Como se começa uma resenha literária sobre um livro cujo público-alvo não existe em sua versão carne e osso? Complicado, eu sei... Mas a advogada Kátia Bandeira de Mello Gerlach e o cronista e editor Alexandre Staut conseguiram!
Perdidas: histórias para crianças que não têm vez é um exemplar ímpar dentro da história recente da nossa literatura (que volta e meia, aliás, vem sendo demonizada, acusada de viver seus piores dias). Feita à muitas mãos, reflete o vazio existencial de nossa sociedade opaca, refém de uma violência urbana atroz e desenfreada, fruto de uma sucessão de desgovernos contínua.
Seus protagonistas aqui são vítimas de balas perdidas. Mais: vítimas da crueldade e da falta de compaixão da própria sociedade, mais preocupada com suas contas bancárias, iphones e status em redes sociais. E não há nada que possamos fazer de imediato, a não ser administrar a forma como essa dor, esse desalento, se processo.
Os organizadores do trabalho (por sinal, ótimo!) mesclam nomes facilmente reconhecidos do grande público nos últimos anos - como Edney Silvestre, Andréa del Fuego, Santiago Nazarian, Martha Batalha, Noemi Jaffe, João Anzanello Carrascoza, entre outros - com figuras não tão conhecidas, e nem por isso desprezíveis. Por sinal, foi uma grata surpresa conhecer pela primeira vez a obra de alguns deles (que merecem que eu corra atrás por mais!).
A violência aqui narrada se mostra em diferente facetas. Seja na forma de mensagens perturbadoras; nas vítimas que confessam pormenorizadamente suas próprias catástrofes; na própria bala perdida - causadora de tanta dor e destruição - explicando sua trajetória e desfecho maquiavélico; na desconstrução do conceito de violência (às vezes, confundido com arte); na morte quando comparada com brincadeiras de infância (como pedra, papel e tesoura). E entre poemas e contos enxutos, vamos esmiuçando a face macabra de toda essa vilania.
Termino a leitura num misto de angústia e êxtase. Angústia por, em alguns momentos, duvidar de tanta maldade e da forma simples com que ela se constrói em nossa nação cada dia mais bélica; e êxtase por estar diante de um documento muito mais verídico do que costumamos ver em nossos noticiários e no discurso de certos "especialistas em segurança pública".
Enfim... Não conheço melhor definição para Perdidas do que mosaico. Um mosaico de intenções confusas e decisões macabras, que vai apunhalando o leitor página a página.
Somos um país que se vangloria de seu próprio analfabetismo e da eterna mania de se dizer malandro, safo, acima de qualquer suspeita. Pois bem: Perdidas refaz essa visão de mundo de uma maneira um tanto sórdida, mas necessária para que acordemos dessa letargia que vem nos acometendo há mais de cinco séculos. Letargia essa com a qual nos acostumamos, pois como dizia o falecido João Ubaldo Ribeiro no título de um dos seus livros de crônicas, "a gente se acostuma a tudo".
Parte da renda do livro é destinada a uma instituição que pretende combater esse triste cenário no qual estamos inseridos. E só por isso a obra já mereceria minha atenção. Mas acreditem: Perdidas é bem mais do que isso. É um alento em meio a tanta omissão e covardia em nossa pátria, repleta de demagogos que se disfarçam de patriotas.
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