domingo, 24 de outubro de 2021

O autoexílio




Para quem acha difícil viver no Brasil de hoje, com tantos negacionismos e cegos ideológicos, é preciso também lembrar sempre: o Brasil de ontem já aprontou, já nos sacaneou muito! E foi dessa eterna mania de não aprendermos com o passado, de repetirmos as mesmas experiências frustradas, que chegamos ao Brasil de Hoje, confuso, ilógico, cada vez mais perdido dentro de si mesmo. 

Falo disso porque me deparo com a notícia, no caderno cultural da Folha de São Paulo, dos 25 anos do longa Terra estrangeira, da dupla Walter Salles e Daniela Thomas, provavelmente um dos filmes da retomada do cinema nacional que melhor falaram desse nosso país contraditório. E ainda: o filme foi restaurado para exibição na Mostra de cinema de São Paulo. Um deleite só! 

Acompanhamos a história de Paco (Fernando Alves Pinto), um ator fracassado à procura de um novo caminho e sua mãe, Manuela (Laura Cardoso, simplesmente fantástica), cujo maior sonho é voltar à sua terra natal, San Sebastián, na Espanha, tendo em vista a desilusão com o Brasil. Contudo, seus planos são drasticamente interrompidos com a notícia do confisco das cadernetas de poupança durante o governo Collor. Mais do que isso: Manuela enfarta e tomba ali mesmo, no sofá. 

Devastado pelo luto e pela falta de perspectivas no mercado de trabalho, Paco decide ir embora para Portugal. E conhece Igor (Luís Mello), o estereótipo vivo do trambiqueiro, que decide contratá-lo para que ele entregue à Miguel (Alexandre Borges), um músico de formação, mas que vive de pequenos contrabandos, um pacote contendo um violino. Ao chegar à terra lusitana descobre que Miguel está morto e se encontra com Alex (Fernanda Torres), a namorada dele, que trabalha num reles botequim. E juntos precisam aprender a viver nessa terra cheia de contradições, enquanto fogem dos assassinos de Miguel. 

Terra estrangeira é um filme que tem como primeira prerrogativa a ideia de deslocamento. Têm-se a sensação, a todo momento, de que seus personagens estão numa espécie de autoexílio, motivados pela desilusão com suas vidas e, logicamente, o país de onde vieram. Entretanto, mesmo o tão idolatrado Portugal - fenômeno que se repetiu na atual sociedade, em tempos de crise econômica mundial - lhes mostra uma outra faceta amarga, cheia de inverdades e ilusões. 

É possível ver, transitando pelas ruas, africanos desesperados, à procura de um ganha-pão (quase um prenúncio da onda de refugiados que assola o século XXI) ou mesmo europeus que andam na corda-bamba para sobreviver com muito custo. Não se esqueçam: é cara a vida na Europa e só acredita em milagres ou facilidades quem é completamente ignorante ou ingênuo. E quem não consegue enxergar a realidade no seu próprio país, dificilmente a enxergará em qualquer país para onde vá. Este talvez seja o maior defeito de nós, brasileiros: acreditar que a grama é sempre mais verde no país dos outros. 

Embora sua narrativa se passe nos anos 1990 e tenha sido lançado seis anos depois, em plena efervescência cultural proposta pela nova geração da sétima arte brazuca, o filme de Walter e Daniela nos mostra o quanto o Brasil não amadureceu como deveria. Pior: em alguns aspectos, até piorou - e muito. Hoje em dia nos escondemos sob a alcunha da falsa religiosidade e a mentalidade caduca de quem acredita que armas são a solução para lidarmos com qualquer problema. Quanta falácia! 

Nunca mais assisti a produção e mesmo assim me lembro dela, da ocasião em que a vi no cinema Roxy, como se fosse hoje. Lembro-me de cada detalhe, de cada frame e, por conseguinte, de vizinhos meus que também morreram naquela época, após saberem do confisco, exatamente como Manuela. Foi uma tragédia estarrecedora. Teve gente até que se suicidou!

Recomendo Terra estrangeira às novas gerações de olhos fechados, como recomendaria O auto da compadecida, Carlota Joaquina - princesa do Brazil, Cidade de Deus, O quatrilho e Central do Brasil (finalistas ao Oscar de melhor filme internacional em 1995 e 1999). É certamente das coisas mais corajosas e enfáticas que produzimos em nossa cinematografia da metade dos anos 1990 para cá. E mesmo correndo o risco de ser apedrejado pelos cinéfilos fanáticos e os fabricantes de mentira da nova era, coloco-o junto à produções como Terra em transe, Ganga Zumba e Macunaíma. A dupla fez por onde o seu lugar entre eles!

Mas como nem tudo são fábulas ou alegrias, fica a retumbante tristeza de o país não ter evoluído ou aprendido com os ensinamentos propostos pelo longa. Quem sabe um dia! (ou será que eu tenho mais é que tomar vergonha na cara e parar de viver de delírio e sonho?). Sei lá... Nessas horas o meu lado esperançoso ainda fala - ou sussurra - um pouquinho. 

P.S: ouvir Vapor barato, de Jards Macalé e Waly Salomão, na voz indiscutível de Gal Costa já vale metade desta experiência cinematográfica. 




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