sábado, 29 de maio de 2021

O que é que a baiana tinha?


Mais de seis décadas se passaram e o mito em torno da atriz e cantora Carmen Miranda persiste até hoje. Mais: tenho a sensação de que ele se torna maior a cada ano que passa, por conta dos novos fãs da sétima arte que vão surgindo de tempos em tempos, todos fascinados pela figura da pequena notável e tudo o que ela realizou ao longo da carreira. 

Esta semana assisti um filme no Canal Brasil - meu eterno parceiro das noites insones, sempre com opções que caem como uma luva para preencher o meu vazio existencial - chamado Tragam-me a cabeça de Carmen M., da dupla de diretores Felipe Bragança e Catarina Wallenstein (atriz portuguesa que também interpreta a protagonista) e me peguei pensando na figura da Brazilian Bombshell, cujo símbolo até hoje paira sobre nós, seja de forma positiva ou negativa. 

No longa uma atriz internacional almeja interpretar Carmen num filme e vêm ao RJ para a construção da personagem, mas se depara com as dificuldades óbvias para encontrar uma voz própria que ecoe na atriz e cantora e também precisa lidar com um Brasil dilacerado pela hipocrisia e o desleixo. Passei toda a trama me perguntando o que Carmen teria achado da película. Honestamente... Acredito que ela teria gostado e muito!

Carmen não era baiana, como diz o título deste mísero artigo ou a canção "o que é que a baiana tem?", mas certamente fez muitas delas dançarem diante de sua voz potente. Nascida no norte de Portugal, escolheu o Brasil como sua pátria e por aqui fez carreira e sucesso. Mas foi também, infelizmente, diminuída em certos momentos por aqueles que acreditaram que ela havia voltado americanizada de sua experiência em Nova York e em Hollywood. Cá entre nós, eles realmente não entenderam foi nada do trabalho dela, isso sim...

Entre os 22 filmes que protagonizou - dos quais destaco aqui logo de cara, para os novatos que não a conhecem, Alô alô carnaval, Banana da terra, Serenata tropical e Uma noite no Rio - e hits inesquecíveis como "South american way", "Chica chica boom chic", "Moleque indigesto" e "Bamboleô", Carmen viveu amores, foi explorada por um marido canalha, se iludiu, se encantou e principalmente, alucinou o público. 

Não sabia uma palavra de inglês e seus espectadores no exterior não entendiam patavina do que ela falava, e mesmo assim arrebanhou multidões com a maior facilidade, chegando a ser um dos mais altos salários da época. E ainda assim tem causado muito despeito aqui no país em quem só faz criticá-la a torto e direito gratuitamente. 

Para os mais apaixonados e curiosos de primeira viagem pelo mito que envolve Carmen Miranda recomendo quase que desesperadamente a leitura da biografia Carmen, do escritor Ruy Castro (provavelmente o melhor livro já escrito sobre a diva até hoje no Brasil) e que procurem pelo documentário Carmen Miranda - banana is my business, da diretora Helena Solberg, lançado nos cinemas em 1995 e que também, volta e meia, é reexibido no Canal Brasil. E isso para ter uma visão geral da artista. 

Sim, digo visão geral, pois é difícil, quase impossível, precisar quem ou o que foi Carmen. Acredito que a expressão "força da natureza' caiba bem a alguém como ela, múltipla, camaleônica e antenada a tudo o que se passava ao seu redor.

No filme de Bragança e Wallenstein em determinado momento Carmen é chamada de "a imagem de um lugar impossível" e acredito que o conceito funcione bem ao se referir a ela. Muitos setores de nossa sociedade de quando em quando põem nela a culpa do país não se modernizar, continuar preso à eterna imagem da "mulher com o cesto de frutas na cabeça" e o conceito de que não passamos de uma república de bananas. Já outros veem na musa uma das melhores coisas que nosso país já exportou até hoje. Logo, ela, Carmen, parece presa em meio a esses dois mundos, vagando num lugar etéreo, imaginário, logo impossível, como dito na ficção. 

Entretanto, mesmo com tantas ressalvas e detratores amargos, ela continua sendo um dos nossos maiores ícones de brasilidade no exterior e acredito piamente que isso permanecerá por muitos séculos ainda. Não importa o quanto os demagogos e conservadores queiram rever sua imagem à luz de seus próprios preconceitos, ela sobrevive a tudo isso.  

E enquanto houverem fãs apaixonados dessa rainha dos trópicos sua imagem continuará sendo exibida, reexibida e copiada  inesgotáveis vezes. Que assim seja.

P.S: no youtube, a eterna bíblia do caos pós-moderna, você encontra vários filmes de Carmen Miranda completos e dublados. Dá um pulinho lá, vai! Vocês vão se surpreender. 


terça-feira, 25 de maio de 2021

O Shangri-lá brasileiro


O que eu posso dizer sobre esse lugar atualmente? Que nos últimos tempos toda vez que me deparo com uma notícia no jornal sobre ele  só tenho ouvido que ou "ele vai fechar a qualquer momento por falta de verbas para mantê-lo funcionando" ou "irá reabrir no próximo mês ou bimestre ou trimestre ou no segundo semestre etc e tal". E nunca reabre. E é dessa maneira que tratam a arte e a cultura nesse país desde que ele foi descoberto pelos portugueses cinco séculos atrás. Sim, eu sei... É triste. 

Mas ainda assim tenho esperança. Pois, no final das contas, é disso que vive a arte e a cultura nacional. 

Digo mais: certa vez vi uma frase magnífica num livro sobre artes visuais. Nele, o autor dizia que a arte "é um lugar mítico, imaginário, que nem todos os seres humanos são capazes de enxergar com exatidão. E muitos ainda por cima desdenham desse lugar, acreditando ser ele mera ilusão de ótica ou invenção de desmiolados ou oportunistas". 

E por que citei essa passagem? Porque vejo muito disso em Inhotim. Todas as vezes que vi uma foto deste que é considerado o maior museu a céu aberto do mundo penso nesse lugar imaginário, quase irreal. Ou como bem diria o poeta Manuel Bandeira, nesta Pasárgada. Aquele lugar onde eu sou o amigo do rei. Inhotim é isso, o contraponto da ciência exata, de qualquer tipo de exatidão. O lugar da dúvida, da experiência, de se permitir, da tentativa e erro. E ainda assim, é magistral. 

É preciso que eu confesse aqui: nunca estive em Inhotim in loco. Só o conheço pelo site na internet e por tudo o que falam dele na grande mídia de tempos em tempos. E mesmo assim consigo imaginá-lo nos mínimos detalhes. E me encanto toda vez que penso nele ou sobre ele. 

É possível andar por labirintos nunca dantes vistos. Apreciar o inusitado em suas exposições que fogem completamente do padrão do algoritmo (algo tão na moda e imposto pelo mercado hoje em dia). Conheço pessoas que lá estiveram e por lá se perderam. "Aquilo é um mundo à parte, Beto!", me disse uma delas, emocionada. E eu acredito. De olhos fechados. 

O Brasil precisa de mais lugares como Inhotim e de menos pessoas como essas que administram lugares como Inhotim ou de um governo que não dá a mínima para a arte, pois não possui a menor sensibilidade ou tato para reconhecê-la. Nunca precisamos tanto da arte como agora, em tempos pandêmicos onde o desespero e o negacionismo dividem as atenções do público, seja no dia-a-dia frenético das ruas, seja no maquiavelismo latente das redes sociais. E mesmo depois de eu dizer tudo isso ainda vai aparecer gente por aqui me chamando de idiota, babaca ou mandando eu procurar alguma coisa séria para fazer. Coitados! 

A sociedade brasileira não consegue enxergar - que dirá entender - que Inhotim é o Shangri-lá brasileiro, a terra onde não precisamos envelhecer um segundo sequer. James Hilton, autor do livro Horizonte perdido, onde este lugar mítico mostra sua cara, estava certo: certos lugares são eternos, não envelhecem. Não importa o quanto coloquemos defeitos neles. E o principal: são insubstituíveis (e deixo a palavra em negrito de propósito).

O fim de Inhotim - se vier a acontecer, e eu espero, torço sinceramente que não - seria o fim do que a arte tem de melhor. Um lugar livre de amarras e preconceitos onde podemos acreditar no futuro ao invés de empurrar a vida com a barriga em presentes repetitivos, rotineiros e monótonos para depois se transformarem num passado melancólico e sem finalidade. E isso, acredito, nós, os ainda lúcidos deste país que não é nação, como já cantou uma vez o líder do Legião Urbana, Renato Russo, definitivamente não queremos. 

Logo, só podemos esperar o dia seguinte e o que ele trouxer de bom para nós. E já deveríamos, como brasileiros de carteirinha, estar acostumados a isto. Afinal de contas, este país é um eterno "esperar pelo amanhã". Então que chegue logo, que leve essa pandemia e tudo de ruim que nos atravanca há séculos embora. E que Inhotim, como tudo aquilo que ecoa a nossa arte e cultura, sobreviva. 

Se há um lugar por aqui que merece essa honraria, sem sombra de dúvidas é ele.    


sexta-feira, 21 de maio de 2021

Um fruto incomum


Adoro história e tenho uma relação um tanto quanto sarcástica com ela. Embora saiba que, muitas vezes, alguns historiadores não consigam fugir da ideia de que ela seja uma grande fabulação e, portanto, está sujeita as mais diversas, subjetivas e por vezes calhordas interpretações, ainda assim sempre que posso estou debruçado em algum livro sobre o tema. E desde já adianto: gosto dos mais diferentes assuntos. Guerra do Vietnã, Capitanias hereditárias, Inconfidência mineira, Feudalismo, etc etc etc. O céu é o limite quando estou dentro desse universo. 

Contudo, é preciso dizer aqui que a história, a maneira como ela é contada muitas vezes, me faz pensar que ela (e nesse caso, leia-se: o sistema, as autoridades, etc) gosta de perseguir àqueles que não se adequam ao padrão imposto por um regime determinado. Todos aqueles que não obedeceram as regras do jogo, que não abaixaram a cabeça para os "donos do poder", de alguma forma pagaram um preço alto por isso. Veja o caso, por exemplo, da cantora Billie Holiday. 

Em 1937 uma lei que revogava o linchamento que era imposto à comunidade negra norte-americana não passou no Senado e a cantora decidiu fazer de uma canção, "Strange fruit", um manifesto contra a injusta decisão. Os críticos musicais da época rotularam a canção dela de "uma interpretação lírica sobre a violência que era cometida contra o povo negro". Resultado: o governo federal se incomodou. Mais do que isso: era preciso tirar aquela mulher de circulação o quanto antes. 

E para isso, o FBI, na figura do diretor Harry Anslinger, decidiu perseguir a artista por conta de seu vício de longa data em heroína. Pior: escondeu essa perseguição sob a falsa alcunha de que se tratava do combate às drogas e ao narcotráfico que assolava o país. Entretanto, muitas pessoas brancas também viciadas não sofreram a mesma compulsiva investigação. Teria, então, não passado tudo isso de racismo disfarçado? 

Para esmiuçar questões como essa e tantas outras, mais de sete décadas depois o diretor Lee Daniels - do extraordinário Preciosa -  realiza o excelente Estados Unidos vs. Billie Holiday e se debruça sobre um país que em nada difere do atual Estados Unidos da América da era Trump. Na verdade, ele só era naquele período mais cínico. 

Billie Holiday (interpretada pela cantora Andra Day), à parte o fato de ter sido uma das maiores cantoras da história dos EUA, comeu o pão que o diabo amassou desde a infância e sabe como poucas o real significado da palavra sofrimento. E não bastasse isso viu sua vida ser devassada e rotulada nos mais perversos níveis por ditos "homens da lei" que não passam de figuras preconceituosas ao extremo. Anslinger (vivido por Garrett Hedlund), que no fim da vida chegou a ser homenageado pelo presidente Kennedy por "bons serviços prestados ao país", de tão covarde se presta a ter um bode expiatório na figura de um agente negro em ascensão, o jovem Jimmy Fletcher (Trevante Rhodes). Tudo para que, no futuro, não seja lembrado como racista e que digam que ele também deu oportunidades de crescimento à pessoas da etnia. 

Parece cruel e é. Billie é presa, sofre maus tratos, tiram-lhe sua licença para trabalhar, é obrigada a se apresentar ilegalmente e se não fosse suficiente o inferno astral pelo qual passou, ainda por cima fez escolhas de vida terríveis, como o péssimo gosto que sempre teve para homens violentos e que só fizeram lhe explorar. Sim, ela muitas vezes foi a própria responsável pela tragédia pessoal que viveu. 

Como pano de fundo para realçar a história de provações e injúrias cometidas uma direção de arte impecável, a trilha sonora espetacular (cabe aqui um aparte: embora Andra Day seja uma cantora interessantíssima, aqui ela é dublada por Billie e achei a escolha do diretor acertadíssima, pois a musa do jazz é realmente insuperável) e um clima de nostalgia que sempre me aprisiona de cara. Como disse no parágrafo de abertura: adoro história e o passado sempre mexe comigo de alguma forma. 

Assim como sua canção polêmica, motivo de todo o revés que sofreu, Billie também era um fruto estranho, incomum, pois não se submetia aos ditames do que a América considera correto, polido, de bom tom. Durante uma entrevista que ela concede o jornalista lhe pergunta: "por que você simplesmente não acata as decisões do governo? Até quando vai aturar todo esse sofrimento?". Porém, trata-se de um homem branco. E isso diz muito sobre o país no qual ela vive. Pessoas como ela não podem ter opiniões ou fazer escolhas próprias. Precisam, isso sim, ser marionetes de uma estrutura tendenciosa, fabricada para colocar toda uma classe no seu devido lugar. 

Ao final da projeção fico me perguntando o que faltou para Estados Unidos vs. Billie Holiday entrar na lista de indicados ao Oscar desse ano. Era, pelo menos para mim, evidente ser uma produção bem melhor do que ao menos dois dos oito indicados. Deve ter faltado lobby para tanto. Mas enfim... Quem perdeu com isso foi a própria Academia de artes e ciências cinematográficas que realiza o evento.

E quem como eu é fascinado pela história, pelo ontem e pelas eternas distorções que o mundo promove de tempos em tempos, tem aqui um prato cheio para refletir nessa época de tanta alienação e falta de caráter. 

P.S (eu quase deixei de fora, mas minha língua coçou): se puderem, conheçam toda a cinematografia do diretor Lee Daniels. É das melhores coisas que apareceram em hollywood nos últimos anos. 


segunda-feira, 17 de maio de 2021

Homo solitarius


Em tempos como esses em que vivemos, entre negacionistas e isolados por um pandemia que não mostra sinais de acabar tão cedo, me vêm à mente o quanto viver sozinho pode ser uma saga hercúlea. Não somente isso: a solidão vem se mostrando um estilo de vida para muitos, pois grande parte da sociedade não parece mais disposta a aturar os demais por tanto tempo assim. Eles preferem viver "consigo mesmos" do que aturar discursos de ódio, boicotadores e gente que se acha ao extremo.  

E esta semana, ao assistir online a peça O astronauta, escrita por Eduardo Nunes e dirigida por José Luiz Jr., eu parei para pensar também naqueles que escolheram como vida profissional uma vida solitária. 

Em O astronauta o ator Eriberto Leão vive o protagonista que é escolhido para realizar uma viagem espacial rumo à Marte. Mas não uma viagem espacial como aquela que Neil Armstrong fez rumo à lua 50 anos atrás. O mundo mudou muito desde então e tudo agora é sinônimo de show business. A transmissão dessa viagem ímpar é transformada numa peça de marketing por um serviço de streaming, e almeja a audiência de milhões de pessoas ao redor do mundo. 

E a princípio tudo vai bem. O astronauta se comunica através de um sistema de vídeo com seus entes queridos, a namorada (Natascha Falcão) e o pai (Jaime Leibovitch), bem como o comandante da missão (Zé Carlos Machado). E a única pessoa que convive diretamente com ele 24 horas por dia é o sistema operacional da nave, Hall (Voz de Luana Martau), inspirado no vilão Hal-9000 do antológico filme de Stanley Kubrick, 2001: uma odisseia no espaço. Durante a missão ele se exercita, houve música, se alimenta e aguarda ansioso a chegada ao planeta vermelho. 

Porém, como eu bem disse antes, trata-se de uma vida solitária e com o passar dos dias, semanas, meses, a rotina estressante e vazia vai ditando o tom do discurso e da personalidade deste astronauta. Surgem as primeiras lembranças do passado, a morte da mãe, o sonho de rodar o espaço sideral desde criança, o que teve de abrir mão para realizar esse sonho, etc. O desinteresse do público por continuar acompanhando a missão se perde, o contato com o planeta terra torna-se cada vez mais distante, até que simplesmente deixa de existir, e a esse homem cheio de dúvidas e rancores só sobra o niilismo.  

E fica então a pergunta aos espectadores: como lidar com uma experiência de isolamento tão extremo? Eu, honestamente, não saberia responder a tal questão de forma precisa (e olha que eu adoro os meus momentos de solidão para escrever, hein!).

Como contraponto a modorra vivida pelo protagonista cabe um elogio à produção que realizou um trabalho interessantíssimo no palco do Teatro Firjan, no Sesi Centro (onde a peça foi gravada). As inserções digitais e videografismos, obra da dupla de irmãos Rico e Renato Vilarouca e de Luciana Damato, compõem bem o cenário sci-fi que o espetáculo pede. E para completar o clima inebriante cabe aqui também um elogio meu à Ricco Viana, responsável pela direção musical. 

Passados 80 minutos de exibição - que não me deixaram entediados em nenhum momento; pelo contrário - chego à conclusão de que os criadores da peça me apresentaram uma espécie de mal-estar da civilização (Obrigado, Freud, pela referência!) versão século XXI. Eles unem os excessos da tecnologia, muitas vezes a serviço do que existe de mais artificial ou medíocre, à cultura da vaidade vigente no mundo contemporâneo e nos entregam um ser humano esfacelado, perdido, procurando por respostas que a priori parecem não existir. 

Em outras palavras: o homem, ao longo da história mundial, foi do homo erectus ao homo sapiens e agora se depara de forma feroz com sua versão homo solitarius. E acreditem: ele nunca esteve tão sozinho como nesse novo século que mal completou duas décadas e ainda tem muito a mostrar.  

E o pior de tudo: às vezes não parece sequer interessado em procurar um novo caminho, tão acostumado que está ao desalento e à sensação de nonsense que paira no mundo... 

P.S: você, que adora ler livros de auto ajuda, é positivista em demasia e não consegue encarar a realidade de frente, aviso de antemão: essa peça NÃO é para você. Caso contrário, recomendo a montagem. Achei a cara desse momento turbulento que nós estamos vivendo.  


quinta-feira, 13 de maio de 2021

A cloaca do universo


Quando eu era mais novo tinha uma enorme dificuldade de entender Deus. Cheguei a tratá-lo como uma reles invenção humana. Com o passar dos anos e a chegada da adolescência entendi, enfim, que o problema de fato não era o criador e sim a própria humanidade, com sua eterna mania de distorcê-lo e transformá-lo numa coisa que em essência Ele nunca foi. Hoje posso dizer com enorme tranquilidade e também pesar que pioramos - e muito! - nesse quesito. 

A sociedade brasileira nunca esteve tão enfadonha, arcaica e principalmente raivosa. Passeio pelas ruas e vejo a virulência e a antipatia com que se trata o discurso religioso nos dias de hoje. Odeia-se simplesmente pelo fato de não comungarmos da mesma fé ou "acreditarmos no mesmo Deus" que os outros (e isso por si só, a alienação ideológica do "meu Deus", "seu Deus", etc, já é uma contradição em termos e em nada acrescenta em nossas vidas).  

E eis que me deparo com A idade de terra, último longa-metragem do cineasta Glauber Rocha, realizado em 1980, junto a um sem número de filmes nacionais disponibilizados no Now, serviço de video on demand da operadora ClaroNet. E ele fala exatamente disso bem antes do surgimento de qualquer rivalidade motivada por polarização política (como vemos nesse conturbado século XXI). 

A idade da terra surge da ideia de Glauber homenagear o também cineasta Pier Paolo Pasolini, recentemente assassinado. Em monólogo proferido pelo próprio diretor no longa ele diz que "sempre teve vontade de realizar um filme sobre a vida de Cristo num país do terceiro mundo". E aqui ele tem finalmente a chance. Se conseguiu ou não, somente os cinéfilos e fãs de sua obra poderão dizer. 

Glauber nos apresenta diferentes versões de Jesus: o Cristo negro (Antônio Pitanga), praticamente um Ogum encarnado; o Cristo índio (Jece Valadão); o Cristo militar (Tarcísio Meira), uma mescla de profeta e ditador, porém muito bem construída e o Cristo revolucionário (Geraldo del Rey), de pistola na mão e tudo. E a intenção de todos eles é combater o industrial Brahms (Maurício do Valle), cuja única crença é na salvação do mundo através do poder e das instituições, logo um devoto ferrenho do capitalismo. 

Corrupção política. poluição dos mares, a eterna condição de subjugado da classe trabalhadora, críticas à chamada "revolução de 1964", a falta de fé de grande parte da população em dias melhores por vir... O longa de Glauber, mesmo passados 42 anos de sua estreia, tem todos os elementos necessários para ser odiado pela atual sociedade brasileira, que pede a volta de um passado que ela própria não conhece ou entende e ainda por cima o transforma num grande oásis de plenitude. Logo, não discute absolutamente nada de forma crítica, pois prefere a crença no ilusório e num suposto discurso do "antigamente era muito melhor".

Em determinado momento da história o Cristo militar se refere ao que os brasileiros daquela época estavam vivendo como a cloaca do universo. E o Brasil ainda é exatamente isso. Um país cujo povo não conhece o próprio idioma, a própria cultura, não possui uma identidade nacional, acha que tudo o que é importado é infinitamente melhor do que o feito aqui, não sabe sequer cantar o próprio hino nacional e ainda assim se diz patriota de carteirinha. Tristes tempos vivíamos e ainda vivemos! 

Muitos verão A idade da terra apenas como um conjunto de colagens anárquicas, denunciatórias e desesperadas. E o filme, de fato, é confuso, não cronológico, e por vezes perturbador. Seus personagens, mais do que falar, berram. Seus monólogos são vômitos irracionais acerca de um país que simplesmente se recusa a dar certo. Contudo, trata-se da República Federativa do Brasil e nós, os ainda lúcidos sobreviventes dessa nação controversa, sabemos o quanto não poderia ser esta história contada de outra forma. 

Ao final do longa vemos um grupo de cidadãos brasileiros seguindo uma procissão religiosa. Eles acompanham um imagem sacra pelas ruas. Pelos trajes que vestem, percebe-se claramente que pertencem a classe menos favorecida do país. Quando veem a câmera de Glauber param, fazem pose, se exibem, sorriem. Naquele exato momento a liturgia perdeu completamente o seu sentido original. Virou objeto secundário diante de um traço cultural nosso: a eterna mania dos menos afortunados em buscar a fama a qualquer preço, onde quer que seja. 

E me pergunto neste exato momento: ainda é possível acreditar num país como esse, onde os que trabalham para manter o país de pé não veem sua existência de forma séria ou equilibrada? Ou será que já passou da hora de admitirmos de uma vez por todas que é tarde demais e nossa população simplesmente não aprendeu nada com seus próprios erros? Para mim, esse é o grande legado desse filme. 

E ainda assim vai ter gente que não entenderá uma vírgula sequer dele e tentará transformá-lo numa peça antipatriótica ou em "inimigo público número 1 do país". 


domingo, 9 de maio de 2021

Para entender uma mulher de fibra


Nunca se sabe de que maneira nos depararemos com grandes ideias ou autores. Às vezes eles entram em nossa vida da maneira mais inusitada possível. Aconteceu comigo essa semana.

A primeira vez que eu ouvi falar da escritora, cantora e roteirista Maya Angelou foi mais ou menos uns dois anos atrás, por conta de uma citação que a atriz vencedora do Oscar Viola Davis fez a respeito dela numa cerimônia ou do Critics Choice Awards ou do SAG Awards (confesso que não me lembro ao certo em qual dos dois eventos foi) e a impressão que eu tive foi de se tratar de uma mulher guerreira, que não levava desaforo para casa. Mais do que isso: suas palavras denotavam um sentimento de sobrevivência constante e de enfrentamento diante de um mundo opressor. 

Daquele dia em diante decidi procurar por sua obra com afinco. E a princípio não foi nada fácil encontrar os livros dela. Cheguei a ver um de seus títulos escapar por entre meus dedos por coisa de uns 10 segundos. Uma senhora de  seus 60 anos chegara no último exemplar disponível na Livraria Cultura do centro da cidade aqui no RJ - hoje já fechada - antes de mim. E eu fiquei semanas me perguntando porque eu não entrara antes na loja. Enfim... Eu perdera aquela disputa, mas não a próxima. 

E digo isso por um motivo engraçado: toda vez que eu quero muito ler um autor ou autora a vida parece conspirar para que eu tenha acesso a ele (ou ela). E não é que dois anos depois me deparo com seu exemplar Carta à minha filha dando sopa no site Le Livros? Bom para mim que tive uma das experiências de leitura mais agradáveis deste 2021 até agora. 

Carta à minha filha é composto de um conjunto de textos curtos, mas que nem por isso deixam de possuir uma profunda força narrativa. Falam de saudade, abandono, segurança, esperança, preconceito, autodescoberta e muito mais. E não somente isso: eles reforçam uma ideia que já havia sido defendida tempos atrás pela apresentadora e atriz - também ganhadora do Oscar - Oprah Winfrey. A de que "Maya Angelou era o que escrevia. Ela entendia que compartilhar sua verdade a conectava às maiores verdades humanas (...) é a percepção de quem você realmente é e a liberação que o amor traz". E nisso ela sempre esteve coberta de razão. 

Ela começa o livro falando da casa e de como estamos seguros dentro dela. Digo mais: talvez ela, a casa, ainda seja nosso último refúgio sensato diante desse mundo louco, esquizofrênico e perturbador em que vivemos. Logo a seguir, proclama que a maioria das pessoas não cresce. E levando-se em consideração o que tem se tornado a humanidade nos últimos anos torna-se impossível desmenti-la. 

Maya fala de tudo um pouco: da filantropia (ou a arte de doar um pouco ao próximo), da grande frustração que foi a perda da sua virgindade, do nascimento do filho, de espancamento que sofreu, das eternas mentiras sociais que regem o mundo,  do estupro como ato de violência, da maneira equivocada com que a sociedade trata temas como obesidade e vulgaridade, da incomunicabilidade que vem nos destruindo nas últimas décadas, de benções, de seu eterno fanatismo pela cantora cubana Celia Cruz, da dificuldade em lidar com produtores de cinema, de grandes figuras afro-americanas (muitas vezes esquecidas pelo seu país), de amigos queridos que já partiram, da vida de professora universitária, da experiência como mediadora de conflitos e mesmo do futuro, que parece um tanto turbulento à primeira vista. 

Além disso a escritora inclui no volume alguns poemas seus poderosíssimos sobre sobrevivência e termina a obra falando sobre Deus e, principalmente, "manter a fé" em tempos sombrios como os atuais. 

Há, inclusive, um texto em específico, de nome "Poesia", que já valeu pelo livro todo. Só pela possibilidade de conhecer poetas negros extraordinários, de quem nunca ouvira falar antes por culpa de um mercado editorial que só se interessa que a maioria dos leitores olhem, ao mesmo tempo, para a mesma direção e os mesmos estereótipos consagrados, não permitindo que enxerguemos além da bolha (ou do algoritmo, como anda bem na moda atualmente). Recomendo a quem procurar o volume que comece por este texto. Aliás, a obra não exige uma leitura cronológica. É possível passear pelas páginas seguindo seus próprios interesses. 

Ao final da leitura, percebo que me deparei com o perfil de uma mulher de fibra, que não se abateu diante de todas as porradas que levou da vida nem das adversidades que sofreu e entregou de forma precisa a sua interpretação coesa sobre o mundo ao qual (sobre)vivemos. E sua literatura é de uma lucidez assustadora, talvez até mais hoje do que na época em que foi concebida. E isso, meus caros leitores, é para poucos. Bem poucos. 

E como bem diz a colaboradora do ator Lázaro Ramos no programa Espelho do Canal Brasil, Fernanda Felisberto: "Gostou do livro? Quer saber mais sobre ele?". Então vai à luta e entre na primeira livraria que você encontrar. Até porque não me parece ser o tipo de livro que fica dando pinta muito tempo nas prateleiras, não! E quem avisa, amigo é. 


quarta-feira, 5 de maio de 2021

Ele era uma peça


Honestamente... Eu nem sei por onde começar. A tv noticiou e ainda assim eu não consigo acreditar. Diz que é trote, diz.

Ele fez tanta gente rir com a maior facilidade e por isso é tão difícil falar dele agora, neste momento de luto. E mesmo assim é preciso fazer um esforço supremo, pois a notícia infelizmente é essa: Paulo Gustavo nos deixou ontem, mais uma vítima do Covid-19 que já levou à óbito mais de 411 mil pessoas no país. 

E a pergunta que se faz a seguir não poderia ser outra: como seguir adiante depois de uma notícia como essa? Se logo ele, humor puro, sucumbiu de forma aterradora, o que será de nós, em meio a tanto negacionismo, covardia e prepotência? 

Mas como ele próprio disse em sua participação no Especial de fim de ano do 220 volts na Rede Globo: é preciso seguir em frente e continuar acreditando no afeto. 

A primeira vez que eu ouvi falar de Paulo e da peça teatral Minha mãe é uma peça, que ele escreveu inspirado em sua própria mãe, Déa Lúcia, eu pensei comigo: "é mais do mesmo; não vai dar em nada". E eu estava redondamente enganado. Sua Dona Hermínia virou meio que a mãe do Brasil, por suas sacadas geniais e sarcasmo latente. O espetáculo não só foi o maior sucesso como migrou para as telas de cinema, virando um blockbuster avassalador. 

E aquele garoto que já havia mostrado a que veio em outro espetáculo, Surto, ao lado do também humorista Fábio Porchat, fincava seu nome na calçada da fama tupiniquim!

Impossível não gargalhar com Paulo. Seu deboche e estilo eram únicos, suas tiradas dignas dos maiores. E o principal: era de uma ousadia extrema. Admiro o homem que, em pleno momento que o país vive, com o aumento visível da homofobia e os assassinatos aos gays, deu a cara a tapa e se assumiu de forma franca, sem rodeios ou receios. Paulo era homem com H nesse sentido. Muito mais do que muitos héteros de butique que andam dando pinta por aí atualmente. 

O humorista levou sua querida cidade, Niterói, para os holofotes. E com todo o orgulho. Gostava de uma galhofa como ninguém e sempre que podia aprontava uma surpresa para os amigos, que eram muitos. Que o diga as inúmeras homenagens de quem trabalhou e conviveu com ele nas redes sociais! 

Falei de Dona Hermínia, sua principal criação, mas ela só não explica quem foi o artista. Paulo também foi o Valdomiro Lacerda do Vai que cola; o Aníbal, parceiro de Mônica Martelli em Os homens são de Marte e é pra lá que eu vou e Minha vida em Marte; o cara que sabia imitar a Beyoncé como ninguém (e até ela homenageou o cara, pra vocês verem a moral!); aprontou com Lília Cabral em O divã; foi Lobisomem no Sítio do pica-pau amarelo e até na série de tv A diarista deu as caras... E ele ainda podia ter sido tanta coisa. Ah se podia!

Pergunto-me nesse momento, enquanto termino o parágrafo e me lembro das feições de Paulo: para onde a vida leva os melhores e por que eles precisam, muitas vezes, partir tão cedo? E não obtenho nenhuma resposta.

Minha prima escreveu em sua timeline no facebook que Paulo Gustavo é daquelas pessoas que você nunca imagina que irá morrer um dia. E ela está coberta de razão. Eu não acredito que ele se foi, no auge da carreira e do sucesso. E ainda mais da forma como foi, após 52 dias lutando contra o vírus. Eu poderia me limitar a dizer "uma pena", mas acho pouco. Essa frase não explica ou justifica o que eu estou sentindo no dia de hoje. 

Todos os meus sentimentos à mãe, ao marido e aos filhos de Paulo. E tenham certeza de que, onde quer que ele esteja, ele está fazendo alguém rir neste exato momento. Daquele jeito que só ele sabia fazer.  

Paulo, fica com Deus. E toda felicidade do mundo pra você. VOCÊ era uma peça!


segunda-feira, 3 de maio de 2021

A terra da consequência


A América (ou simplesmente Estados Unidos), embora se venda para o resto do mundo como "a grande nação", sempre encontra uma maneira de fugir da discussão ou criar um atalho toda vez que sua história sai dos trilhos. Ela simplesmente não gosta de contar para os outros suas histórias tristes, decepções e desvios de percurso. Que o diga o dos tempos que sucedem a queda da Bolsa de Nova York em 1929, popularmente conhecidos como depressão americana!

Contudo, gostem nossos brothers americanos ou não, é preciso que conheçamos também esse outro lado da história do país. Ou seja: faz-se necessário que vislumbremos um versão do Tio Sam que não a de glórias e conquistas extraordinárias. E por incrível que pareça Dreamland, filme do diretor Miles Joris-Peyrafitte, que eu estou querendo assistir já há algum tempo e só agora consegui, me fez pensar exatamente nisso. 

Acompanhamos a trajetória de Eugene Evans (Finn Cole), que desde criança é testemunha da dificuldade pela qual seus pais passam para sobreviver no Texas em crise financeira. Aquilo que a natureza, com suas tempestades de deserto, não destruiu os bancos fizeram o favor de tomar. A mera palavra sobrevivência ganha uma nova conotação num lugar como esse, em que simplesmente colocar comida na mesa já é uma enorme façanha. Nem mesmo seu pai biológico aguentou o rojão e preferiu ir embora, deixando a esposa e o filho para trás. 

Por isso, qualquer trabalho ou missão que consiga levar o tempo das vacas magras para longe é visto com bons olhos. E nesse exato momento a melhor oportunidade em voga é a recompensa para capturar a ladra de bancos Allison Wells (Margot Robbie), que se encontra foragida. E a princípio é exatamente isso que o garoto faz, acompanhado do amigo, em meio a uma multidão de desesperados como ele. Tudo para salvar a fazenda da família. 

Quando descobre que a fugitiva está escondida em seu celeiro ele prefere desacreditar da versão vendida pela polícia e os tabloides sensacionalistas (no caso, a de que ela seja uma assassina fria e calculista, chegando a tirar a vida de uma criança em seu último assalto) e se propõe a ajudá-la a fugir para o México. 

Entretanto, ao longo dessa jornada ele entenderá a duras penas que nem toda verdade é fácil de ser dita como se aparenta. 

E é nesse momento que uma frase dita a ele por Allison durante uma de suas conversas faz todo o sentido para entender a realidade que os EUA passa naquele período: "Eugene, esta aqui é a terra das consequências". E ela está cobertíssima de razão. 

O grande legado proposto pelo longa, que é estiloso e bem produzido, é o fato de percebermos o quanto essa nação que sempre se vendeu como gigantesca e autossuficente para o resto do mundo também, quando precisa, recorre a artimanhas, crimes e a moral dúbia para realizar seus sonhos ou pagar suas dívidas. E nisso ela não difere de nenhum país emergente ou subdesenvolvido. Não mesmo. Ela perpetra atos sórdidos que podem levar a consequências ainda mais terríveis. 

Talvez o único revés do filme surja para aqueles que esperam ansisos que Dreamland seja uma espécie de novo Bonnie & Clyde, cheio de tiroteios e perseguições. Diferentemente do longa dirigido por Arthur Penn, com Warren Beatty e Faye Dunaway na pele da dupla de ladrões, esta produção aqui não tem a mesma pretensão ou pegada. 

Mas não se entristeçam totalmente. Há um interessante estudo de caso sobre o sofrimento humano presente aqui. Basta que os espectadores vejam a película de mente aberta e entendam que "a terra dos homens livres" - como eles bem cantam no seu hino nacional - também já passou por períodos tenebrosos e nem sempre foi essa potência mundial que vemos alardeada pela grande mídia.  

Para completar o pacote da diversão, vale pela beleza apaixonante da Margot Robbie e a interessante reconstrução histórica bem como o design de produção.