Como pode um homem que revolucionou a forma de pensarmos a sétima arte no Brasil ser tão esculhambado, insultado, xingado, menosprezado, vilipendiado? No Brasil, infelizmente, isso pode e não somente se referindo ao cinema, mas de forma geral. Bastou pensar fora da bolha, não seguir a demanda e pronto: lá vai você para o saco dos ressentidos, dos idiotas, dos antipatriotas, etc etc etc. E honestamente... Acho um bom negócio, no final das contas, estarmos fora desse estereótipo que não passa de "bater continência para uma hierarquia ou um sistema que nunca pensou na maioria".
Refiro-me, no parágrafo anterior, ao cineasta Glauber Rocha que neste mês de agosto está completando quatro décadas da sua morte por problemas pulmonares. O baiano rebelde de Vitória da Conquista aprontou. E como! E justamente por isso o considero até hoje nosso maior expoente audiovisual.
O problema? Glauber Rocha nunca foi livro de auto-ajuda ou um manual de regras mequetrefe. É complexo, difícil de interpretar, de entrar em sua mente fervilhante de ideias. Contudo, o que seus detratores não conseguem entender, é que essa é justamente a característica mais brilhante de toda a sua carreira. O fato de nos vermos confusos diante de um filme dele é traço de sua personalidade inconstante e, por vezes, inverossímil. E principalmente: de seu radicalismo dirigido a certos segmentos dessa sociedade partida que se acha modelo de alguma coisa.
Na primeira vez que assisti a um longa dele - e era O leão de sete cabeças, rodado na África - tive a certeza logo de cara de estar diante de um artista diferenciado e de rebuscada compreensão. A priori o longa me pareceu uma grande colagem de fatos, mas depois entendi que eu é que estava completamente equivocado em minha interpretação leviana. Glauber era, isso sim, um provocador. Político, social, do que quer que seja.
Dois meses depois dessa experiência inicial encontrei num sebo do centro da cidade o hoje cult Revisão crítica do cinema brasileiro, de sua autoria. E fiquei completamente estático com sua visão ímpar sobre a sétima arte nacional. Era a primeira vez que eu via alguém mudar conceitos daquela forma (e muitos deles se encontram atualíssimos até hoje!). O dono do sebo em questão, inclusive, me recomendou Cartas ao mundo, coletânea de correspondências que o diretor escreveu ao longo da vida. Mas esse eu só conseguiria ler uns dois anos depois.
Entrei no Tempo Glauber, em Botafogo, e lá tive acesso a seus filmes mais famosos. Deus e o diabo na terra do sol e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (que tem até crítica no you tube do Martin Scorsese) me fizeram até mesmo enxergar o faroeste americano com outros olhos, tamanha a revolução que estava em jogo ali. Contudo, meu filme preferido do diretor continua sendo Terra em transe, talvez pelo fato de eu também enxergar a política partidária com aqueles mesmos olhos descrentes, desconfiados.
Os curtas Di cavalcanti e Pátio, o extraordinário documentário As armas e o povo, rodado em Portugal após a revolução dos cravos, e o romance Riverão Sussuarana - único escrito por ele - ajudaram a moldar minha opinião sobre o artista que mais parecia uma força arrebatadora da natureza. Mas era preciso saber também o que os outros pensavam sobre sua obra, seu caráter, suas ideias revolucionárias.
Entram em cena a partir daí os ótimos documentários de Sílvio Tendler Glauber: o labirinto do Brasil e de Eryk Rocha (filho do diretor) Cinema novo e o livro A primavera do dragão - a juventude de Glauber Rocha, do eterno multimídia Nelson Motta. E eu então me dei conta da quantidade de pessoas, políticos, artistas, pessoas comuns, que Glauber incomodou com sua língua ferina e seu método antissistema.
Ele foi a melhor representação do que eu costumo chamar no país de animal político. Enfrentou quem quer que fosse em nome de sua arte, não tinha o menor interesse em produzir cinema comercial, para vender pipoca e refrigerante nas salas, e pagou um preço alto por se posicionar contra aqueles que querem ver o mundo numa eterna repetição de si mesmo (e nisso se equivaleu aos maiores da história, não tenham dúvidas).
E saber que lá se vão 40 anos sem um artista desse quilate é realmente devastador. Já prevejo este humilde artigo sendo detonado pelos ressentidos e fascistas, mas quer saber? Eles que se danem! A nossa sétima arte precisa - e muito! - de mais artistas como esse inacreditável baiano que rodou o mundo e falou do país como poucos.
Resta saber onde encontrá-los neste século XXI do retrocesso e do exibicionismo...
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