Em tempos de aquecimento global, gentrificação, racismo estrutural, tecnologias portáteis e mercantilização da fé, a sensação que a parte "lúcida" da sociedade tem é a de que o tempo da simplicidade passou. Eu mesmo não tenho mais coragem de colocar a cadeira no portão de casa para conversar com os vizinhos, como bem fazia minha avó materna naqueles saudosos anos 1980 e 1990. A violência não permite mais.
Conversar foi do debate de ideias à guerra ideológica e vazia, onde todos querem vencer todos. O país, e por conseguinte a cidade maravilhosa, ganhou ares de reality show, de competição truculenta e a frase de Andy Wahrol (aquela dos 15 segundos de fama) ganhou ares de imperativo, de obrigação. "Ou tenho isso ou não sou nada". Logo, no final das contas, o que nos sobra é meio que o apego à nostalgia (e eu não consigo entender quem vê a palavra como algo negativo!). Lembrar do que passou nunca foi tão importante como agora.
E eis que vejo o pesquisador Luiz Antônio Simas falando no canal curta! de seu livro O corpo encantado das ruas. A capa da obra - uma alusão aos saquinhos de doce de Cosme e Damião - é uma provocação por si própria, quase um tapa na cara dos moralistas religiosos de plantão. Fico encantado na hora e vou à luta atrás de um exemplar para mim.
Como tudo o que é bom nesse país à deriva a dificuldade se apresenta, perco tempo em livrarias, fuço sebos, viro a internet de cabeça para baixo e somente agora consigo degustar esta pequena obra-prima disfarçada de livro. E recomendo de olhos fechados para todos os que estão lendo este humilde artigo.
O autor é um óbvio amante do subúrbio e do cotidiano carioca e intercala através de crônicas enxutíssimas aquilo que, não importa o quanto neguem, sempre foi o melhor da nossa cidade: o simples, o improviso, a gargalhada. E esta mesma cidade agora, comenta ele, passa por um processo grotesco de elitização, pois favorecer os pobres (na visão de certa parcela do país) é, no mínimo, empobrecer a nação. Tristes tempos, eu sei...
Festa, feira, rua, malandro, pombagira, caboclo, futebol, João do Rio, terreiro, história, passado, presente, carioquismo, pobres, elitização, monarquia, república, Zé pelintra, botequins, funkeiros, vagabundos, carnaval, pernada, afago, orixás, encruzilhadas, samba, credo, fala, corpo, choro (tanto a lágrima como a música), São Jorge, beleza, sofisticação, encontro, Cosme e Damião, despacho, axé, ogã, feijoada, destruição, África, subúrbio, reformas, Tia Ciata, bêbados, retirantes, cordelistas, capoeiras, beatas, rezadeiras, pipas, porrinha, Kichute, memória, copa do mundo, Maracanã, jogo do bicho, Cacique de Ramos x Bafo da onça, Cordão do bola preta, festa da Penha, Parque Shangai, azeite de dendê, desfile, Zé Pereira, Rei momo, Marques Rebelo, Mangueira (a árvore e a escola de samba), J. Carlos, Quinta da boa vista, carrocinhas, São cipriano, reveillon, erês, criança tocando o rebu, favela, churrasquinho, geraldinos e arquibaldos, Lima Barreto, cidade maravilhosa, mooyo, Wilson das Neves, umbanda e candomblé, Duque de Caxias, Kizomba, exu... tudo converge para a criação de uma interessante cartografia de um Rio de Janeiro que parece ter desaparecido. Tomara que não.
Por outro lado, Simas não deixa de mencionar (e criticar) eventos recentes ocorridos na cidade e que merecem mais atenção por parte dos cariocas alienados. Seja o assassinato da deputada Marielle Franco, seja o incêndio devastador no Museu Nacional, ou mesmo a mentalidade odiosa de certas vertentes da igreja evangélica que teimam em impor sua fé aos demais dogmas, promovendo uma brutalidade sem precedentes no país, mostram de forma nua e crua o lado desgostoso do intelectual com o país. E isso precisa mudar - diz ele em algum momento - urgentemente.
Quando o tema que ganha o protagonismo nas páginas do livro é o futebol ou o samba, O corpo encantado das ruas aumenta o fôlego e vira registro de um apaixonado, conhecedor metódico dos mais diversos estereótipos e influências que fizeram dessa cidade um caldeirão cultural, a despeito daqueles que teimam em enxergar a terra de Noel Rosa, Cartola e Pixinnguinha como um mero resort internacional, de preferência falado na língua de Shakespeare.
Quando termino a última página e guardo com carinho as dicas oferecidas entre as referências bibliográficas (que eu recomendo que sejam procuradas também, com paciência), vejo na experiência obtida apenas um mísero defeito: o livro poderia ser maior. Ele tinha bagagem para isso e com folga.
Desde Areias escaldantes, de Scarlet Moon, que eu li coisa de uns 15 anos atrás, eu não me deparava com um livro tão cheio de boas ideias, capaz de levar minha formação cultural a um outro patamar. E assim como lá, fiquei mais uma vez com a clara impressão de que o ontem, critiquem o quanto quiserem os imediatistas, nunca foi tão prazeroso quanto agora.
Vão atrás também e tirem suas próprias conclusões!
Sem comentários:
Enviar um comentário