quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O tamanho da impunidade


Nós REALMENTE podemos confiar naquilo que comemos? E no que vestimos? Podemos acreditar no padrão de qualidade e na ética daqueles que produzem os equipamentos que usamos para preparar nossos alimentos? Digo: podemos mesmo? Honestamente... Eu não sei vocês, mas eu nunca pus minha mão no fogo 100% por corporação ou empresa alguma. E se isso faz de mim uma pessoa paranoica, tenho de aprender a lidar com isso e com a sociedade conformada, que acredita em tudo. Contudo, entre desconfiar e dar o braço a torcer sempre preferi a primeira opção, por considerá-la mais íntegra em muitos casos. 

Quando eu era mais novo via minha mãe meio desconfiada com certas panelas, frigideiras, até daquelas antigas torradeiras cujo pão de forma saltava no ar quando pronto. E quando eram feitas de teflon, então, ela dizia: "sei lá... quem me garante que isso não é cancerígeno?". E uma ocasião ela raspou a dita cuja com uma faca e ao ver aquele pó preto em suas mãos ficou ainda mais ensimesmada. Hoje eu entendo ela. 

Digo que entendo somente agora porque tenho certeza que se ela assistisse ao polêmico e muito bem realizado filme O preço da verdade, do diretor Todd Haynes - realizador de longas antológicos como Velvet Goldmine, Não estou lá e Carol - ela certamente nunca mais compraria uma frigideira dessas! 

O preço da verdade nos traz a saga quase inglória do advogado Rob Bilott (Mark Ruffalo, simplesmente ótimo!), que é praticamente intimado por um fazendeiro de West Virginia a investigar a empresa Dupont, que ele acusa de contaminar o riacho perto de suas terras, levando à morte a maior parte do seu gado. E Rob, a priori, é a pessoa menos indicada para assumir um caso desses. E por quê? Porque ele costuma ser advogado de defesa de empresas como a Dupont. Mais do que isso: conhece grande parte de sua diretoria, o que levaria a um conflito de interesses gigantesco. 

Porém, após ir à fazenda e conhecer mais sobre os fatos ele decide assumir a causa, mesmo gerando certo desconforto para o escritório onde trabalha (e se tornou sócio recentemente). E é justamente nesse momento que ele descobre que as vacas mortas e a água contaminada é apenas uma reles ponta do iceberg. 

Da água contaminada e o gado morto à PFOA ou C8 (a substância cancerígena em questão); e da PFOA à descoberta do uso dela em frigideiras e outros utensílios de cozinha. E dessa descoberta ao... Pois é. É quando nos depararemos com o tamanho da impunidade que rege empresas como a Dupont ao redor do mundo. 

Mais do que se expor, complicar sua posição no escritório onde trabalha e ver seu casamento quase ruir, Rob terá de enfrentar o universo maquiavélico das grandes corporações que de tudo farão para vencer a causa na justiça, desde desmentir qualquer versão científica que aponte problemas na linha de produção até mesmo vê-la fazer acordos que ela própria não assumirá caso a verdade venha à tona. 

Tratam-se dos velhos tubarões de sempre (e já usei essa expressão recentemente numa outra crítica de cinema que fiz há pouco tempo sobre o filme Piedade, de Cláudio Assis) se utilizando das velhas artimanhas e do fato de que essas empresas têm ramificações no governo muito maiores do que simplesmente profissionais. E é dessa troca de favores entre políticos e empresários - coisa, aliás, que nosso país conhece bem há décadas - que nasce a ruína de milhares de famílias honestas e cidadãos de bem. E mesmo assim, tem trabalhador assalariado (e alienado) que as defenda com unhas e dentes, dizendo: "isso é só intriga da oposição ou perseguição política". 

Ao final do filme, ficou-me a sensação de estar diante de um grande estudo sociológico sobre a mentira que reina em nossa sociedade de consumo. E por um momento me peguei pensando no excelente documentário do diretor Michael Moore de nome Roger e eu. Nele, uma cidade norte-americana que praticamente vivia em função de uma empresa - que, por sinal, era idolatrada por seus habitantes - vê o local se tornar uma cidade fantasma assim que ela encerra suas atividades na região, levando a população à total miséria. Aqui, no longa de Haynes, é ainda pior: vidas foram descartadas e o máximo que se conseguiu até hoje foi uma série de "reparações financeiras". Como se isso fosse realmente possível!

Agora uma pequena ironia de minha parte (e eu adoro ironizar): após terminar a sessão, abro meu computador no Google e digito Dupont. O site da empresa aparece e é inegável a intenção da empresa em transparecer o máximo de ética possível. O que vejo enquanto desço a barra de rolagem são frases como "segurança e saúde", "respeito pelas pessoas", "comportamento ético", "proteção do planeta", etc etc etc. E fico pensando comigo: o que um processo que se arrastou na justiça ao longo de décadas e da vontade gananciosa de esconder a verdade do povo não faz!!!

E quando saio, enojado, do site da empresa fica-me preso à garganta um único pensamento: o quanto o mundo é sujo e covarde e como somos coniventes com isso. Mas eles são homens de negócios, ilustres, acima de qualquer suspeita, amados e idolatrados e o mundo continuará girando amanhã, depois de amanhã e no dia seguinte também, não é mesmo? Que seja. Só não me peçam para aplaudi-los, pois aí já é querer demais e o meu compromisso nesse mundo é outro.


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