sexta-feira, 30 de julho de 2021

Nosso cinéma vérité


Não existe nada mais triste para um cinéfilo de carteirinha do que ver a estrutura organizacional referente à sétima arte ser destruída ou mesmo arranhada, pois isso é a prova viva de que existem pessoas que não dão a mínima para o que está sendo feito ali. Pessoas que preferem acreditar que aquilo - a chamada sétima arte - não serve para absolutamente nada. É reles entretenimento barato. 

Dito isto, é muito triste ver de novo (não tem muito tempo tivemos um baque com o incêndio do Museu Nacional) uma sede pública ligada à Secretaria de cultura pegar fogo. Desta vez o atingido foi um galpão da Cinemateca Brasileira, na Vila Leopoldina, em São Paulo. 

Vi a notícia no telejornal à noite e vislumbrei um homem (certamente um produtor do meio) às lágrimas, reclamando do descaso com o lugar, que já vem sofrendo uma crise sem precedentes nos últimos anos. Mais uma vez a expressão "tragédia anunciada" recai sobre uma catástrofe nesse país de exageros, distorções e falta de memória. 

Sim, o incêndio na Cinemateca nos faz reviver uma velha máxima de nosso povo: somos um país de desmemoriados imediatistas, que não entendem a necessidade de produzir um legado ou uma história. Falar do ontem num país como o nosso virou sinônimo, nos tempos atuais, de esnobismo ou assunto "de quem não tem mais o que fazer da vida". 

E o roteiro que conduziu à tragédia na noite de quarta-feira é ainda mais assustador: incêndio no galpão em Vila Madalena em 2016 (que destruiu cerca de 500 obras), enchente no ano passado nesse mesmo galpão que pegou fogo anteontem, abandono, troca de gestão, entrega das chaves, funcionários demitidos, protestos... Sim, eu sei... Mais macabro do que isso, impossível!

Chego a crer que a tal tragédia anunciada é nosso melhor exemplo de cinéma vérité e que, diferentemente do formato original, não levará a nenhum reality show espalhafatoso ou mesmo tendencioso. Permanecerá, isso sim, nesse ostracismo e/ou desmantelamento cultural no qual estamos inseridos há tempos.

Já prevejo os eternos boçais de sempre inundando a internet com comentários grotescos de quinta categoria ou fazendo piadinhas negras do tipo "espero que tenha queimado os filmes dos comunistas do cinema novo, aquela raça desgraçada!" ou então "já queimou tarde! aquilo ali não servia para nada mesmo", isso só para lembrar do óbvio ululante, pois nessas horas aparecem declarações ainda mais horrendas, bem ao nível do mundo virtual contemporâneo cheio de prepotentes e ressentidos. 

E como bem diz o ditado popular em que "não adianta chorar sobre o leite derramado", só nos resta, como cinéfilos apaixonados, esperar ou rezar por dias melhores, estadistas mais interessados, gente comprometida com o futuro e a história e não somente com o lucro. 

E uma provocação vem à minha mente neste exato momento: aposto que se pegasse fogo a sede da Petrobrás na Avenida Chile, no Rio de Janeiro, muitos desses que hoje estão de braços cruzados já estariam se mobilizando para reconstruir o prédio. 

Embora um segmento político do país tenha dito que irá fazer uma representação criminal contra o governo para apurar a tragédia, tudo na prática ainda é muito raso (o que não deixa de também ser óbvio nessa pátria lenta e desinteressada). Logo, como terminar este texto-desabafo? Ora! Deste jeito mesmo. Inacabado. Que nem o Brasil. 


quarta-feira, 28 de julho de 2021

Peru com mel, de Vila Isabel


Eu acredito piamente que certas pessoas entram na vida da gente para virá-la de ponta a cabeça no melhor sentido do termo. E não fossem elas certamente o meu mundo - não! o nosso mundo - seria infinitamente menor. No meu caso, fui invadido desde moleque por figuras antológicas das quais volta e meia preciso falar e falar e falar de novo. E sou insistente nisso, pois acredito que as novas gerações precisam conhecer essas pessoas também (às vezes na marra). 

Foi assim com Maria Clara Machado e seu Tablado; com Graciliano Ramos que me ensinou a ler ainda novo, devorando Vidas secas e São Bernardo; com as histórias em quadrinhos de Stan Lee, Maurício de Sousa e Ziraldo; com o palhaço Bozo no SBT; com o deboche anárquico de Nelson Rodrigues em Vestido de noiva, A falecida e Toda nudez será castigada, que o Brasil sempre teimou em rotular de anjo pornográfico. 

E podem ter certeza: foi assim com o ator, comediante, dublador e gênio Orlando Drummond. 

Eu não consigo imaginar a minha infância e adolescência sem ouvir a voz do Orlando. Ele era mestre supremo. Ficava na frente da tv tentando imitá-lo a qualquer custo, mas nada consegui. Era batalha injusta, desigual. Eu não tinha o dom. Porém, mais do que ouvi-lo passei a entender esse país através de sua voz e descobri que o brasileiro, mais do que um sobrevivente, é um ser humano que gosta de aproveitar a vida. Do jeito que for. 

Passo pela sala e ouço com tristeza que Orlando Drummond faleceu, aos 101 anos, vítima de complicações por conta de uma infecção urinária. Ele estava internado desde maio e chegou a ser vacinado contra a covid. Uma pena! Tenho certeza que a minha geração sentirá - e muito! - a sua falta. 

Drummond foi contrarregra, trabalhou na TV Tupi, foi "lançado" (palavras dele) pelo ator e também gênio Paulo Gracindo, imitou Elvis Presley, atuou, fez rir e muito. Mas minha primeira lembrança dele foi como dublador de vozes que até hoje eu continuo ouvindo porque minha criança interior não consegue viver sem elas. 

Ele foi Scooby-Doo (e graças a ele entrou para o Guiness Book, o livro dos recordes); o marinheiro Popeye; o extraterrestre Alf, de Melmack; O vingador, eterno vilão do desenho Caverna do dragão; Patolino; Gato Guerreiro, parceiro do He-man; Frajola, sempre correndo atrás do piu-piu; Hong Kong Fu, Bionicão, Gargamel, o algoz dos Smurfs; A coisa; Papai Smurf, Lex Luthor, em Superamigos etc, etc e haja etc para explicar 80 anos de uma carreira tão longínqua.

Já em sua versão live action (ou: de carne e osso mesmo) seu personagem mais famoso foi, sem sombra de dúvidas, o Seu Peru, o homossexual divertidíssimo da Escolinha do professor Raimundo. Com seu bordão afiadíssimo "Peru com mel, de Vila Isabel" desancava figuras históricas, duvidando da masculinidade delas, sempre querendo levá-las para a irmandade. Mais politicamente incorreto e genial, impossível!

Ao procurar na internet informações sobre sua profícua carreira, encontro no IMDb o crédito dele no filme Bonga, o vagabundo, dirigido por Victor Lima em 1971, um clássico com Renato Aragão anterior ao sucesso com o grupo Os trapalhões na Rede Globo. E na hora me pego aturdido, pois vi o longa muitos anos atrás e não me lembrava da presença dele. Eis um bom motivo para reassistir agora, não é mesmo?

Orlando é dessas figuras midiáticas que você, escritor, sabe de antemão que deixará o texto incompleto, pois há tanto a dizer e tão pouco tempo. Logo, só me resta agradecer por tudo o que ele me ensinou e, claro, continuar a ouvir a sua voz nos youtubes e vimeos da vida. Esse, como ele próprio provocava, usou e abusou. 

Fica com Deus. Você, com certeza, fez por merecer!!!


sábado, 24 de julho de 2021

Antologia do horror americano


Não conheço gênero cinematográfico mais clichê do que o terror e ainda assim isso não significa demérito algum a ele. Na verdade, o terror é o segmento ideal para aqueles que amam ver suas expectativas correspondidas. Ele se exulta daqueles que aguardam por momentos providenciais, heróicos, assustadores, mesmo sexuais. E quando não cumpre o que promete os espectadores abandonam a sala de projeção decepcionados, às vezes querendo pedir na bilheteria o seu dinheiro de volta.

Imagine então pagar o ingresso para assistir um longa em que uma maldição de mais três séculos envolvendo uma suposta bruxa transforma uma pequena cidade norte-americana num verdadeiro celeiro de psicopatas. Você, fã de terror, deve estar pensando: "eu já vi esse mesmo filme outras, pelo menos, dezenas vezes e vou querer ver de novo, pois uma releitura do tema não faz mal a ninguém". 

E se você pensou exatamente nisso, nessa releitura, então a trilogia Rua do medo, da diretora Leigh Janiak, é o seu filme. Sem tirar nem pôr. 

A cidade amaldiçoada em questão é Shadyside e ela vive às turras com uma outra, Sunnyvale, repleta de falsos moralistas que se acham bem sucedidos ou virtuosos em demasia. E quando as mortes começam a acontecer dentro de um shopping somente um grupo de desajustados que não se encaixam no padrão de normalidade dos EUA será capaz de combater a ameaça aterrorizante, incluindo rituais satânicos, muitos tiros e machadadas. 

A primeira parte ou 1994 tem como referência mais presente a clássica franquia Pânico e seu serial killer mascarado, mas muito bem acompanhado de outros psicopatas tão sanguinolentos quanto. E a turma de jovens que deverão enfrentar esses assassinos percebe logo de cara que o problema remonta a anos passados e precisa averiguar com calma todo o cenário. 

Vem a segunda parte ou 1978 (para mim, o melhor episódio dos três) trazendo em seu bojo os acampamentos assustadores com flertes, sexo proibido e competições entre jovens que invadiram a minha adolescência assistindo Sessão das Dez no SBT ou Corujão e Sessão de Gala nas madrugadas na Globo, além da ilustre homenagem à Jason, da série cult Sexta-feira 13.

Mas a raiz do problema não se encontra exatamente ali e por isso na terceira e última parte ou 1666 a diretora recorre a um terror mais clássico, que me remeteu a longas como A vila (de M. Night Shyamalan) e A Bruxa (de Robert Eggers) e enfim encontra a razão da toda a maldição: a jovem Sarah Fear, cujo único pecado que cometeu em sua comunidade foi o de ser diferente. Deu no que deu. 

Matanças, matanças e mais matanças por onde nossos olhos passam, uma trilha sonora capaz de produzir uma playlist notável e nostálgica, a dose certa de jump scares e frases de duplo sentido, corrupção policial, regime de castas, romances proibidos ou, à primeira vista, impossíveis e, claro, todo o sex appeal que o gênero que consagrou nomes como John Carpenter, Wes Craven e Stephen King dentre tantos outros, é capaz de produzir. 

Como única, digamos, diferença óbvia (pelo menos para mim) apenas a protagonista abertamente lésbica. E digo isso porque não tenho essa lembrança de ver tantos casais homossexuais nos filmes de terror dos anos 1980 ou 1990 que eu via e revia na tv. Tanto que, anos depois, muitos desses diretores foram acusados de misóginos por atrizes desses mesmos filmes, o que gerou uma controvérsia tremenda. 

Divergências à parte, no final das contas o que vislumbramos na trilogia é uma grande antologia do horror americano, com todos os estereótipos e características que tornaram o cinema de terror americano um ícone que enlouqueceu plateias ao redor do mundo. 

Para quem pertence a essa atual geração e quer conhecer um pouco do clima proposto por aquele cinema ou quer reviver esses "tempos gloriosos", Rua do medo é imperdível. Mais do que isso: a quintessência do chamado filme-homenagem naquilo que ele possui de melhor. E mais do que isso só mesmo procurando a trilogia para ver na Netflix (que acertou em cheio, de novo).     

segunda-feira, 19 de julho de 2021

O caminho das pedras


A Sessão aventura nas tardes da Rede Globo com Miami Vice, Esquadrão Classe A, Magnum, Chips, Profissão: perigo - mais conhecida como McGyver -, A dama de ferro, Ilha da fantasia (naquela época ainda não tinha a porcaria da novela Malhação). V, sobre a invasão alienígena na terra, com Robert Englund (que chegou à fama com o icônico personagem Freddy Krueger) como um dos lagartos com pele humana. A hoje mais do que cult Twin Peaks, de David Lynch, nas madrugadas da tv aberta... Eu não me lembro ao certo quando foi que comecei a me interessar por seriados. Só sei que em determinado momento da minha adolescência eles passaram a fazer parte da minha vida. 

E até hoje me acompanham onde quer que eu vá. 

Durante anos eu procurei nas livrarias - outro vício conquistado na juventude - um livro que me explicasse o universo passo a passo e não o encontrei. Acabei me informando sobre o formato aos poucos, um fragmento aqui, uma entrevista ali, um catálogo de mostra acolá. Mas nunca era o suficiente. Na verdade, o mundo de quem quer aprender é sempre insuficiente. 

E eis que me deparo com uma pérola literária indicada pelo jornalista Zeca Camargo em sua coluna cultural Divirta-me. E enfim consigo preencher as lacunas que faltam. 

Séries - o livro: de onde vieram e como são feitas, da dupla Jacqueline Cantore e Marcelo Rubens Paiva, é exemplar indispensável para fãs e interessados em saber mais sobre o gênero. Talvez seu único defeito seja o tamanho. A meu ver, poderia ser duas ou três vezes maior e ainda assim não me cansaria. 

Jacqueline e Marcelo começam o volume perguntando aos fãs porque eles amam histórias e dessa singela interrogação abre-se um túnel em direção a um mundo mágico de informações as mais diversas que remonta às três eras de ouro da televisão até os dias atuais. 

Questionamentos básicos como a batalha entre streaming e mainstream, a fidelidade das adaptações literárias, soap opera versus telenovela, o porquê do sucesso da Netflix, pioneira deste novo formato que tem dominado o mercado, hábitos dos espectadores, tipos de séries (antologias, minisséries, etc) e até mesmo os cobiçados showrunners ou, em outras palavras, as pessoas que fazem o espetáculo acontecer, estão aqui registrados. E tudo esmiuçado de forma prática, até mesmo quando jargões são explicados. 

Meu destaque vai para o momento em que a dupla se debruça sobre a jornada do escritor (e por uma razão simples: porque sou uma apaixonado por quem escreve). Vão desde a mitologia da série, o que faz delas um sucesso, passando pela dinâmica - que envolve o piloto, os personagens, a ideia, as franquias, o universo, o logline, as tramas (ou plots) e muito mais - até o seu desenvolvimento, com arcos, escaletas, cenas, diálogos e pontos de virada. 

E o melhor: ainda deixa, ao final da leitura deliciosa que termina quando mais você queria que continuasse ad infinitum, um gostinho de quero mais. Do jeito que os leitores mais extasiados tanto gostam. 

Em suma: Séries - o livro é o caminho das pedras para entendermos a televisão de hoje e o streaming sem necessariamente negar o ontem. Afinal de contas, embora tenha já 70 anos de existência, a tv continua esse aparelho complexo e que não se cansa de se reinventar. Logo, por que os seriados seriam fáceis de entender, não é mesmo? Não, senhores! Eles têm uma filosofia própria e justamente por isso são tão cultuados de geração em geração. 

Quer saber mais? Então tem que ir à livraria mais próxima e comprar o seu exemplar. Se eu falar mais por aqui vai virar spoiler e vocês vão me linchar virtualmente. E isso quem não quer sou eu. 


quinta-feira, 15 de julho de 2021

A menina dos olhos de Hollywood


Vejo (e leio) na internet a notícia de que o diretor Quentin Tarantino se afastará da indústria cinematográfica após a concretização de seu próximo longa-metragem para se dedicar à publicação de livros e fico triste. Ele alega - e corretamente - que Hollywood está mais interessada em franquias e filmes de super-heróis do que em projetos autorais ou que fujam da estrutura atual de produção. Resultado: fico ainda mais triste. 

Não é de hoje que venho percebendo o legado amargo que as franquias vêm produzindo na indústria cinematográfica norte-americana. Hollywood, que já foi um lugar de grandes ideias e autores, hoje está melhor classificada como "a meca dos grandes negócios" e nada mais. E na ideologia deles um grande negócio são filmes que já prometam a possibilidade de continuações, remakes e spin-offs antes mesmo que o longa original estreie nas telas de cinema. 

Mas é preciso que eu alerte aos leitores desavisados e já de pedras e paus nas mãos para me linchar: não sou contra a existência de franquias. Elas existem desde os primórdios da sétima arte. O que me incomoda é que elas tenham se transformado na menina dos olhos de Hollywood, na razão de existir da indústria. Isso sim é uma temeridade!

Passei minha adolescência rodeado por boas franquias. Sonhei que um dia os tênis de Marty Mcfly, protagonista de De volta para o futuro, e seus cadarços que se amarravam sozinhos, seriam vendidos em todas as sapatarias e quando moleque improvisei em casa um chicote à la Indiana Jones, com o qual brincava dentro do meu quarto. Eram tempos loucos e de muita criatividade e imaginação. Mas como tudo na vida, o formato em si também envelheceu e com o tempo foi me cansando. Aliás, foi nesse momento que passei a me dedicar ao cinema de outros lugares do mundo, como a Ásia e a América Latina. 

Talvez o pior exemplo de franquia na atualidade, a meu ver, seja aquela prometida por projetos como Piratas do Caribe, com Johnny Depp (que de história de pirata teve muito pouco ou quase nada, e eu ainda fico com os filmes antigos do Errol Flynn), Velozes e furiosos (com seus carros tunados e testosterona a mil) ou a nostálgica Star Wars. E que me desculpem os fanáticos pela série, mas depois de O retorno do Jedi  ou episódio VI não teve nada - mesmo! - que realmente fizesse os meus olhos brilharem. Todas, para mim, se escondem num formato de fácil apelação, repleto de efeitos especiais arrebatadores e com roteiros fracos e previsíveis. O que é uma pena, se levarmos em consideração a fortuna que eles custaram!

Há também aquela galera que prefere as jornadas cheias de figuras mitológicas e personagens fantásticos. A saga Harry Potter, com toda justiça, foi fenômeno por aqui e eu espero que não tentem rebootá-la. Nunca. Já a trilogia O senhor dos anéis, de Peter Jackson, devia ter encerrado sua trajetória desse jeito (como trilogia). Infelizmente vieram O hobbit e a cultura do mais do mesmo. Os fãs de batalhas grandiloquentes certamente amaram. Já os que esperavam algo novo... Pois é. Vocês sabem a resposta de cor e salteado.

E um detalhe precioso: com a chegada de Marvel e da DC ao disputado ringue dos blockbusters ficou-me a sensação nítida de que tudo, absolutamente tudo, possui uma espécie de obrigação moral de virar franquia, pois "se algo é bom, precisa ter mais de um parte ou episódio e não simplesmente terminar com o the end ou o fade out" (esta frase eu ouvi, anos atrás, de um espectador nerd fanático numa sala de cinema na zona sul carioca). 

Qualquer correlação entre a atual Hollywood e o mercado televisivo com suas séries de sucesso NÃO É mera coincidência. Não, meus caros leitores! É um guerra lá fora e quem conhecer melhor o seu território vence. E só pra constar: a tv meio que tem ganho nos últimos anos com uma certa folga.  

Ainda bem que nem todo mundo se rende ao formato e ainda podemos, nós, cinéfilos sobreviventes da cultura franqueada, saborear os projetos pessoais de um Wes Anderson, um Woody Allen, um Roman Polanski ou um David Fincher de vez em quando. Não fosse por eles, não sei mais onde eu estaria nesse exato momento. Quer dizer: talvez eu estivesse escrevendo sobre outras coisas. Vai saber. 

Chego ao final deste humilde artigo que já se pretendia sem um desfecho coeso com apenas duas certezas: 1) as franquias continuarão, ainda por um bom tempo, como arrasa-quarteirões do mercado exibidor, gostemos ou não. E 2) os streamings chegaram e trarão não somente suas próprias franquias, mas também a possibilidade de financiar aquilo que os estúdios tradicionais (Paramount, Sony Pictures, Warner, etc) não têm mais o menor interesse em produzir. E, claro, Martin Scorsese, Spike Lee, Alfonso Cuarón e tantos outros nomes de peso agradecem...

E me perguntarão na lata: e quanto ao futuro do cinema? Esse, leitores queridos, continua como sempre foi: uma mesa de pôquer, cheia de blefes, espertalhões e prêmios milionários. Para quem souber jogar o jogo, é claro.  


domingo, 11 de julho de 2021

Um repouso lírico e aconchegante


É triste ter que testemunhar o amargo momento em que vive a música popular brasileira. Não me lembro de ter ouvido tanta coisa ruim ou meia-boca como nos últimos anos. E continuo preferindo os clássicos ou os novos trabalhos de quem hoje é clássico por mérito. Mais: termino de ler o extraordinário 101 canções que tocaram o Brasil, do escritor e produtor musical Nelson Motta, e me pergunto onde foi que erramos ou simplesmente saímos da estrada da forma tão retumbante. 

Já mandamos aquele braço a quem merecia, estivemos à procura da batida perfeita, tivemos coração de estudante, deixamos a vida nos levar, exibimos nossas emoções, nossa mania de você (de você só, não! de você, de mim, de todos nós), exaltamos a pérola negra, metamorfoseamos de forma ambulante, nos encaramos olhos nos olhos, esmiuçamos o país tropical, explodimos corações e muito, muito mais. Em suma... Se existe (ou existiu) algo rico em nosso país foi nossa música. Pelo menos, até agora. 

E eis que a cantora Marisa Monte - sempre ela - entrega exatamente o álbum musical que eu vinha esperando em tempos de covid, negacionismo, e gente sem noção falando besteira aos quatro ventos enquanto o país sucumbe a olhos vistos. E o nome desse álbum é Portas.  

Uma palavra para resumir esse trabalho: lúdico. Marisa mescla sonoridades, poesias e intenções as mais diversas à serviço da boa música e ainda dá uma cutucada na sociedade perdida de hoje (que o diga sua faixa título, que abre falando de escolhas - um tema atualíssimo no Brasil de hoje -, criticando a parcela da população que trata o país e o mundo como se ambos se resumissem à procura de um único caminho. Pobres coitados!).

A seguir emenda com "calma", faixa que já havia sido lançada como single e chamado a minha atenção logo de cara. Aqui ela fala do futuro e pede calma e serenidade a seus ouvintes, para dias melhores que hão de vir. "Depois do escuro vem a alvorada", completa ela. E eu concordo. O país anda impaciente, a música de Marisa - graças a Deus - não. Detalhe importantíssimo: prestem atenção no arranjo com os instrumentos de sopro. São um charme à parte. 

Da terceira faixa em diante o que vem é festa, pois a cantora já ganhou o seu público e como boa letrista (e jogadora) que é, apenas administra a partida que já está ganha com requintes que são pura genialidade. 

Saudades de um tempo que já passou, baladas românticas, a brincadeira com o jargão popular "Quanto tempo o tempo tem?", o amanhã, o amor, o risco, palavras, versos, melodias, tons, poetas, ideias, musas, plateias, odisseias, acordes, harmonia, santos, sentimentos, clima bossa nova, uma road music, desconstrução da língua portuguesa... Ufa! Marisa Monte é uma enciclopédia cultural. E assombra, pois parece tão novinha! Parece às vezes impossível que ela conheça tanta coisa. Mas conhece. 

E tudo isso luxuosamente acompanhado por uma guitarra poderosa; um piano esfuziante, escandaloso; flautas assustadoramente inebriantes e uma percussão que... Meu Deus! Sim, é o disco do ano o que eu estou ouvindo. 

Duas faixas ganharam minha predileção com folga: a primeira é "A língua dos animais": A canção mais Marisa Monte do disco. Viajei no tempo em seus álbuns anteriores (principalmente Memórias, crônicas e declarações de amor e Infinito Particular). É por causa de músicas como essa que me tornei fã de longa data da cantora. Ela praticamente "conversa" com a natureza. E a segunda é o samba "Elegante amanhecer", onde a cantora, de forma magistral, homenageia a Portela - sua segunda casa - e o carnaval.  

Ao fim do disco, acompanhada dos parceiros Seu Jorge e Flor, Marisa fala em melhoria (e nós estamos precisando - e muito). Ou seja: ela entrega o que eu chamo de um repouso lírico e aconchegante em tempos de fúria, ódio, extremismo e ignorância. E isso pode até parecer pouco para muita gente metida a importante, mas não é, não!

Agora só me resta ouvir mais umas quinhentas ou mil vezes, até enjoar. E ouvir de novo. Pois como disse no primeiro parágrafo: está tão difícil ouvir MPB de qualidade hoje em dia que quando eu encontro é melhor aproveitar ao máximo. Pois vai que desaparece do nada... 


terça-feira, 6 de julho de 2021

O criador de heróis


É difícil fazer o seu nome no cinema, principalmente quando você fez parte de uma geração cheia de nomes poderosos como Spielberg, Scorsese, Copolla e cia., que não envelheceram com o passar dos anos. Mas mesmo assim, certos diretores conseguem encontrar o seu caminho, a sua assinatura, e às vezes uma merecida estrela na calçada da fama. E acreditem: isso é para poucos. 

Somente agora, enquanto leio as notícias na internet, descubro que o cineasta Richard Donner morreu no último domingo, aos 91 anos. E imediatamente fico triste. Ele com certeza foi um dos maiores nomes da sétima arte para a minha geração e apresentou de forma inteligente um limiar entre os slashers de terror que levaram os adolescentes oitentistas à loucura e as chamadas franquias de cinema fantástico. 

Não, é isso mesmo que vocês leram! Richard Donner criou heróis e personagens diversificados muito antes do surgimento da guerra cultural entre Marvel e DC. E fez isso de forma original, simples, sem apelar para tantas excentricidades (obs: costumo dizer às pessoas mais novas do que eu que Donner foi salvo por não ter sido engolido pela cultura do CGI e a ostentação dos efeitos visuais).

Acredito piamente que seu filme mais famoso, o hoje cult Superman não teria obtido o mesmo sucesso ou gerado tanto burburinho se feito hoje, com tanta tecnologia e pós-produção rebuscada. Era justamente o sentimento de improviso em certas cenas que tornou seu filme antológico. A solução que ele encontrou para fazer o ator Christopher Reeve voar como homem de aço até hoje é motivo de júbilo para muitos cinéfilos apaixonados. E podem me detonar, mas ainda considero essa versão de 1978 a melhor do herói da DC (eu sei, eu sei... vai ter leitor me detonando!). 

Mas Clark Kent/Superman não foi o único herói que Donner nos apresentou. Como disse acima, ele foi um criador de tipos heroicos os mais diversos. Sua dupla de detetives Martin Riggs (Mel Gibson) e Roger Murtaugh (Danny Glover), da franquia Máquina Mortífera, acompanhou toda a minha adolescência em frente ao VHS e, posteriormente, o DVD. Isso sem contar os chamados, aqui no Brasil, filmes da sessão da tarde. E Donner fez muito sucesso nessa faixa de horário. 

Os Goonies, que teve roteiro de Steven Spielberg, e O feitiço de Áquila são exemplos perfeitos do tipo de cinema que ele fazia. E trazia não somente a minha geração retratada de forma coesa como figuras sobrenaturais como há bastante tempo não se vê no cinema americano. Em outras palavras: seus heróis não eram mais do que as próprias histórias. Eles serviam à tramas e narrativas bem construídas (algo que, hoje em dia, anda em baixa por conta de inúmeros roteiros medíocres). 

Outro caso à parte na filmografia de Donner é o clássico A profecia, com a criança que simbolizaria a chegada do Anticristo na terra. Esse longa, junto com O exorcista (do diretor William Friedkin), fez com que meu interesse pelo gênero terror fosse além dos filmes de psicopata ou criaturas monstruosas.  

Antes de ingressar de vez na indústria cinematográfica o diretor também deu as caras em episódios de muitas séries televisivas de sucesso, como O agente da U.N.C.L.E, O fugitivo, Kojak, Agente 86, Além da imaginação e Tales from the Crypt (que virou programa semanal por aqui na Band). E quase ia me esquecendo: na época de Os Goonies, mencionado acima, ainda dirigiu clipes musicais para a cantora Cyndi Lauper.

Nos últimos anos Donner se afastou das franquias que o consagraram e acabou por enveredar por outros projetos, digamos, mais autorais e/ou soturnos. E é fácil enxergar isso no alucinado taxista Jerry Fletcher (Mel Gibson) de Teoria da conspiração, no policial alcoólatra Jack Mosley (Bruce Willis) em 16 Quadras ou no destemido matador de aluguel Robert Rath (Sylvester Stallone) em Assassinos, todos provas vivas de que seus heróis não eram simplesmente lineares ou cheios de conceitos morais. Ele também sabia transitar pelo terreno nebuloso quando queria...   

Fica, além da tristeza aos fãs da boa sétima arte, a certeza de um legado único e que será revisto e revisto ainda por muitos anos, já que paixão e nostalgia não têm prazo de validade. E sei que vai parecer clichê dizer isso aqui, ao fim deste texto, mas lá vai: faltam diretores como Richard Donner na atual geração do cinema hollywoodiano. Mais: faltam sua técnica e talento. Perguntem a quem conhece o cinema dele (como eu) e certamente eles concordarão comigo.

Dito isto, só me resta o desfecho óbvio: fica com Deus, mestre!  

sexta-feira, 2 de julho de 2021

A outra Maria


Nunca se falou tanto de religião ao redor do mundo como do final do século XX para cá. Na verdade, corrijo-me: nunca fanatizamos tanto a expressão religião como na sociedade contemporânea. E dessa hiperpopularização dos dogmas e da necessidade deles funcionarem como botes salva-vidas para seres humanos desesperados nasceu também uma urgência na procura por profetas, salvadores da pátria e "homens e mulheres de Deus" em todos os lugares, esperando na esquina mais próxima. E quando o assunto é milagre, então... Já viu o caos! 

Com o passar dos anos fui aumentando meu descrédito por esse tipo de gente que simplesmente não consegue enxergar a realidade com os próprios olhos e precisa doentiamente de uma muleta (pode ser um padre, um pastor, um Dalai lama, um jesuíta, enfim...). Contudo, o tema desespero religioso no cinema continua chamando a minha atenção e vejo o gênero quase como uma denúncia a certas práticas do setor. 

Esta semana eu enfim consegui assistir o interessante Rogai por nós, longa-metragem de estreia da diretora Evan Spiliotopoulos (responsável pelo roteiro do live action de A bela e a fera para a Disney), do qual eu vinha ouvindo comentários instigantes na internet. E ela fala, à sua maneira, exatamente dessa mentalidade torpe dos chamados religiosos de carteirinha. 

No longa, a jovem muda Alice (Cricket Brown) começa a ouvir a voz de uma mulher que ela considera ser a da Virgem Maria e reúne um número gigantesco de fiéis ao redor da pequena cidade onde vive. Alguns moradores preferem sair do povoado o quanto antes - por acreditar que o ocorrido possa estar relacionado à algo maligno num futuro próximo -, enquanto outros almejam permanecer ali por tempo indeterminado, pois acham que ela trouxe a esperança vindoura tão aguardada. O Vaticano manda um especialista para investigar a jovem e comprovar o milagre por trás dela, mas a moça exige nos encontros a presença de Gerry Fenn (Jeffrey Dean Morgan), um jornalista expert em matérias sensacionalistas. 

O resultado não poderia ser outro, é claro: embates entre o funcionário do Vaticano e o padre da paróquia, tio de Alice, com Gerry. Mas à medida que o jornalista vai investigando o caso e descobre a existência de uma outra Maria, esta uma força bem mais diabólica do que a mãe de Cristo, ele percebe que na verdade a população que rodeia a jovem Alice está se tornando refém de uma trama maligna com possíveis consequências catastróficas. E decide denunciar suas suspeitas, para repulsa dos interessados em perpetuar o milagre. 

Rogai por nós é aquele tipo de produção no limiar entre o terror e o gospel que me faz pensar no quanto estamos equivocados como sociedade. E o pior: todo esse equívoco é tratado com grande deboche por parte daqueles que preferem ser cegos a questionar certas profecias ou desígnios supostamente sacros.

Vivemos tempos sombrios e a sociedade atual - como já disse antes, desesperada -, espera sofregamente por falsos ídolos que lhes devolvam a esperança de épocas passadas, hoje rotuladas de "tempos melhores" por uma gigantesca fração do mundo que nunca enxergou a realidade como ela realmente era. Perdemos, em nosso íntimo, a capacidade de sermos lúcidos e quando o assunto é fé tudo parece um grande jogo ou disputa de poder. Capitalizamos nossas crenças e afetos a tal ponto que até mesmo falar em nome de Deus virou um assunto monetário dos mais lucrativos. 

Deem uma boa olhada nos fieis das igrejas e templos que vocês, leitores, frequentam e vejam quantos estão ali somente pensando em mudar de vida (leia-se: status social). Trata-se do traço mais mesquinho da chamada teologia da prosperidade. Nunca associamos tanto o criador à bens materiais e, ao mesmo tempo, nos fingimos de santos ou humildes. Todos se dizem cristãos, mas quase ninguém pensa de fato no restante da humanidade. 

Se Alice, protagonista desta história nefanda (e quem ouviu de fato o suposto milagre) foi objeto de um embuste em forma de possessão, imaginem então os devotos de parca instrução que abundam as instituições religiosas atuais. E olha que eu nem cheguei a mencionar o número de igrejas que vêm sendo incendiadas ao redor mundo nos últimos anos por desafetos religiosos interessados em projetos de poder inescrupulosos. Como eu disse dois parágrafos atrás: tempos sombrios. 

O Padre Hagan (William Sadler), tio de Alice, em determinado momento do longa diz ao jornalista em busca de prestígio que teme as consequências por trás do milagre envolvendo a sobrinha. "Pois quando Deus constrói uma igreja, o diabo costuma construir uma capela logo ao lado", ele diz. E eu complemento com o seguinte raciocínio: normalmente quando a escuridão e a sombra dão as caras em algum lugar a cegueira está sempre presente em larga escala, aplaudindo-as. Assim na arte como na vida. E de certeza apenas uma: não será a última vez que a sociedade será enganada, seja na ficção ou na vida real. E por culpa dela mesma e de seus exageros morais. 

P.S: enquanto os créditos iam descendo a tela eu me peguei pensando: os fãs do recente longa Deus não está morto vão gostar disso aqui! Tirem a prova dos nove, quem quiser.