quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O ano que não começou


A princípio eu pensei em deixar uma página toda em branco seguida de um post scriptum sacana dizendo "e vocês esperavam o quê de um ano em que nada, absolutamente nada, de bom aconteceu?". Mas depois voltei atrás e me dei conta de que há, sim, muito o que dizer sobre o ano de 2020. O único problema é que não são elogios. Longe disso...

2020 não foi mole, não! Como bem diz o narrador Galvão Bueno em jogos de futebol entre Brasil e Argentina: "é teste pra cardíaco, meu amigo!" Sim, foi exatamente isso. Com pitadas de humor negro, ganância e muita, mas muita mentira. 

Como todo ano 2020 começou sabendo que precisava esperar o carnaval acabar para poder dar as caras. E ele esperou e o carnaval foi lindo, absolutamente lindo. Que o digam os frequentadores do Cordão da bola preta, do Bacalhau do batata, do Galo da madrugada e os que foram conferir os desfiles das escolas de samba no RJ e em SP, isso só para ficar no básico! A festa de Momo correu solta e o brasileiro se esbaldou. E logo a seguir... 

Pois é... O problema é o que deveria acontecer depois do carnaval. Não houve depois. Quem planejou alguma coisa teve de adiar por tempo indeterminado. Para muitos, continua adiado. O comércio fechou, a vida paralisou. Em outras palavras: chegou o Coronavírus e o Brasil bem como o resto do mundo "parou". 

Muitos estranharão o último verbo do último parágrafo em aspas, mas o nosso país é assim mesmo: só para entre aspas. E digo isso porque sempre gostamos de ser um país de moralistas sem noção, negacionistas e ignorantes. E eles fizeram a festa neste ano que, simplesmente, não começou. 

Encontro na internet um texto chamado "a era da mediocridade" e seu título nunca combinou tão bem com o que vivemos nesse Brasil de 2020. As fakes news e os memes viraram padrão, norma de conduta. Os que preferiram dizer que a pandemia era uma reles invenção para aprisionar as pessoas, tocaram o terror, agrediram, festejaram clandestinamente e abertamente até dizer chegar. A humanidade continuou sua escalada infame rumo à ignorância total. 

Aliás, falei em clandestinidade. Foi uma palavra muito em voga esse ano. Festas e eventos ilegais para todos os lados. Nem mesmo o governo federal quis oferecer números oficiais sobre a trajetória da doença. Hospitais de campanha levando uma eternidade para ficar prontos e depois serem abandonados. Os responsáveis pela gestão da cidade maravilhosa, ambos bons cristãos (palavra deles!), caíram. Um deles, preso em casa às vésperas do natal. O que fizeram para merecer isto? Honestamente... Quem é carioca de verdade, sabe, oh se sabe! 

A corrida pela vacina (é Pfizer, é Astrazeneca, é Sputnik V, é Coronavac, decidam pelo amor de Deus!), a falácia acerca da Hidrocloroquina, Donald Trump mandando seus eleitores beberem detergente, "é só uma gripezinha!", "vamos tocar a vida!", e estamos perto de 200 mil mortos. Até o videogame que virou franquia cinematográfica Resident Evil é pinto perto do que 2020 mostrou para nós. 

Isolamento social, lockdown, auxílio emergencial, máscara, álcool em gel, mercados saqueados, Amazônia pegando fogo, Amapá sem energia elétrica e refém do caos, George Floyd morto de forma bárbara nos EUA e protesto por parte da comunidade negra, ruas infestadas de manifestantes em Paris - os chamados coletes amarelos, quebra-pau em tudo quanto é lugar, Trump questionando o resultado das eleições, Joe Biden herda de seu mandato um enorme barril de pólvora e uma nação dividida, o Brexit continua ata e desata e não ata de novo, apologia à tortura... Ufa! Acabou? Que nada. É só um breve resumo da tragédia anacrônica pela qual passamos nesse ano. Que, lembrem-se!, sequer começou. 

Embora muitos prefiram dizer que 2020 é um ano para ser esquecido, enterrado, eu prefiro acreditar que foi um ano para nos repensarmos como seres humanos (algo que, claro, muitos não farão. Pelo contrário...). Tentarmos pelo menos entender o porquê de tanta estapafúrdia, tanto consumismo desmedido, tanta arrogância, tanto desrespeito, tanta vontade, enfim, de sermos melhores do que os outros, como se isso fosse pré-requisito para chegarmos a alguma espécie de nirvana. 

Enfim: estamos enlouquecendo dia a dia e não nos damos conta. E ainda por cima chamamos isso de natural. Vejo o ano de 2020 como um grande hiato, necessário para recomeçarmos, baseados em outros conceitos, mais humanos, sem tanto ostentacionismo e controvérsia. Resta saber se a humanidade vai cair na real ou continuar idolatrando a mesmice cotidiana enfadonha, calcada em likes, selfies e poses ridículas.

Agora chega, que de desgraça eu ando cheio. E chega logo 2021, por favor! Que eu já estou de saco cheio de tanta notícia ruim.  


domingo, 27 de dezembro de 2020

Fábula contemporânea


Contos de fadas e fábulas sempre me entediaram, desde moleque, por conta de seu formato repetitivo, refém de premissas que eu considerava óbvias, cansativas. E muito por causa disso naquela época - refiro-me aos meus 10, 11, 12 anos - eu escolhi as tirinhas de jornal e os comics. Eles possuíam o nível de sarcasmo e deboche que eu procurava já naquele tempo. O resultado disso: tornei-me um leitor de outsiders, de autores fora do padrão, do corriqueiro. 

Contudo, o cinema anos mais tarde me fez acreditar que era possível encontrar artistas que transformassem esse tipo de linguagem monótona (pelo menos para mim) em algo mais palatável aos meus interesses, digamos, excêntricos. E um deles que se mostrou logo de cara foi o diretor Walter Hill. Quando assisti The Warriors - os selvagens da noite numa madrugada fria no início dos anos 1990 eu simplesmente alucinei. Era provocador, reacionário e corajoso em demasia. E eu pensei comigo: esse cara entende do metiê. 

Mas eu não vim aqui para falar de The Warriors (crítica que, aliás, estou devendo aos meus leitores) e sim de Ruas de fogo, de 1984. Para mim um conto de fadas para adultos, sem toda a baboseira que acompanhava o gênero desde que o mundo é mundo. 

Acompanhamos o sequestro da jovem estrela do rock Ellen Aim (Diane Lane) pelas mãos da gangue de Raven (Willem Dafoe) durante um dos seus concertos e não há como não pensar na princesa sendo capturada por seu algoz, que certamente - se aqui fosse um livro - teria inveja de sua beleza ou do fato dela não amá-lo. E o único capaz de resgatá-la, para uma de suas fãs e irmã do herói, é o rebelde Tom Cady (Michael Paré), ex-namorado de Ellen e também ex-militar. Entretanto, ele não é um príncipe que se encaixe no estereótipo do que estamos acostumados a ver nesse segmento. 

Pelo contrário. Tom não leva desaforo pra casa, não se esconde atrás de discursos bonitos e chega a aceitar dinheiro para resgatar a moça. Ousado, eu sei... Mas como eu disse antes: é uma mudança no formato. Trata-se de um fábula contemporânea. Algo, por sinal, que consta logo no início dos créditos ("uma fábula rock n' roll"). 

Dito isto, esqueçam dragões cuspidores de fogo, casas de doces, espelhos mágicos e toda essa bobajada. O que encontraremos aqui é muito som alto, tiroteiro, pancadaria pra dar e vender, uma ajudante do príncipe meio lésbica e veterana de guerra e um produtor, Billy Fish (o atualmente sumido Rick Moranis), completamente almofadinha e viciado em sucesso. 

Querem mais? Então vão ter que ver (ou rever) esse clássico oitentista!

Dois destaques que eu não posso deixar de mencionar do longa: as caracterizações (figurinos e cenários escolhidos) e, claro, a música - sob a alcunha do mestre eterno Ry Cooder. Espera, espera... Um confissão inevitável: ouvir de novo "I can dream about you", de Dan Hartman, depois de tantos anos, é não somente um bálsamo para os ouvidos como já vale por metade do filme. 

É verdade que o roteiro, escrito a quatro mãos por Hill e Larry Gross, é bobinho toda vida se levarmos em consideração o que hollywood era capaz de fazer naquela época (que o diga o de Laços de ternura, vencedor do Oscar de melhor filme, diretor e roteiro adaptado naquele ano!). Mas ao mesmo tempo ele não era para ser, de fato, o grande centro das atenções. Em outras palavras: o público daquela época direcionava seus olhares para outras direções, digamos, mais joviais. 

Ruas de fogo é, em uma palavra simples, estiloso. Isso é que o ele está interessado em vender e, cá entre nós, fez bem. Tanto que eu estou aqui, 36 anos depois, falando dele ainda. Não, meus caros leitores, embora pareça isso não é pouco!

E pensar que hoje em dia filmes para jovens precisam ter, quase que obrigatoriamente, efeitos especiais de última geração e personagens cheios de superpoderes. Pois é... o cinema americano mudou e nem sempre a palavra mudança é um bom sinal. Mas pelo menos eu posso dizer hoje à minha sobrinha que a minha época valeu (e ainda vale) a pena.   


quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Alter ego


Considero - sempre considerei - o escritor Edgar Allan Poe uma das figuras mais fascinantes (e ao mesmo tempo mórbidas) da história da literatura mundial. Não somente por seus escritos precisos, recheados de medo, mistério, tensão, loucura, sofrimento, pânico, delírio e morte, como também por sua vida desregrada, repleta de revezes e marcada por uma profunda dependência ao álcool. Era um gênio, mas um gênio torto, deficitário em alguns momentos, sempre lutando para permanecer de pé. 

E nem por isso deixou de fundar as bases, a estrutura do terror moderno. Não acredito - mesmo! - que o gênero horror pudesse existir da forma como o conhecemos hoje, sem a interferência direta dele. E que me perdoem os puristas, que adoram relegar o gênero a segundo plano, mas Poe transformou a arte de assustar numa obra-prima digna de poucos, pouquíssimos. 

Dito isto, foi delicioso, digo mais: magnífico, ler a graphic novel O gato preto em quadrinhos, projeto da editora Martin Claret, que tem como ilustradores os excelentes Diogo Henrique Oliveira e Hugo Matsubayashi, ambos fãs confessos de Drácula, de Bram Stoker. 

O gato preto, conto antológico de Poe, nos traz a história de um homem complexo, que sempre teve dificuldade de viver em sociedade e por conta disso era alvo de zombaria dos demais desde a infância. Para ele, os verdadeiros amigos do peito eram os animais de estimação. E teve muitos. Porém, nenhum atraiu mais a sua atenção do que um felino de cor negra, que vivia seguindo-o para cima e para baixo, mesmo depois que ele casou. 

Com o passar dos anos o homem desenvolve uma obsessão, torna-se quase uma espécie de alter ego (se por influência direta do convívio com o gato ou não, é assunto para intelectuais e críticos discutirem até hoje), mas um outro eu voltado à violência visceral. E sua violência se volta contra o próprio animal que o seguia. Passados dias de sua brutalidade, sua casa pega fogo e ele perde tudo. Quer dizer: a única coisa que ele não perde é a obsessão pelo animal, que parece amaldiçoá-lo. 

E quando ele encontra uma réplica de seu bicho de estimação num pub e o leva para casa - justo quando ele parecia começar a colocar a cabeça no lugar - os dias de violência regressam com força e ele chega a um extremo nunca antes vivido. E é nesse momento que fica claro para os leitores, pelo menos ficou para mim, que ele não passava de um marionete dentro de sua própria vida. 

No aspecto visual a graphic novel é um show à parte, principalmente no quesito paleta de cores. É soturno e maquiavélico, bem ao estilo do escritor, que era um mestre do sobrenatural. Aliás, saber que se trata de um trabalho feito por artistas nacionais me deixou orgulhoso de nossa produção na nona arte. Não devemos nada a mestres como Alan Moore, Steve Ditko e Carl Banks, entre tantos outros. E se os leitores tupiniquins não dão o devido valor é puro despeito ou o velho "complexo de vira-latas" vigente há séculos no país. 

Diogo Henrique diz no próprio álbum que a trilha sonora que o acompanhou durante toda a confecção do álbum foi Phillip Glass and the Kronos Quartet. Eu ouvi e atesto: é perceptível um pouco desse clima. Se vocês já ouviram alguma trilha sonora de Glass para o cinema vão entender imediatamente o que eu estou dizendo!

Ao final da leitura me pego ainda mais apaixonado do que já era por Poe e seus delírios etílicos e utópicos e vejo no trabalho da equipe (além dos ilustradores há ainda a participação de quatro mulheres talentosíssimas na idealização do projeto: Aline Napoli, Michelle Fernandes, Sara Lisa Freitas e Stephanie Ambrósio) uma grande homenagem a um artista brilhante, mas que acaba muitas vezes sendo lembrado pelos críticos e leitores mais por seu lado dark e irresponsável, o que é uma pena. 

Procurem. A leitura é rápida e de um extremo bom gosto visual. 

P.S: Ah! quase ia esquecendo... Ao final da narrativa gráfica vem o conto original de Edgar Allan Poe na íntegra. Melhor presente do que esse, impossível.


domingo, 20 de dezembro de 2020

O futuro não é realmente o problema


O tempo e essa eterna mania que temos de rotulá-lo, classificá-lo, retê-lo, dar a ele uma dimensão maior do que a suposta. Queremos mudar o tempo que as coisas - e até mesmo os seres humanos - duram. E não podemos. E isso nos entristece. Vejo nisso uma espécie de "complexo de Deus" que vive perseguindo a humanidade desde Adão e Eva. E nada fazemos para corrigir este aspecto, essa mania, essa eterna mania de querermos ser mais do que realmente podemos. 

Esta semana enfim consegui assistir o famigerado Tenet, de Christopher Nolan. O filme escolhido para a reabertura dos cinemas nos EUA pós-pandemia. Infelizmente a Covid-19 insistiu e o longa não conseguiu a projeção que ambicionava, mas deixou em minha mente uma interessante reflexão sobre o tempo e as decisões equivocadas que nós, seres humanos, volta e meia tomamos. 

Após um missão mal sucedida para conter um atentado terrorista durante um concerto, um agente é apagado dos quadros funcionais da organização para a qual trabalha e é dado a ele uma nova missão. Contudo, de concreto mesmo, as únicas coisas que esse homem precisa saber são que ele irá evitar uma terceira guerra mundial e que nada do que ele viu até então permanecerá o mesmo. Suas expectativas pessoais e profissionais serão completamente alteradas nesse novo trabalho. 

Parece simples, não é mesmo? Pois é... O problema é que o diretor é justamente o Christopher Nolan. Então preparem-se para surpresas e reviravoltas. 

Enquanto nos deparamos com uma nova tecnologia capaz de alterar completamente a percepção que temos do tempo, um Oligarca Russo disposto a rebootar o mundo e falsificações de obras de arte, o diretor nos impressiona com extraordinárias cenas de ação (que, honestamente, eu - se fosse vocês - abriria o olho, pois podem ser meras distrações para que não vejamos o real objetivo da história). 

Aliás, o próprio protagonista da história (o interessante ator John David Washington, que já havia chamado a minha atenção no ótimo Infiltrado na Klan, dirigido por Spike Lee) não tem um nome para chamar de seu. É identificado junto ao público exatamente desta forma: como o protagonista. E seus únicos reais "aliados" - é, eu sei... até esta palavra precisa estar entre aspas, pois no mundo que eles vivem, todos podem trair todos a qualquer momento - são Kat (Elizabeth Debicki), esposa chantageada do oligarca Sator (vivido por Kenneth Branagh) e Neil (Robert Pattinson), seu contato na nova organização para a qual trabalha. 

Contudo, mesmo com todas as tentativas do diretor para mostrar ao público espectador as implicâncias de tais atos inescrupulosos para o futuro da humanidade, fiquei a todo momento pensando no quanto o hoje e o que estamos fazendo de errado com o mundo atualmente é colocado em segundo plano, quando não deveria estar nessa posição. 

Vejo nisso, no problema da ganância desenfreada (e esse, para mim, é o real mote do longa-metragem) e a violência gratuita que nos atingiu em cheio nas últimas décadas e que grande parte da humanidade prefere varrer para debaixo do tapete um mal-estar recorrente da nossa civilização. Viramos criaturas melancólicas e repetitivas que adoram adiar os problemas e colocar a culpa no amanhã, no que virá. E ao mesmo tempo não fazemos nada de efetivo para melhorar o hoje. Logo, ele permanece refém das mesmas atrocidades e perigos. E eu me pergunto até quando assim será. 

Acredito piamente que Nolan teria sido mais feliz em seu projeto se direcionasse a discussão para os dias de hoje. O futuro não é realmente o problema. Pelo menos não se continuarmos de braços cruzados ad infinitum. Vivemos numa pandemia e tem gente festejando, se aglomerando, enchendo a cara. Não sabemos se estaremos vivos semana que vem e tem gente planejando as próximas cinco, seis décadas. Honestamente: parece-me uma contradição. E nesse quesito o filme tropeça. 

Mas não fiquem chateados. Há muito a se admirar em Tenet. O aprumo estético e visual que o consagrou junto aos fãs continua lá. Aproveitem. Entretanto, não consigo deixar de pensar que se trata de um filme menor e por vezes vazio dentro de sua filmografia. E isso aconteceu por um mero deslize. Nolan consegue fazer melhor do que isso.

E antes que me apedrejem nos comentários abaixo, paro por aqui. Quero que vocês, leitores, tirem suas próprias conclusões. Mas um aviso para os iniciados na obra do diretor: não acreditem em tudo que vêem e fiquem atentos a cada take. A qualquer momento sua interpretação sobre a trama pode ser desmentida ou reavaliada. 

P.S: lembrei de uma coisa agora, talvez seja viagem minha, mas... Quem assistiu a saga de James Cole em Os 12 macacos, de Terry Gilliam, vai se identificar imediatamente com este filme aqui. Caso não seja o seu caso, peço antecipadamente desculpas. É que às vezes eu devaneio mesmo. 


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O nego dito


É sempre difícil começar a falar sobre um artista que é um gênio nato, embora o próprio público do seu país natal não o reconheça muitas vezes como tal. A ele sempre acompanhou a alcunha de maldito, rótulo que ele sempre negou. Ele sempre se via - e estava absolutamente certo nesse sentido - como um cantor e compositor da música popular brasileira. Entretanto, para se fazer visto e reconhecido precisou andar na contramão da indústria fonográfica. E fez disso o seu grande lobby. 

Itamar Assumpção é desses casos musicais em que ou você se apaixona de vez pela irreverência e o talento do artista ou simplesmente o chama de exótico, excêntrico e o abandona de vez. No meu caso, embora tenha conhecido sua música tardiamente, foi amor à primeira vista. E digo mais: ele é o maior exemplo de "do it yourself" brasileiro que eu conheço. E até hoje não vi mais ninguém fazendo algo que chegasse perto da audácia dele. 

Dito isto, é preciso dizer de antemão para aqueles que lerão esta crítica: faz mais de duas semanas que eu vi a exposição sobre Itamar no MU.ITA - Museu virtual Itamar Assumpção, que estreou no dia da Consciência negra (logo, tudo a ver com o cantor) e mesmo assim adiei a decisão de escrever sobre tudo o que vi, pois acreditava que ainda não era hora, que faltava alguma coisa. E estava certo. Uma semana depois de minha visita virtual o canal Curta! exibe Daquele instante em diante, documentário sobre Itamar dirigido por Rogério Velloso em 2011.

Terminada a sessão eu tive a certeza: "eu sabia, estava mesmo faltando algo; faltava ouvi-lo falar". Pronto. agora vamos as minhas impressões. Contudo, não quero falar demais. Eu quero que aqueles que lerem este texto também conheçam o museu. Mas também não quero ser injusto com o artista e falar pouco. Ele foi, sempre sombra de dúvidas, um pioneiro em muitos sentidos. 

Dos batuques de umbigada à Lira paulistana, do reggae jamaicano a escola de samba Nenê de Vila Matilde, do G.R.U.T.A - grupo de teatro de Arapongas, em Londrina (onde encarnou um Tiradentes negro) à Milton Nascimento... São muitas as influências de Itamar. Ele era múltiplo em essência. E toda vez que eu penso na persona que ele criou no palco - e na vida - a primeira palavra que me vêm à cabeça sobre ele era performático. 

O acervo da exposição, que é gigantesca, conta com fotos, vídeos, jornais, cadernos, anotações, documentos, correspondências, objetos e indumentária. E tudo classificado década a década para não perdermos um detalhe sequer. E por falar em detalhe: há um segmento da mostra chamado Afro brasileiro puro que entrecruza a trajetória do cantor com outras importantes figuras negras políticas e artísticas, como Carolina Maria de Jesus (autora de Quarto de despejo), Panteras negras, Elza Soares, Abdias do Nascimento (criador do Teatro experimental do negro), Bob Marley, Parliament Funkadelic, Gilberto Gil, Racionais MCs, Grace Jones, Spike Lee, etc.

Porém, é inegável que pelo menos 9 de cada 10 visitantes vão querer passear pela música de Itamar. E ela está toda aqui catalogada para deleite dos fãs. Se puderem ouvir as canções enquanto passeia pelas páginas, melhor ainda. Apreciem sem moderação relíquias como os álbuns Às próprias custas S/A (1981), Sampa midnight (1985), Bicho de 7 cabeças - volume I, II e III (1993), Ataulfo Alves por Itamar Assumpção - Pra Sempre Agora (1996) e a cereja do bolo, o extraordinário Beleléu, Leléu, Eu (1980), onde criou seu alter-ego, o alucinado e alucinante nego dito.

Sempre muito bem acompanhado por suas bandas, a Isca de polícia e As orquídeas do brasil (composta exclusivamente por mulheres), Itamar conduziu sua carreira de forma independente - para mim, um de seus maiores legados - e fez de sua obra artística um caleidoscópio músico-visual. 

Ele determinava milimetricamente cada parte do processo criativo: da elaboração das capas dos discos com colagens artesanais aos figurinos inusitados, os óculos escuros, a teatralização no palco, letras complexas, o canto meio falado, cenários inusitados, afrofuturismo... Uau! E muitos até hoje se perguntam "como é que um cara do interior, que trabalhava como entregador de carnês do IPTU, conseguiu fazer tudo isso?". Em poucas palavras: Itamar foi único.

No quesito parcerias teve as mais diversas: os irmãos Arrigo e Paulo Barnabé (com quem viveu numa república e dividiu as atenções na época da Vanguarda Paulistana), Jards Macalé, Tom Zé, Tetê Espíndola, Cássia Eller, os poetas da geração mimeógrafo Alice Ruiz e Paulo Leminsky, Zélia Duncan (que chegou a gravar um álbum só com músicas dele), Elke Maravilha, o percussionista Naná Vasconcelos, Luís Melodia e até a rainha do rock, Rita Lee. E em sua extrema ousadia releu até clássicos da Jovem Guarda, colocando estas composições em outro patamar. 

Assim como São Paulo, cidade pela qual se apaixonou e inseriu em muitas de suas canções, a Alemanha também se rendeu ao talento de Itamar. E ele, inclusive, cogitou a possibilidade de se mudar de vez para lá, pois acreditava que os alemães o entendiam melhor como artista do que em seu próprio país. Honestamente: eu o entendo perfeitamente. 

Somente o Câncer, em 2003, conseguiu impedir Itamar de seguir em frente. Uma pena. Fico imaginando o que ele ainda poderia nos entregar, se estivesse vivo. Mais: imagine um homem e um artista como ele no Brasil de hoje! É... Está fazendo falta. 

Ao fim de mais de duas horas assistindo e lendo um conteúdo inigualável em termos estéticos e também políticos, só tenho a agradecer tanto a Anelis, filha de Itamar, de quem partiu a ideia de tal projeto, e àqueles que fizeram de tudo para que essa nobre iniciativa saísse do papel. Se havia um artista a merecer tal honraria, pela coragem de seguir em frente, nadar contra a maré, essa pessoa era Itamar Assumpção. 

Obs: não bastasse tudo o que vi, ouvi e senti, os organizadores da mostra ainda me deixaram com um gostinho de quero mais. Preciso urgentemente encontrar Cadernos inéditos, que reúne poemas, letras de música e ideias do cantor, publicado em 2013. Será que é uma saga para encontrar?

Quer saber mais? Sim, tem tudo isso que eu meramente esbocei e muito mais em https://www.itamarassumpcao.com/. Agora faz a sua parte e vai lá!


sábado, 12 de dezembro de 2020

Escreva muito, espere pouco


Quando o diretor Orson Welles lançou o clássico Cidadão Kane em 1941 ele não fazia a menor ideia do grande fenômeno que seu filme se tornaria, mas tinha pelo menos uma certeza: a de que haviam lhe prometido o final cut, ou seja, o direito de que a versão final de seu longa seguiria ipsi litteris suas diretrizes, e as de ninguém mais. O problema dessa frase: estamos falando de hollywood e do fato de que nem sempre as coisas saem exatamente do jeito que os artistas querem. 

É muito fácil olhar a obra-prima de Welles pelo prisma de "o maior filme de todos os tempos". E se perguntarmos a, pelo menos, 8 ou 9 de cada dez críticos de cinema eles certamente confirmarão. Contudo, realizar a produção na prática foram outros quinhentos. A história por trás de Cidadão Kane daria um filme por si só e um filme dos bons. Pois bem: o genial David Ficher - mestre por trás de películas extraordinárias como Zodíaco, Clube da luta e Seven - decidiu fazer esse filme com Mank. E conseguiu desenhar de forma precisa a hollywood de antigamente para falar também da hollywood de hoje. 

E para contar essa história rebuscada ele se debruça sobre a alucinada vida do roteirista do filme, Herman Mankiewicz (Gary Oldman, em estado de graça!) e a incrível façanha que ele teve de encarar: escrever o roteiro de Cidadão Kane em míseros 60 dias. Você pode até dizer "mas para esses caras, que escrevem o tempo todo, é moleza!". Pois é... Você não conhece Mank. 

Mank é aquilo que eu costumo chamar de um velho tubarão da indústria cinematográfica. Um homem capaz de entender o sistema com extrema facilidade, jogar com ele se necessário e entregar o que for preciso dentro do prazo estabelecido. Porém, é também um homem que luta constantemente contra seus demônios internos e sua própria extinção. Cada dia é um degrau a ser suplantado em busca de sobrevivência. E eu até poderia dizer aos leitores dessa crítica que seu maior problema é o vício em álcool, mas eu não estaria fazendo jus a complexidade que envolve a rotina desse personagem. 

Do outro lado desta equação turbulenta chamada sétima arte, encontra-se um plêiade de seres irracionais e trapaceiros os mais diversos, mas não menos brilhantes. Vocês sabem tanto quanto eu (e se não sabem, deveriam saber): hollywood sempre esteve repleta de empresários antiéticos, predadores sexuais e cafajestes os mais sofisticados. E sempre foram eles que fizeram da meca do cinema o que ela é. Então, imaginem a situação de Mank tendo que conviver diariamente com homens da laia de Louis B. Mayer, David O. Selznick e, é claro, o magnata das comunicações, William Randolph Hearst. Resultado: uma labuta sem fim rumo ao paraíso (no caso, aos projetos bem sucedidos). 

Esse homem, partido moralmente e fisicamente, isola-se numa casa distante acompanhado da jovem e impulsiva Rita Alexander (Lilly Collins), capaz de escrever cada linha de pensamento que ele porventura tenha apta a ser filmada, e promete escrever um sucesso de bilheteria como nunca houve antes. Tudo que a hollywood, que ainda vive as consequências da chamada grande depressão, precisa e urgentemente. E então? Como você reagiria a toda essa pressão? Honestamente, eu já imagino até a resposta. 

Entre flashbacks que revivem a trajetória de Mankiewicz, diálogos ácidos sobre o presente e o futuro do cinema, brigas recorrentes com os empregados escalados para vigiá-lo e conversas picantes com a bela Marion Davies (Amanda Seyfried), amante de Hearst, Fincher compõe um belíssimo trabalho técnico e narrativo. Tudo no longa remete ao passado com um brilhantismo que, atualmente, somente a Netflix é capaz de nos oferecer. Som, cenários, fotografia, o preto-e-branco escandaloso de tão autêntico... Mank é simplesmente um aula de cinema para aqueles cinéfilos que andavam com saudade da verdadeira sétima arte e cansados de heróis e seus superpoderes. 

E não pensem os espectadores mais incautos que o longa foge de polêmicas. Acredito que a produção, durante toda a temporada de prêmios, dará muito o que falar por seu aspecto controverso. Embora o roteiro de Jack Fincher, pai do diretor, não toque no assunto de forma direta, muitos membros da academia irão levar em consideração o livro Criando Kane, de Pauline Kael, no qual a famosa crítica de cinema detona Orson Welles, dizendo que ele nunca escreveu uma linha do roteiro do filme. Sou capaz de apostar um braço que ainda vai haver muito bate-boca daqui até a entrega do Oscar sobre esse assunto. 

Mas a principal contribuição dada pelo diretor, a meu ver, é a maneira como ele expõe a nu a hollywood dos tempos passados. Um terra de lobos competindo selvagemente e constantemente pelo último pedaço de carne disponível. E mais: é possível entender aqui, com clareza, a indústria do cinema americano que idolatrou figuras como Harvey Weinstein nos últimos anos. Em outras palavras: hollywood gosta de pilantras e eles sabem ser extremamente bem-sucedidos. Difícil mesmo é permanecer ético e coerente dentro de uma estrutura sórdida dessas...  

E como bem disse um amigo de Mank, aconselhando-o durante o processo criativo: "escreva muito, espere pouco". Realmente, não é um lugar para se viver de expectativas, mas sim cumprir agendas. 

P.S: um rápido conselho (ou dica): se puder, antes de ver o filme, assista o clássico de Orson Welles. Acreditem: vai fazer uma diferença gigantesca ao final da experiência!


quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

A dama incógnita


O ano que praticamente não começou chegando ao fim e eu quase me esqueço de falar do centenário da escritora Clarice Lispector. Não, isso definitivamente é inadmissível! Trata-se - pelo menos a meu ver - da maior escritora da história da literatura brasileira. E é preciso encontrar tempo para falar de alguém como Clarice. 

Primeiramente: se for encará-la, debruçar-se sobre suas páginas, venha armado (mas no bom sentido). Ela é grande adversária. Enigmática ao extremo. Muitos homens e mulheres inteligentes titubearam diante de sua prosa. E, no entanto, aqueles leitores mais prematuros, menos confiantes de si, foram os primeiros a morrer de amores por ela. Clarice era assim: não gostava daqueles que faziam questão de entendê-la, classificá-la. Com ela não tinha essa história babaca de "o que o autor quis dizer...". 

Não. Ela precisava ser sentida, seguida - mas sem tanta sisudez ou academismo -, amada. Ela era complexa, mas não por conta de uma dificuldade linguística ou gramatical, e sim por sua paixão ao narrar suas próprias histórias. 

Veio de Tchetchelnik, na Ucrânia, para o Recife com meros dois anos de idade, por conta da guerra civil que assolava a Rússia naquela época. E ainda assim, enfrentou batalhas enriquecedoras por aqui. Aos 14 mudou-se para a cidade maravilhosa e conheceu os livros. Resultado: apaixonou-se de vez. Adorava principalmente aqueles "que tinham títulos bonitos", mas não parou neles, não! Longe disso... 

Informação importantíssima: foi, desde nova, uma enorme fã de Monteiro Lobato. E fico me perguntando o que andam pensando dela, atualmente, os radicais que decidiram rotular Lobato de racista aos quatro ventos. Digo isso porque ser fã do criador do Sítio do pica-pau amarelo no Brasil de hoje dá muito pano para manga. Será que perdoaram pelo menos Clarice?

Como ficcionista ela falou muito de si, das cidades onde viveu, das angústias que passou, com seus narradores sempre na primeira pessoa... Não à toa é uma de nossas maiores representantes da literatura intimista brasileira. Aliás, intimidade é um conceito que condiz muito com ela. 

Quando comecei a lê-la, por volta de 1997, 1998, havia o papo de que sua literatura era um grande fluxo de consciência, mas eu sempre achei primário defini-la dessa forma. Ela era bem mais abrangente do que isso. Tanto que tornou até mesmo uma barata - sua personagem mais exótica, parte do romance A paixão segundo G.H - um estudo de caso interessantíssimo. Sim, Clarice era sempre tema para ser estudada ao final da leitura. 

Mostrou algumas vezes sua predileção por A maçã no escuro, que ela considerava seu livro mais bem construído, mas cá entre nós, é simplesmente impossível falar da autora e não mencionar Perto do coração selvagem, sua primeira obra, de uma extrema maturidade (embora tivesse apenas 20 anos) e A hora da estrela com sua heroína meio que às avessas Macabéa. Eu procurei o livro na época por fazer menção ao bairro de Olaria, na zona da Leopoldina, onde nasci e fui criado. E foi o suficiente para me encantar de uma vez por todas por sua prosa elegante e cheia de mistérios. 

Além da literatura precisa e irretocável, Clarice envolveu-se também com o jornalismo - é dela o brilhante Correio feminino, feito para o Correio da manhã e fruto de um convite que recebeu do cronista Rubem Braga, no qual assinou com o pseudônimo de Tereza Quadros e a coluna "só para mulheres" no jornal Diário da noite - e a diplomacia, que lhe permitiu viajar mundo afora (Itália, Suíça, Inglaterra, Estados Unidos, etc). E ela soube integrar, como poucos, esse aspecto à sua obra ficcional. 

Em 1977, aos 56 anos, vitimada por um câncer de ovário, a autora nos deixa. Contudo, alguns críticos e intelectuais que analisaram sua obra em detalhes, dizem que ela continuou trabalhando até o fim. Ditava seus textos mesmo de cama. Uma mulher com tamanha personalidade não poderia simplesmente desistir.

No fundo, no fundo, chego á conclusão de que Clarice Lispector é nossa dama incógnita, um ponto de interrogação que simplesmente não se responde, muito menos espera por isso. Ela buscou no seu jeito particular, subjetivo e autobiográfico de contar histórias uma façanha ímpar. Não era uma enciclopédia, que dirá um verbete literário (embora eu veja muitos tentando transformá-la nisso nas redes sociais, fenômeno que também ocorre com o escritor Caio Fernando Abreu). E ainda sim encantou tanta gente. 

Que venha o aniversário de 200 anos, diva! (embora eu, infelizmente, não vá estar mais por aqui para apreciar isso). 

P.S: na verdade dois toques: 1) assistam a versão cinematográfica de A hora da estrela, dirigida por Suzana Amaral e 2) fiquei sabendo recentemente que o diretor Luiz Fernando Carvalho está para lançar uma adaptação de A paixão segundo G.H e quero muito saber quando ela estreia. Vocês, não?


sábado, 5 de dezembro de 2020

Isto é hollywood



Vemos o filme somente quando ele já está pronto, finalizado, montado e na maioria das vezes não nos damos conta do real trabalho que dá realizá-lo, captar verba, encontrar elenco, locações, filmá-lo, inserir trilha sonora e efeitos especiais, pós-produzí-lo, etc etc etc. E com a chegada do mercado de dvds eu passei a correr atrás dos making offs e entrevistas embutidos no menu para saber mais a respeito das produções cinematográficas. Para mim passou a ser o grande barato dentro da indústria do home video.

E o que aprendi com ela? Que precisamos, como cinéfilos, dar mais valor aqueles profissionais pau pra toda obra, os chamados "faz-tudo" dentro do set filmagem. Não fossem eles a sétima arte - e principalmente hollywood - jamais teria produzido obras-primas como Apocalipse now, Contatos imediatos do terceiro grau, Crepúsculo dos Deuses, Tubarão, Todos os homens do presidente, dentre tantos outros. 

Em Zeroville, projeto do ator e diretor James Franco, essa função é desempenhada por Vikar (interpretado pelo próprio Franco), um construtor de cenários que se muda para Nova York para ficar mais perto da meca do cinema, sua grande paixão. Ele é aquele tipo de profissional dentro da equipe de filmagem que precisa "entregar o milagre pronto" na hora que os produtores disserem que é a hora. E nem sempre isso é possível. E quando é chamado por Viking (Seth Rogen), um abutre da indústria, para editar um longa, ele percebe definitivamente o quanto que prazos são realmente datas complicadas para serem seguidas à risca. 

Não bastasse a rotina e as cobranças do instável e prepotente produtor Rondell (Will Ferrell), ele ainda por cima se apaixona pela instável Soledad (Megan Fox), uma atriz do segundo escalão que luta para criar a filha adolescente e rebelde. Moral da história: em seu íntimo, Vikar sabe que está metido numa roubada desde o início, mas é tarde demais para abandonar o barco. 

Talvez a única coisa que exerça uma paixão igual a que sente por Soledad é a devoção que ele tem pelo filme Um lugar ao sol, do diretor George Stevens e seu protagonista, o ator e galã Montgomery Clift. E é dessa mistura de sentimentos que nasce o grande conflito que irá perseguir Vikar por toda a trama, que ganha contornos sobrenaturais (em alguns momentos, confesso, desnecessários). 

O importante mesmo para o espectador é levar em consideração que Zeroville tem uma narrativa que segue a premissa "isto é hollywood", com todas as distorções e mau caratismos que a terra mais famosa do cinema é capaz de carregar em seu bojo. E desde já adianto: fiquei curioso para ler o romance homônimo do escritor Steve Erickson, que serviu de base para a realização deste projeto. O filme conseguiu plantar em mim uma semente da dúvida sobre as intenções do original. 

Para quem curte produções sobre bastidores da indústria, como A noite americana, de François Truffaut e Ed Wood, de Tim Burton - só para citar dois dos meus inúmeros favoritos - terá nesse aqui um prato cheio e alucinógeno. 

Contudo, é preciso avisar de antemão que Franco inseriu uma espécie de segunda trama um tanto confusa para mexer com os brios dos espectadores (ou talvez seja a trama principal, mas eu tenha preferido o lado backstage da história, pois adoro referências ao passado e homenagens à era de ouro de hollywood). Enfim... Estejam preparados!

Mesmo assim, embora não concorde com todas as suas escolhas criativas, reconheço uma evolução na carreira de Franco como diretor. Já havia gostado bastante de O artista do desastre, sobre a inusitada figura do cineasta Tommy Wiseau e o seu "pior filme de todos os tempos, The Room" - que ganhou até Globo de Ouro - e embarquei também neste. Pena que seus projetos pessoais sejam tão difíceis de encontrar, mesmo na internet. O rapaz já enveredou até por William Faulkner e Charles Bukowski...

No geral, fica como opção alternativa para aqueles espectadores que volta e meia cansam da mesmice exibida no circuito comercial e desejam um plano B para quando os serviços de streaming estão na entressafra. Procurem! Vale, pelo menos, um domingo à tarde.


quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Me dá um abraço?


Quando eles (ou elas) passam na rua, vivendo suas vidas, pagando suas próprias contas, sem depender de ninguém, há quem deboche. Há quem os diminua pelo simples prazer de fazê-lo. Há quem os chame de aberrações. O mundo está repleto de preconceituosos os mais diversos. E eles, os covardes, vivem da manutenção da desgraça alheia. E ai de quem se posicione contra os acusadores! 

Eles (ou elas), no caso, são os homossexuais. Um grupo social que sobrevive a duras penas, tendo que conflitar diariamente contra pessoas que, muitas vezes, não são exemplo de absolutamente nada. Apenas gostam de se sentir por cima das demais classes sociais. É praticamente um vício comportamental. 

Em tempos de quarentena e isolamento social na cidade maravilhosa me deparo com a possibilidade de assistir online ao espetáculo teatral Alair, do dramaturgo  Gustavo Pinheiro (autor de Relâmpago cifrado e A tropa) e, lógico, vou correndo para o youtube para conferir a montagem.

O texto - escrito em 2017 - nos traz o relato do fim da vida (praticamente uma confissão) do fotógrafo, engenheiro, filósofo e crítico de arte Alair de Oliveira Gomes, conhecido como pioneiro da arte homoerótica no Brasil. 

Vivido no palco pelo ator Edwin Luisi, Alair funde passado e presente e narra seus erros e acertos ao longo da vida. As escolhas infelizes, os romances tórridos, aventuras que não deram certo, flertes rápidos (e também perigosos), etc. Intercala a zona sul carioca com as viagens que realizou pela Europa, traçando assim um perfil coeso do comportamento homossexual masculino. 

Após assistir o espetáculo na íntegra vou ao google procurar por fragmentos de seu trabalho fotográfico. E logo de cara me deparo com um artista que, se vivo (ele faleceu em 1992), incomodaria - e muito! - o Brasil de hoje, cheio de demagogos religiosos e gente que confunde partidarismo político com fanatismo cego. 

Sua obra é provocadora ao extremo e um prato cheio para os conservadores de plantão que adoram rotular tudo o que não entendem de putaria ou alienação. 

Edwin não está sozinho no palco. É acompanhado por dois jovens atores que, na verdade, funcionam mais como corpo do que como narrativa. Ambos estão ali por conta de seus deltoides perfeitos e silhuetas impecáveis. Detalhe: há cena de nudez aberta (portanto, não recomendo para todos os públicos). É preciso ser mente aberta - ou como diz o próprio protagonista, "um libertário" - para realmente acompanhar a proposta cênica do dramaturgo. 

À medida que a apresentação vai se aproximando do fim, e quando estamos mais do que inseridos, assoberbados pela combinação de atuações e exibições de vídeos, chegam os dias amargos: as exposições que foram proibidas pela censura no período militar, o diagnóstico de câncer de próstata... A vida de Alair, como a de muitos que pertencem ao mesmo segmento que ele, não foi fácil. 

Trata-se de uma jornada dolorosa pelo árduo mundo daqueles cujo único desejo é permanecerem diferentes em meio ao discurso ditatorial do pensamento único que rege o país desde sempre. E o resultado final dessa jornada é não somente glorioso como inebriante. Para você que está à procura do verdadeiro teatro e não aguenta mais o acúmulo de comédias, stand ups e musicais que não passam de corruptelas da Broadway, eis aqui um prato cheio. 

P.S: para quem não assistiu o espetáculo ainda, clique aqui: 

https://www.youtube.com/watch?v=o9NRYt2TuZ0&feature=youtu.be&fbclid=IwAR0FRK4xaKQMc6TUnmeG8ABnnZeORrlZDXto1OLwiLanb9_xnyhXE5Uh3fA