11 anos atrás eu saí de minha casa no subúrbio do Méier e fui a um cinema em Botafogo às escuras, sem o menor embasamento de qual seria a história por trás de Incêndios, longa do diretor Denis Villeneuve. Como únicas informações apenas um cartaz curioso e o fato de se tratar de uma história passada no Oriente Médio. Duas horas depois da sessão estava sentado numa das cadeiras do café dentro cinema, perplexo com tudo o que meus olhos acabavam de ver.
Imagina então após tantos anos me deparar com a versão teatral do projeto (que, aliás, é originalmente uma peça de teatro, escrita por Wajdi Mouawad), dirigida por Aderbal Freire Filho - que já havia chamado minha atenção para todo o sempre com sua montagem de Hamlet com o ator Wagner Moura - e tendo o elenco capitaneado pela atriz Marieta Severo, disponível numa plataforma online de forma gratuita! Pois é... Eu tinha MESMO que conferir isso.
Incêndios versão teatro é tão poderoso, em alguns momentos até mais, do que o filme de Villeneuve e nos faz pensar a todo momento em que mundo torpe estamos (sobre)vivendo.
A peça começa com uma leitura de testamento após a morte de Nawal Marwan (Marieta Severo), protagonista da trama. Seus dois filhos, Jeanne (Keli Freitas) e Simon (Felipe de Carolis) recebem do testamenteiro uma carta em que a mãe pede que eles procurem por seu pai e seu outro irmão, para ambos uma figura até então desconhecida. Simon se mostra reticente desde o início e não deseja parar sua carreira como lutador de boxe para ir atrás de uma ilusão. Já Jeanne dá um tempo em suas aulas de matemática na universidade e decide atender ao pedido da mãe.
E o resultado dessa escolha é uma viagem rumo ao inferno com passagem apenas de ida.
À medida em que se aproxima do paradeiro de seu pai e irmão vão se acumulando as mais diversas experiências trágicas pelas quais a mãe passou em vida e Jeanne começa a entender o porquê dela ter se entregue ao silêncio já no fim da vida. Terrorismo presente em todas as esquinas, o fato dela ter sido obrigada a entregar para a adoção o filho que tanto desejara, fruto de um relacionamento visto como proibido pelos pais ("E ninguém esquece o próprio útero", diz Nawal à sua genitora), a formação dos núcleos de resistência e finalmente a catástrofe horrenda que se abateu sobre ela.
Jeanne descobre a duras penas que Narwal era "a mulher que canta" e sua música era nada mais nada menos do que uma maneira de anestesiar a realidade dura e cruel do dia-a-dia. Narwal teve que passar sua vida se anulando como mulher e como ser humano, na vã esperança de reencontrar o filho tão amado e poder lhe pedir desculpas. No entanto, o desfecho de sua saga rumo à redenção acaba por se mostrar ainda mais atroz do que tudo o que já havia vivido até então.
Marieta Severo está soberba na pele da amargurada mãe que sonha diariamente em reconstruir a sua vida ao lado de um pedaço que foi arrancado dela. Outro ponto de destaque são os objetos de cena que entram pelas laterais do palco, dando uma cara de ambiente esquizofrênico, desarrumado, ao lugar. E a trilha sonora, mezzo perturbadora mezzo rock n' roll, cai como uma luva para esmiuçar essa terra insólita onde ficamos com a impressão de que seremos atingidos por uma bomba atômica a qualquer instante, tamanha a virulência e o desrespeito que infecta o ambiente.
Incêndios me fez lembrar de tudo o de melhor que já assisti do cinema iraniano e do oriente médio de uma maneira geral. Uma mescla de poesia com autodestruição muito bem construída por um texto forte, sem rodeios ou barrigas desnecessárias. E cada palavra está a serviço do sofrimento que invade a vida daquelas pessoas, mãe, filho e filha.
E se eu continuar falando aqui vou acabar por entregar todo o elán da peça e isso eu não quero de jeito nenhum, pois desejo ansiosamente que mais pessoas vejam o exuberante espetáculo também. E se puderem, emendem na versão cinematográfica de Villeneuve (que, por sinal, foi indicada - merecidamente! - ao Oscar de melhor filme internacional em 2012).
Precisa dizer mais alguma coisa?
Sem comentários:
Enviar um comentário