sexta-feira, 8 de outubro de 2021

O refugiado


Uma vez eu li numa matéria do Segundo Caderno, do Jornal O Globo, o ator Antônio Fagundes comentando de forma decepcionada sobre os vencedores do Prêmio Nobel de Literatura dos últimos anos. Ele dizia: "na maioria das vezes, são pessoas de quem nunca ouvimos falar, de lugares extremamente distantes do planeta. E eles - ou elas - acabam ficando com uma honraria que poderia ser entregue a um Amos Oz ou a um Philip Roth, que infelizmente morreram sem receber o prêmio que tanto mereciam". E eu me vi naquela declaração, pois também tinha um pouco desse olhar. 

Mais: vou morrer me perguntando porque nossa literatura até hoje não teve um vencedor do Nobel na categoria. Afinal de contas, tivemos Drummond, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, o teatro de Nelson Rodrigues e o vencedor do Prêmio Camões, o extraordinário Raduan Nassar, de Lavoura Arcaica e Um copo de cólera. Contudo, também é preciso reconhecer que às vezes o completo desconhecido é muito bem vindo, principalmente no que diz respeito à esmiuçar as mazelas desse século XXI devastado pelo acúmulo de contradições e os abusos do capitalismo selvagem. 

E esse parece ser exatamente o caso do escritor Abdulrazak Gurnah, escolhido ontem como o Prêmio Nobel de Literatura de 2021. Só para constar: mais uma vez um autor que AINDA não foi publicado em nossas terras. 

A vida de Gurnah já vale por si só um bom livro: ele deixou o seu país, a Tanzânia, aos 18 anos de idade em direção à Inglaterra, no final da década de 1960. Na ocasião, sua terra natal, liberada do domínio britânico em 1963, enfrentava um golpe de Estado que levou à opressão e ao massacre de cidadãos de origem árabe, a minoria do país. Por conta disso, ele foi forçado a deixar a família e se refugiar nas terras de seus colonizadores para seguir com os estudos (donde só regressaria à pátria em 1984, um pouco antes do pai falecer). 

Estudou em Canterbury e, posteriormente, na Universidade de Kent, onde lecionou inglês e literaturas pós-coloniais. Passou também pela Nigéria, onde deu aulas na Universidade Kano, entre 1980 e 1983. E foi entre uma aula e outra que descobriu a paixão pela literatura. Já a escrita, mais especificamente, ele viu despertar dentro dele quando tinha 21 anos e não parou mais. Porém, nunca se viu como um autor clássico, de carreira, desses que sonhava se tornar escritor desde que se entende por gente. Segundo seu próprio conceito, ele é mais uma pessoa que junta ideias do que cria ilusões ou fantasias. 

E o principal: deu voz aos excluídos, refugiados e andarilhos à procura de um novo lugar para morar. 

Gurnah foi, desde cedo, um estranho lidando com as dificuldades de encontrar o seu próprio caminho, tendo de refazer sua história a todo momento. E isso é certamente sua maior influência literária. O garoto que leu de Shakespeare ao Alcorão, passando pelas Mil e uma noites e o também vencedor do Nobel V.S. Naipaul, já mais velho narrou os efeitos do colonialismo, o desterramento das populações africanas e nos apresentou a diálogos que fogem (e muito) da velha dicotomia opressor x oprimido. Em seus dez romances e inúmeros contos publicados, os personagens nunca são simplesmente bons ou maus. São apenas humanos. Logo, passíveis de dúvidas. 

Dentre os artigos que li sobre o autor na internet, suas obras mais celebradas parecem ser Paradise - publicado em 1994 -, que é seu romance mais conhecido, nos trazendo uma visão afrocêntrica da história, indicado ao Booker Prize e, dizem, determinante para sua escolha como vencedor do Nobel esse ano e Desertion - lançado em 2005, muito celebrado pela crítica literária e que nos apresenta uma narrativa sobre amores proibidos. 

Entretanto, para aqueles que preferem ler algo do autor publicado em língua portuguesa, enquanto ele ainda não dá as caras aqui pelo Brasil, recomendo By the sea (de 2001) que foi lançado em Portugal com o título de "Junto ao mar" e, segundo especialistas do mercado editorial, é sua obra mais autobiográfica e, por isso mesmo, acredito que deva ser uma das primeiras a aparecer em nossas livrarias muito em breve. 

Agora só nos resta esperar que nossas editoras se mexam o quanto antes e tragam à tona esse "ilustre desconhecido", que desde já me intrigou por apresentar em seu trabalho um tema tão atual e que precisa ser revisto com urgência pelo mundo. E como é bom saber que a Academia Sueca também foi capaz de enxergar isso justo agora!   


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