ficou órfã ontem. Foi quem espera por uma imprensa séria, que não se rende ao ridículo nem ao tendencioso. Eu daria tudo para conhecer Susana Naspolini ao vivo, mas não foi possível. A vida não quis. E aonde quer que ela esteja, espero que saiba que a sua história jamais vai ser esquecida. Por quem é fã de comunicação de verdade, não mesmo. 

Fica com Deus, moça!  


sábado, 22 de outubro de 2022

Erótico, confessional e sem rodeios


Eu me pergunto de forma concomitante se o mundo ainda sabe o que significa erotismo. E digo isso porque nas últimas décadas tudo parece tão escrachado, vulgar, à flor da pele e exibido que fica realmente difícil responder a essa pergunta. O debochado perdeu espaço em meio aos conservadores babacas e religiosos cretinos ao extremo. Da cinta-liga à frase de duplo sentido, nada passa longe do radar de quem vê escândalo em qualquer coisa. Sobra o quê então, no final das contas? Aqueles artistas que nunca deixarão de peitar o sistema e os falsos moralistas. Como, por exemplo, a cantora Madonna.

Recentemente andaram acusando-a de Queerbaiting. Pobres coitados! Sempre quiseram classificá-la dentro de um padrão, de uma norma, e nunca conseguiram. Agora, insatisfeitos, tentam silenciá-la. Em vão, é bom que se diga! E pior: se esqueceram do que ela fez com Erótica

O álbum mais polêmico da diva pop completou na última quinta-feira três décadas de existência e ainda consegue não só permanecer relevante como também manter os fãs na pista de dança, em êxtase. Acham pouco? Então ouçam-no novamente. E, se puder, novamente e novamente. Ficarão deslumbrados com a atualidade do disco.

Erótica foi lançado no mercado fonográfico acompanhando o então primeiro livro de Madonna, o extravagante e direto Sex. Repleto de fotos da dupla Steven Meisel e Fabien Baron, mostra a cantora incorporada na personagem sadomasoquista Dita Parlo e em cenários de fantasias sexuais ao lado de outras celebridades como a atriz Isabella Rossellini, os rappers Big Daddy Kane e Vanilla Ice, a modelo Naomi Campbell, o ator pornô gay Joey Stefano e tantos outros. 

E é claro que os moralistas de plantão odiaram. Tratava-se do final dos anos 1980, no auge da epidemia da AIDS e a cantora sempre foi defensora dos gays, para o desespero dos chamados "normais" nos EUA. Já o disco - que é o que realmente interessa neste artigo - ganha contornos de confessionário sentimental, de desabafo contra todos os amores que Madonna viveu anteriormente (e foram muitos). 

Suas tiradas ácidas acerca dos relacionamentos amorosos pontuam todo o álbum. Ela vai de "você sabe que eu te amo porque eu te odeio" (em Bye bye baby) à "estou esperando você e espero que não parta o meu coração" (em Waiting). Em determinado momento se assume bad girl e chama seu amado de ladrão de corações. Mas como resumo da ópera sabemos bem o que ela está dizendo: que é indomável e sabe ser de todos - e de ninguém - quando bem quer. E ainda assim não deixou de casar (e se divorciar) e ter uma filha.

Adoro a sonoridade do disco, a mescla entre instrumentos e ruídos, sirenes de carro, máquinas de escrever, castanholas, o piano elegantíssimo que abre Secret Garden... Erótica é tudo que promete e mais um pouco. 

Minhas favoritas? Além da faixa-título com seu clima e ritmo de boate lotada, impossível deixar de fora Deeper and deeper e Rain (que entra em qualquer top list meu da musa). Contudo, é impressionante o que ela fez com o cover de Fever - mudando completamente a intenção da música - e vale a pena dar uma segunda chance, caso você nunca tenha ouvido, à Why's it so hard. Característica primordial do trabalho: altamente dançante e pessoal ao extremo. Ou seja, a cara da cantora. 

Bastou que eu colocasse a foto do álbum e anunciasse os 30 anos do trabalho no meu perfil no twitter e rapidamente pipocaram fãs alucinados agradecendo a notícia, prova cabal do sucesso - e também da atualidade - do disco. Logo, só posso pedir aos desavisados e não conhecedores da obra que pelo amor de Deus corrijam essa lacuna em suas formações. 

Um tapa na cara do conservadorismo ou um libelo ao empoderamento feminino? É provável que Erótica seja ambos e com muito orgulho. Mas o mais importante: é o retrato vivo de uma artista que nunca se encolheu diante de nada ou de ninguém. E só por isso já vale a pena dar uma fuçada no Spotify, no Deezer, no Itunes ou qualquer outro streaming e ouví-lo de novo. E de novo e de novo, é claro! 


domingo, 16 de outubro de 2022

O "problema" dos blockbusters


Enquanto os nerds detonam e os cinéfilos comentam a última palestra proferida pelo diretor Martin Scorsese em que, entre outras declarações, rotula de "nojento" e "repulsivo" a eterna obsessão da atual hollywood pelo lucro e as grandes bilheterias e premières, eu me pego pensando na minha própria relação com os chamados blockbusters e o futuro do cinema americano. 

E não dá para ser hipócrita nessa hora: eu fui cria deles. Toda a minha geração foi. Disputávamos a tapa lugares nos cinemas lotados para assistir a produções como O exterminador do futuro, Indiana Jones, De volta para o futuro, Conan o bárbaro, Duro de matar (e eu já quis ser John McClane matando geral no Nakatomi Plaza), A hora do pesadelo, Sexta-feira 13, Desejo de matar, Clint Eastwood humilhando os vilões na franquia Dirty Harry, Tubarão, Gremilins e... ufa! um mundo de outras coisas extremamente divertidas.

Cabe aqui um rápido anexo: a fila astronômica para ver Batman, de Tim Burton, dava voltas no cinema de bairro perto de onde eu morava e de certa forma profetizou o sucesso avassalador de Titanic, arrasa-quarteirão de James Cameron, vencedor de 11 Oscars. Meus colegas e eu nos revezávamos na fila o dia inteiro porque só conseguimos lugar na sessão das 21 horas.

Contudo - e quando falamos de sétima arte há sempre um contudo, um porém, um todavia -, eles, os blockbusters, nunca foram a totalidade da história do cinema americano. E houve um período na minha formação como cinéfilo que eu entendi isso perfeitamente, seja assistindo os clássicos do faroeste dirigidos por Sam Peckinpah; à Amargo pesadelo, de John Boorman; Reds, de Warren Beaty; Apocalipse now, de Francis Ford Coppola ou outros filmes de nicho mais restrito, como os longas de Kenneth Anger e Eraserhead, de David Lynch.

Eu entendi naquele momento que o objetivo primeiro de determinados diretores não era gerar lucro imediato. E até aí tudo bem, problema algum. O inferno astral começou de fato quando hollywood se tornou uma selva capitalista barata.

Eu continuo indo aos cinemas (agora sinônimos de kinoplexs de última geração, com cadeiras reclináveis - que eu, particularmente, detesto - e bombonnières absurdamente caras) e converso volta e meia com a nova geração de espectadores, principalmente a formada pós-fenômeno Marvel e DC. E duas informações me entristecem em seus repetitivos discursos:

1) eles não conhecem nada além da bolha super-heroística, nem querem saber do que se trata o cinema ou quem é John Ford, Billy Wilder, Henry Hathaway, Alfred Hitchcock ou o próprio Scorsese, que nos últimos tempos virou um arquiinimigo deles; e 2) cinema bom, segundo eles, é cinema que faturou os tubos, que se pagou com folga e teve lucros milionários, pois somente assim poderá financiar continuações, spinoffs e prequels a perder de vista. 

Em outras palavras: o cinema virou uma ideia que não se esgota, não permite novas concepções ou narrativas porque quase todo o público só quer saber dos mesmos personagens matando vilões com mínimas diferenças e replicando as mesmas piadas, frases de efeito e CGIs meia-boca. E isso, para quem ama realmente a sétima arte, é no fundo pobre demais.

O que Scorsese não disse em seu depoimento, mas eu digo agora é: não há a priori um futuro mais feliz para o cinema americano nos próximos anos, pois fabricamos uma geração de alienados, embrutecidos, viciados em modinhas e estereótipos, likes, compartilhamentos e seguidores vazios.

Os espectadores decidem sua experiência cinematográfica baseados em sites, no mínimo, de gosto duvidoso, como Rotten Tomatoes e Metacritic, onde pessoas que não entendem o bê-a-bá do cinema dão notas segundo suas avaliações prematuras e sem o menor conhecimento técnico que as embase. E ainda por cima tem quem chame isso de referência e/ou influência. Se o filme que você quer ver se sai mal na avaliação dessas plataformas, ele automaticamente não merece (segundo alguns) ser visto porque... eles assim o decidiram. 

E quando paramos para pensar que no Brasil a figura do crítico de cinema é, na maioria das vezes, vista como "aquele indivíduo chato que passa a maior parte da vida falando mal de alguém ou de alguma coisa", a situação piora - e muito!

O que me resta dizer? Que fica minha torcida para que Scorsese continue batendo de frente com essa indústria cada dia mais gananciosa. Que seu próximo longa, Killers of the flower moon, a ser lançado em 2023, não se torne o seu último da carreira por conta disso. E principalmente: que outros sobreviventes da arte, como ele, continuem dando as caras. Nada contra a existência de artistas como Michael Bay, Taika Waititi e David Gordon Green, mas às vezes é importante e necessário sabermos que o cinema não é feito só de heróis x vilões, adrenalina a qualquer preço e gritinhos e vaias na sala escura. Não mesmo.


segunda-feira, 10 de outubro de 2022

O pré-fim dos tempos?


Rússia x Ucrânia, protestos femininos no Irã, furacão dizimando tudo nos EUA, fascismo brilhando como nunca na última eleição italiana... Quando você pensa que não tem como o mundo te perturbar mais, ele te desmente e nos mostra algo ainda mais fora do tom. E só quem não enxerga isso é quem gostar de viver para a própria alienação!

Veja, por exemplo, o desfile da coleção de verão 2023 da Balenciaga na Semana de moda em Paris, criado pelo designer Demna Gvasalia, ocorrido no último dia 2 de outubro e que eu assisti posteriormente num vídeo no you tube. Caos simplesmente não explica o que os meus olhos viram naquela passarela.

Num pavilhão de exposições transformado num cenário distópico pelo artista espanhol Santiago Sierra a sensação que os espectadores têm é a de meio que estar dentro da Alegoria da Caverna, apresentada ao mundo pelo filósofo Platão. Não, é sério. Muito sério. Mais: havia também um cheiro de decomposição no ar - segundo quem esteve lá - providencialmente criado pelo artista Sissel Tolaas. Próximo estágio: que venham os modelos! 

O cantor (e polemizador) Kanye West abre a fila dos modelos que desfilam pisando na lama espalhada na pista e sujando completamente suas roupas, até então impecáveis. Muitas deles veem sua exuberância ser destruída em questão de segundos. Entretanto, também é possível apreciar alguns modelitos que você, reles mortal, jamais verá passeando pelas ruas. Faz parte. 

A Balenciaga, que nos últimos tempos já havia assombrado o público na internet vendendo um par de tênis completamente destroçado a um preço extorsivo, aqui se supera e entrega seu desfile mais polêmico e provocador. 

A trilha sonora que tem tons de Exterminador do futuro, de James Cameron, da terra arrasada na franquia Resident Evil e também de uma rave, dessas que você vê em qualquer praia famosa do mundo, repleta de epiléticos sociais e viciados em ecstasy contumazes, aumenta a um nível insuportável o clima de morbidez e niilismo bem como a sensação de desconforto, deixando-nos quase claustrofóbicos. 

Nunca imaginei - mesmo! - que um dia comentaria um desfile de moda em meu blog. Sempre achei o universo criado por essas pessoas completamente distante da realidade e conheço pessoas que só o acompanham, vez por outra, para ver as modelos lindíssimas e famosas de cada geração (Gisele Bundchen, Naomi Campbell, Cindy Crawford, etc). Contudo, desta vez confesso: me surpreendi com a ousadia. 

Fiquei tentando, a todo momento, fazer uma alusão entre o "andar na lama" e o mundo da moda e a única conclusão a que cheguei foi: seria a moda o último remanescente vivo desse mundo em autodestruição? É o que parece dizer Demna com o "espetáculo" oferecido. E na boa... Não parece estar tão errada, em parte. Vivemos uma crise de valores e de identidade gravíssimas e o respeito ao próximo vem sendo deixado de lado há tempos. Logo, como olhar para outra direção que não a do belo, fútil e glamouroso mundo das grifes? Foi o que nos sobrou nesta selva sem lei ou ordem. 

Quem saiu da experiência (que continua disponível no site para quem quiser ver e emitir sua própria opinião) pensando: será este o pré-fim dos tempos?, honestamente, não estará - a meu ver - completamente enganado. Resta saber se a humanidade, este grupo de indivíduos que tanto vem decepcionando nas últimas décadas com cada vez mais frequência, vai enfim tomar vergonha na cara e reverter essa situação ou continuará permitindo tamanha atrocidade com nosso estilo de vida sob a velha desculpa do "não tem mais jeito mesmo, portanto remediado está".  

Enquanto isso, aguardemos. Como sempre.


quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Nem toda dor do mundo destrói uma lenda


Marilyn Monroe foi (e ainda é, não importa quanto tempo tenha passado da sua morte) a maior sex symbol da história do audiovisual norte-americano. E isso mesmo depois de tantas gerações posteriores a ela encantando a sétima arte mundial lutando bravamente para difamá-la dia após dia. E tudo por quê? Porque a inveja é definitivamente o que move a humanidade desde priscas eras. E porque, lógico, ela não está mais entre nós para se defender de tantas acusações. Nem mesmo seu nome de batismo, Norma Jean, escapou de ser espezinhado pelos haters. 

Contudo, sua beleza e glamour ressoam até hoje na mente de homens alucinados pelo seu brilho bem como mulheres rancorosas por não possuírem o mesmo sex appeal que ela. Dito isto, é preciso avisar aos marinheiros de primeira viagem logo de cara: se vocês procuram um filme exaltação sobre Marilyn, esse aqui realmente não é para você. Blonde, filme de Andrew Dominik produzido pela Netflix, é não somente um desserviço à imagem da diva pop, como também um grande ensaio estúpido e elogioso à misoginia. 

Sempre reclamei da maneira como hollywood retrata Marilyn em cinebiografias, narrando-a na maioria das vezes em tom pejorativo e maniqueísta. No final das contas, o que sobrava de válido eram as atrizes bonitas que a encarnavam (Michelle Williams, Ashley Judd, etc). E no caso de Blonde esse meu desaprovamento ainda piora por não se tratar de uma biografia clássica e sim da adaptação do romance homônimo da escritora Joyce Carol Oates, que já é polêmico por si só.

Acompanhamos a jornada dolorosa de Marilyn - pois é disso que se trata esse longa: uma fonte inesgotável de dor e sofrimento - desde criança, com a doença da mãe e o abandono num orfanato. E uma informação importantíssima não pode passar desapercebida aqui: ela aguardou por toda a vida o momento de conhecer o seu pai - em vão. 

A menina cresce, se interessa pelo mundo artístico, estuda, mas seu primeiro acesso à indústria cinematográfica é descrito por um estupro, perpetrado por um tubarão dos estúdios da época (e não podemos passar a mão na cabeça dos covardes nesse sentido: aquela foi uma época repleta de ídolos, mas também de cafajestes e predadores sexuais de todo tipo).

Já no quesito relacionamentos amorosos o dilacerar é ainda pior. Tirando o dramaturgo Arthur Miller (Adrien Brody), Marilyn vê sua trajetória ser corrompida por homens que só fizeram lhe explorar, usar sexualmente ou agredir, como o jogador de beisebol Joe Dimaggio (Bobby Canavale). Isso sem contar, é claro, a maneira como o filme aborda o relacionamento que ela teve com o então Presidente da República, John Kennedy. Nojento, meus caros leitores, é uma palavra que nem de longe descreve o que eu vi. 

Só resta então aos fãs mais ardorosos e apaixonados da atriz aguardar os raríssimos momentos de luz em que ela é mostrada trabalhando em seus longas de maior sucesso: Os homens preferem as loiras, O pecado mora ao lado e Quanto mais quente, melhor. Mas mesmo esses também estão impregnados de fúria, sexismo e abusos os mais diversos. 

Ao fim da amarga "experiência" (embora Ana de Armas, que dá vida à Marilyn, seja um show à parte, digno de uma indicação ao Oscar) me peguei relembrando de um livro barra-pesada, Marilyn e JFK, escrito pelo autor François Forrestier, que li há coisa de uns cinco anos. E ele, o livro, comete o mesmo nível de desrespeito sem fim com a atriz e musa. 

Mais: fiquei perplexo ao ver nos créditos o nome do ator Brad Pitt entre os produtores desse descaso. Eu sei que ele e Dominik trabalharam no longa anterior do diretor, O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford, mas... Onde esse rapaz, que vem produzindo tantos projetos interessantes nos últimos anos, estava com a cabeça quando decidiu se envolver nisso aqui? Certamente entrará para a história como uma bola fora em sua carreira. 

Única certeza: a de que o diretor, que foi extremamente grosso na coletiva de imprensa do filme no Festival de Veneza, não é nem nunca foi fã de Marilyn e certamente a despreza como atriz, quiçá como mulher. Não consigo encontrar outra explicação para tamanha leviandade. 

Entretanto, fiquem sabendo tanto ele quantos os próximos a decidirem, no futuro, contar a história da loira fatal que deslumbrou hollywood, que nem toda dor do mundo é capaz de destruir o legado dessa lenda. Tanto que até hoje o sonho de grande parte das atrizes é conseguir chegar até onde ela chegou. Já a maldade e a insensatez de vocês...


quarta-feira, 28 de setembro de 2022

Um showman nato


Ele, não tenho a menor dúvida, foi o homem (e o artista) mais sem filtro que a cultura pop e a sociedade brasileira já nos apresentaram até hoje. E quem continua enxergando-o como um mero maluco ou doidão realmente não entendeu uma vírgula do que ele falou ou cantou. 

Quem? Tim Maia, é claro! O pai da soul music nacional, se vivo, estaria completando 80 anos no dia de hoje, e eu me pergunto: como reagiria o Brasil de hoje, cheio de preconceitos e cancelamentos, diante de uma figura tão meteórica e desbocada como ele? 

Falar de sua carreira musical, mesmo para leigos, é chover no molhado porque ele continua relevante, continua tocando, bombando nas pistas e os ouvintes continuam procurando seus vídeos na internet, em busca de suas frases marcantes e sua filosofia própria (sua declaração "tudo é tudo e nada é nada", durante a gravação de um especial para a tv, e sua formação em cornologia sempre abordada em talk shows, viraram sua marca registrada). 

Detalhe importante e imprescindível: ao me referir à sua carreira, não podemos nos esquecer do "polêmico" álbum que gravou quando fazia parte da seita religiosa Universo em desencanto, disco este boicotado pelas gravadoras e que quase decretou o fim prematuro de sua carreira. Ouça-o também. É Tim Maia na veia! 

Mas nada que abalasse o jeito irascível e inquietante do garoto que entregava marmitas na Tijuca, começou a carreira ao lado de Roberto e Erasmo Carlos, foi preso nos Estados Unidos e trouxe de lá uma sonoridade e uma vibe ímpares na então MPB! 

"Me dê motivo", "Gostava tanto de você", "O descobridor dos sete mares", "Azul da cor do mar", "Do Leme ao pontal", "Primavera", "Sossego", "Você", "Um dia de domingo" (no qual divide o microfone com Gal Costa)... É difícil definir Tim em poucas palavras, digo, canções. Ele era uma metralhadora das intenções as mais diversas e transformava o simples, o cotidiano, em espetáculo. 

Um dica rápida para os não-iniciados na obra do mestre: ouça Tim Maia em inglês assim que puderem. Quem me deu o toque foi um senhor de mais de 60 anos dentro da (hoje extinta) loja Modern Sound, em Copacabana. E ele estava cobertíssimo de razão. Minha vida - e meus ouvidos - foram profundamente modificados depois disso. 

Porém, como todo artista rebelde que se preze, havia o lado B da sua história pra lá de megalomaníaca: as drogas, muita bebida, os relacionamentos amorosos conturbados, a fama de não comparecer aos shows e a comida, um inimigo que o perseguiu por toda vida. 

Na extraordinária biografia sobre ele escrita por Nelson Motta, Vale Tudo - O Som e a Fúria de Tim Maia, o autor marca os capítulos da obra em kg, mostrando o quanto Tim engordou ao longo da vida (e o quanto isso lhe trouxe problemas). Em sua última apresentação antes de falecer, via-se claramente um homem ofegante e quase sem voz, lutando arduamente para se manter de pé e não decepcionar os fãs. 

Acreditem: não decepcionou. Nem um pouco. Seu talento e seu legado para a história da música nacional são únicos e irreplicáveis. Acho quase impossível que outro como ele surja.

No final das contas me fica a sensação de que, além de ser um showman nato, ele viveu na época certa. Dificilmente conseguiriam deixá-lo brilhar nos dias de hoje, repletos de politicamente correto e artistas que se escondem atrás de falsos engajamentos sociais e simpatias fabricadas. Ele nunca deixaria de bater de frente com esse século XXI caótico e contraditório. Do contrário, não seria ele o furacão que foi. 

Mas que está fazendo uma falta danada no mainstream, ah!!! Não tenho a menor dúvida!