quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Na pindaíba


Leio Essa gente, do compositor - e escritor nas horas vagas - Chico Buarque. É o livro da discórdia. E digo discórdia por conta da polêmica envolvendo o autor (que ganhou o Prêmio Camões desse ano) e o atual "presidente" da República, que se recusou a assinar e reconhecer o prêmio. 

Encontrar o romance nas prateleiras da Saraiva já é uma vitória por si só, pois imaginei que a obra seria boicotada a pedido do governo federal. Sim, meus caros leitores! Para aqueles que não acreditam ou vivem no mundo da lua fabricado por robôs nas redes sociais, vivemos tempos de censura no país. Novamente. E qualquer obra artística que passe ao largo do boicote é preciso ser adquirida ou apreciada o quanto antes (caso eles mudem de ideia e tragam o ontem opressor de volta). 

E o livro é sublime, retrato máximo de um país destruído por ideais que não tem nada de conservadores, mas pura hipocrisia patriótica. 

Essa gente se passa no Brasil atroz de hoje, 2019, de forma franca, sem rodeios, sem fugir do debate ou de discussões espinhosas. Tem na figura do seu protagonista, o escritor quase falido e decadente Manuel Duarte, um porto seguro para esmiuçar as mazelas da ignorância que regem o estrato privilegiado da sociedade contemporânea, afundada em vícios comportamentais e numa postura de eterna agressividade ou deboche ao próximo. 

Duarte é devasso, promíscuo, mas não esquece de sua primeira mulher (com quem teve um filho). Sua persona conturbada passa longe dos dias de glória da sua carreira, por conta do lançamento de seu romance O eunuco do Paço Real. Morador relapso do Leblon, sequer socializa com os vizinhos e se alimenta de casos amorosos fúteis (inclusive com mulheres comprometidas) e de uma vida de mentira, baseada num passado que não pretende regressar por mais que ele sonhe com isso. Ou resumindo: Duarte é a cara desse país que gosta de viver de pose e de um status que, via de regra, não tem ou já o perdeu faz tempo. 

Observação: eu poderia centralizar o protagonista como representante da elite decadente que dita as regras desse país ilógico, mas não faria total justiça a ele. E, além do mais, tem muito classe média sem noção nessa pátria perdida. 

Entretanto, há um elemento que me prendeu à narrativa logo de cara. Trata-se de um grande painel que Chico Buarque construiu para esmiuçar os dilemas recentes pelo qual o país passa. É visível nas entrelinhas e mesmo no discurso direto de certos personagens menores o clima caótico no qual estamos vivendo nos últimos anos. 

Arrogantes da fé evangélica, posando de últimos sobreviventes da ética; valentões que se escondem atrás de armas de fogo, sempre a postos para colocar fim em qualquer discussão, por menor que seja; cidadãos ditos patriotas fugindo para Portugal ao menor sinal de fumaça, pois "o país foi invadido por pilantras e comunistas"; crianças sofrendo bullying na escola por conta da ideologia política de seus país; etc etc e milhares de polêmicos etcs. 

E após tanto ressentimento, más escolhas, desfechos amorosos infelizes e uma existência baseada em niilismo e falta de interesse para reagir aos problemas, o final avassalador e quase nonsense do personagem me deixa com uma sensação de gosto amargo na boca seca, mas também de orgulho por estar diante de um artista ciente (e coerente) com o país onde vive, ao invés de replicar o discurso falacioso e evasivo de certos intelectuais da atualidade e defensores de um modelo de governo falho e ineficaz. 

Essa gente é caótico, mordaz, não poupa nenhum setor da sociedade, não faz firulas ao defender suas ideias e constrói uma soberba alegoria sobre a pindaíba patriótica na qual estamos vivendo nos últimos 5, 6 anos. E não me refiro exclusivamente a uma pindaíba monetária. Longe disso. Nossa pindaíba - ou miséria - é também de cunho sentimental, existencial, já que desaprendemos a respeitar ou entender o outro naquilo que ele tem de diferente de nós. 

Desde já confesso aqui: um dos melhores livros do ano. E para aqueles que acham que o prêmio Camões dado a Chico Buarque foi um exagero, só posso lhes dizer "vocês não sabem o que estão perdendo!". 

A literatura brasileira anda carente de mais mentes lúcidas como a deste cantor hoje rotulado de canalha e vendido por quem não conhece - nem quer conhecer - sua obra musical, teatral e literária. 

E na boa... Quem perdeu com isso foram eles mesmos!!! 

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