Não é de hoje que a sociedade contemporânea dá sinais de cafajestismo. Digo mais: acredito piamente que o mau caratismo ao redor do mundo se sofisticou com o passar dos anos e o advento das novas tecnologias. É possível, meus caros leitores, fazer disso uma escolha de vida, uma profissão. E há - acreditem! - quem ainda os idolatre, os chame de "cidadãos de bem". Contudo, em muitos casos, essa índole para o oportunismo e a vontade de vencer na vida a qualquer custo mostra-se de forma irônica, quase flertando com uma espécie de humor negro. E nesses momentos há quem fique na dúvida sobre a real intenção dessas pessoas. Pior: há quem duvide que eles (ou elas) estejam de fato perpetrando o mal.
O filme Parasita, do diretor sul-coreano Bong Joon Ho (de longas extraordinários como O expresso do amanhã, Mother - a busca pela verdade e Okja) - e para muitos o grande favorito ao Oscar de melhor filme estrangeiro do ano que vem - se encaixa de maneira brilhante dentro desse contexto. Ao ponto de me deixar realmente perturbado (e preocupado) com o futuro da humanidade daqui para frente.
O longa se debruça sobre a vida de uma família de baixa renda, que vive em condições extremamente precárias dentro de um porão num subúrbio inóspito. E mediante um estilo de vida tão deficitário e carente eles são capazes de fazer qualquer coisa (qualquer uma mesmo) que os leve para um padrão de vida melhor.
E essa oportunidade aparece quando um amigo do filho Kim-woo (Woo-sik choi) que está partindo em viagem oferece para ele um emprego como professor de inglês para sua aluna. E é nesse exato momento que começa toda a indústria de artimanhas que envolve a família, capaz de tudo para sair daquela realidade financeira.
Sua irmã é uma especialista em fraudes, poderia dar aulas sobre o assunto em universidades se quisesse. Seu pai é um homem falido capaz de endossar qualquer truque que o faça sair daquela vida miserável. E sua mãe nada tem de genitora séria e (como costumamos ver aqui na nossa cultura) um exemplo vivo de alicerce familiar. Resultado: seu emprego conquistado é apenas um passaporte para que, com o tempo, ele consiga ajudar todos os parentes a se darem bem também.
Seus patrões são o clássico caso da elite esnobe que existe em qualquer lugar do mundo, que gasta qualquer quantia para resolver os menores (e os maiores) problemas, contanto que não tenham de pôr a mão na massa eles mesmos. Logo, as vítimas perfeitas para qualquer estrategista do crime.
À medida que a família que busca sua redenção financeira consegue tomar o controle da casa e da situação, tudo parece caminhar para um plano B ainda mais sórdido quando um segredo envolvendo um antigo funcionário da casa vem à tona para desestabilizar todo o planejamento. E a consequência dessa notícia tem repercussões desastrosas e violentas.
Há uma sequência do filme que fez eu me lembrar de um dos segmentos do filme Short Cuts, do diretor Robert Altman, e reforçou ainda mais o contexto que defendi no primeiro parágrafo. Detalhe: prestem atenção na conversa da família quando se imaginam imbatíveis e com a parada decidida a favor deles.
Em outras palavras: Parasita é um filme sobre sobreviventes. Não. É isso mesmo que vocês leram. E talvez muitos leitores que chegaram à esse ponto da crítica me acusem de fazer vista grossa para o comportamento antiético desses personagens. Contudo, ratifico minha opinião e explico o porquê.
Num mundo como o nosso, pautado pelo status social nocivo e extremista, capaz de fazer a humanidade perder a cabeça por qualquer motivo, fica difícil para mim rotular a família protagonista de meros cafajestes ou canalhas. Como já dizia a compadecida na peça de Ariano Suassuna: "a esperteza é a arma do pobre". Não vejo aquele seio familiar exclusivamente como vilões e sim como receptáculos de um mundo destruído pela ganância e pela eterna mania de levarmos a vantagem sobre os demais.
Vemos nossos semelhantes - e tenho percebido isso mais claramente de uma década para cá - como objetos de nossos planos sórdidos para vencer na vida. Tudo bem, muitos dirão: "não somos todos assim". É uma grande verdade. Mas dizer que isso não representa uma grande esfera da sociedade também é uma grande mentira. Existem, infelizmente, setores da sociedade que visam a exploração do outro em nome de um projeto de vida. É triste, cruel, mas verídico.
Ao final da sessão, que tinha poucos espectadores (uma pena!), vejo os olhares ao redor. Muita perplexidade, mas também estão extasiados com a verdade contida naquela história. Não se trata de uma narrativa sobre torcemos por nossos heróis e rezarmos para que os vilões se estrepam. Nada disso. É o mundo real com todas as dificuldades impostas à sociedade. E ainda tem quem defenda isso em nome de conceitos como globalização ou meritocracia.
Como disse no segundo parágrafo: o filme me deixou preocupado com o futuro da humanidade, com o que sobrará de nós nesse planeta terra cada vez mais controverso. Entretanto, acho que o maior problema é que nós, sociedade, estamos tratando esse mundo e as histórias horrendas que ele nos mostra dia a dia como meras ilusões, invenções ou teorias conspiratórias. E enquanto o debate social se der neste nível a tendência é piorar. E muito.
Por outro lado, como é bom saber que ainda há artistas lúcidos, sem vergonha de mostrar a realidade nua e crua, doa a quem doer. Que filmaço!
P.S (quer dizer: é mais um pedido ou sonho): como é que eu faço para conhecer pessoalmente o diretor Bong Joon Ho? Eu dava tudo para conversar com ele, nem que fosse só meia-hora. O cara é foda. Um dos melhores da atual geração.
Sem comentários:
Enviar um comentário