quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Herdeiros do medo

 


Como se faz para ter uma opinião num país onde o simples direito de dizer o que pensa é por si só, para muitos, um delito grave? Tem quem me chame de maluco, de teórico da conspiração, mas a verdade nos últimos tempos é que se dependêssemos única e exclusivamente de um certo fragmento de nossa sociedade o mundo seria um lugar muito melhor se todos permanecessem calados, guardassem suas opiniões para si. São os que chamam a democracia de perda de tempo. 

Não bastasse a tristeza que é saber dessa informação, ela ainda se agrava mais quando nos damos conta de que, no Brasil, esse é um mal secular, construído a base de décadas e décadas de um analfabetismo coletiva. E para quem acha que eu estou exagerando procurem pelo sucinto e extraordinário A opinião pública, documentário do diretor Arnaldo Jabor realizado em (acreditem!) 1967. 

Pouco tempo atrás também assisti a Eu te amo, outro longa do diretor repleto de boas reflexões para entendermos esse hoje confuso no qual estamos inseridos, e fiquei deslumbrado de perceber que seu cinema não envelheceu praticamente nada. Pelo contrário: continua afiadíssimo e sintonizado com nossa realidade. Contudo, com A opinião pública, ele está um passo à frente, pois decide deixar o povo falar. E quando o povo fala, é preciso que tomemos muito cuidado!

O longa é composto de uma série de entrevistas realizadas na cidade do Rio de Janeiro e trabalha bem o conceito de dicotomias, volta e meia opondo pessoas com opiniões contrastantes sobre o mesmo tema. E os temas são os mais diversos: amor, trabalho, futuro, vida, etc. 

É possível vermos os mesmos moralistas e demagogos de sempre, indignados com a juventude (na época, os "transviados"); para eles - que adoram ofender e acusar qualquer um que seja diferente deles mesmos e do sistema - os verdadeiros culpados do país ter ruído e não ser hoje uma potência mundial.

E no melhor estilo "a vida é uma guerra" (frase, por sinal, proferida por um dos entrevistados de maneira lúcida) vemos debates e enfrentamentos os mais inusitados. O meu preferido, vou logo dizendo sem rodeios, é o da mulher de meia-idade tentando explicar a duas adolescentes a diferença entre amor e paixão. Lembrou a minha avó dizendo para as meninas mais novas: "minha filha, toma cuidado! a vida não é desse jeito que você está pensando, não!". Divertido e, mesmo assim, de uma verdade inabalável. 

Ilusão x realidade, o papel da mulher na sociedade (daquela época, e principalmente de agora), ser famoso x vencer na vida, sobrenatural x ciência, viver o hoje sem expectativas versus imaginar o futuro... São muitos os temas que compõem o enxuto documentário e à medida que ele vai avançando em suas intenções e confrontamentos eu me peguei lembrando do também ótimo O cinema falado, o filme de ensaios do cantor e compositor Caetano Veloso. Ambos estão interessados em provocar uma reação do público, seja ela qual for. 

Quando a última parte do filme - aquela que fala dos dogmas, do desespero que a sociedade contemporânea chama de fé - atinge o espectador, quase grito também, mas de raiva. Raiva por perceber a inércia dos tolos, daqueles que adoram a manipulação, não conseguem viver além dela. 

O narrador, uma das melhores coisas do filme, chama esse grupo de pessoas (que representam a nossa classe média) de "a classe perplexa", sempre assustados com tudo, temendo pelo amanhã. E dentro do contexto deles, a felicidade não passa de uma forma de poder, um interesse de ascender perante os demais. 

E depois de tanto blá blá blá, de tanta incoerência, de tantos sonhos (melhor dizer delírios) ilógicos, chega a sensatez do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade para encerrar essa jornada confusa, pois tem como ferramenta principal a ignorância e a falta de empatia pelo outro. Ele, Drummond, chama essas pessoas de herdeiros do medo. E está coberto de razão. 

Já o problema para mim, que aplaudiu o filme emocionado, reclamando apenas da curta duração, está um degrau acima disso: será que um dia tomaremos vergonha na cara e acordaremos para o que realmente interessa? Honestamente... Eu prefiro não arriscar uma resposta minimamente sensata.


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