sábado, 13 de outubro de 2018

Aconteceu, virou manchete! (Memórias de infância 13)


Das muitas frustrações que tive na minha vida (não ter visto a Copa do Mundo de 1970 no México, não ser nascido quando do festival de Woodstock, etc etc etc) certamente uma das maiores foi me deparar com o aparelho televisor ligado em 1999 para a última transmissão da Rede Manchete. Acreditem: eu chorei. E chorei por ver naquela cena o fim de um legado. A minha relação com a tv dali em diante mudaria drasticamente (foi quando comecei a me relacionar mais com os filmes na madrugada e com meu videocassete - quem sabe eu fale sobre isso num próximo texto dessa série Memórias) e eu ficaria definitivamente órfão de uma determinado tipo de programação. 

Quando penso em nostalgia hoje, na casa dos quarenta, é fácil pensar na emissora de Adolpho Bloch. Ela, diferentemente da Rede Globo, sempre mais preocupada com audiência do que com qualidade, me apresentou a um mundo de possibilidades. Digo mais: comecei a entender de fato o significado da palavra diversidade assistindo aos seus programas, novelas, desenhos e jornais. 

Eram tempos de chegar correndo da escola para não perder Manchete Esportiva, com Márcio Guedes (que outro dia desses vi falando, mais velho, numa entrevista no you tube). Era o melhor programa esportivo da tv nacional porque não se limitava exclusivamente a falar de futebol, como se faz cansativamente em muitos programas do gênero hoje em dia. E quando não chegava correndo para ver Márcio Guedes, era por qualquer outro bom programa pelo qual, volta e meia, caía de amores. 

Eu sei, eu sei... Vocês querem exemplos práticos. Ei-los:

Cabaré do Barata: Agildo Ribeiro e uma série de bonecos satirizando presidenciáveis da época (Brizola, Lula, Orestes Quércia, Paulo Maluf, e tantos outros) em situações que ironizavam o clima negro daqueles tempos (que nos trariam Collor em Brasília, o confisco da poupança e... Quem viveu, sabe o resto!); Acredite se quiser: o eterno ator Jack Palance trazendo fatos curiosos - e às vezes bizarros - ocorridos ao redor do mundo; quase um lado B do guiness book (pelo menos, eu sempre tive essa percepção do programa); Milk Shake: enquanto a Globo emplacava com o Globo de Ouro, Angélica apresentava a sua versão de programa musical com atrações que iam de João Penca e seus miquinhos amestrados à Ritchie (esse eu vi muito na casa da minha avó aos sábados); Tamanho Família: a primeira sitcom que eu assisti na vida, sobre uma família de classe média extremamente desajustada, escrita por Geraldo Carneiro, Leopoldo Serran e Mauro Rasi e com Sueli Franco, Ivan Cândido, Zezé Polessa e Diogo Vilela (que eu curtiria mais tarde na TV Pirata da Rede Globo) no elenco...

Gostaram do pequeno aperitivo? Isso porque vocês (os mais novos, pelo menos!) não assistiram às telenovelas da Manchete. Se houve uma emissora que tirou audiência da emissora da família Marinho, foi a manchete. Pantanal que o diga! Milhares de homens pediram Juma Marruá (Cristina Oliveira) em casamento. Eu cheguei a ver uma novela inteira, Corpo Santo, só por causa da atriz Lídia Brondi, uma musa eterna do meu tempo adolescente. E ainda teve Ana Raio e Zé Trovão, Kananga do Japão, Tocaia Grande (baseada em obra literária de Jorge Amado), Xica da Silva... A lista é imensa. 

Outro ponto forte da emissora eram as transmissões dos desfiles das escolas de samba na Marquês de Sapucaí. E eu ficando acordado até a manhã seguinte, pois queria ver todas as agremiações, e deixando minha mãe irritada ao aparecer de olheiras no dia seguinte. Era o que eu chamava de aventura naquele tempo! E ainda tinha o Jorge Aragão no botequim do samba e o Haroldo Costa apresentando o Esquentando os tamborins nas semanas que antecediam o desfile. Ah! E os desfiles de fantasia no Hotel Glória, com Clóvis Bornai? E os bailes de carnaval no Scala, apresentados por Rogério, Otávio Mesquita (na pele do Repórter Morcego) e Gerson Brenner? Ah! A memória!

O correspondente dessa nostalgia, mas na minha versão infãncia eram Lupu Linpim Clapa Topo, com Lucinha Lins (por quem já era apaixonado desde a época de Os Saltimbancos Trapalhões no cinema) e Cláudio Tovar (membro fundador do grupo Dzi Croquettes) e posteriormente os seriados tokosatsus asiáticos Jaspion, Changeman, Jiraya, Jiban e companhia limitada. Teve um período febril com a série animada Cavaleiros do Zodíaco que rendeu filas nas bancas de jornal para comprar qualquer tipo de material que trouxesse os heróis estampados e filas nos cinemas, mas já eu curtia uma fase cineclubista e ainda não estava na onda do Anime.  

No quesito jornalismo eu assistia escondido dos meus pais à Documento Especial (que chegou a ter alguns episódios reexibidos recentemente no Canal Brasil - e que eu, lógico, revi!), que trazia temas polêmicos que iam da prostituição ao crime organizado. E fica aqui um recado para as emissoras atuais: como faz falta um programa investigativo desses nos dias de hoje! 

Contudo, apesar de toda essa variedade, como diz o ditado popular: "o que é bom dura pouco". E com a Rede Manchete não foi diferente. Comecei a perceber a mudança de clima na época em que as primeiras chamadas da novela Brida (baseada em romance de Paulo Coelho) começaram a ser exibidas. Não era mais a mesma coisa, o mesmo tom. Tudo parecia feito às pressas, afobadamente. Cheia de dívidas, a emissora definhou gradualmente até sua derradeira transmissão. 

Eu não tinha sequer sete anos quando a Manchete entrou no ar e começou a exibir seu tema de abertura, com aquele gigantesco M passeando pelas ruas da cidade. Quantas e quantas vezes passei de ônibus perto da sede e ficava olhando emocionado para o tal M. Não cheguei aos 25 quando a emissora decretou falência e encerrou suas atividades. Lembro de ter visto, anos depois, uma matéria mostrando as ruínas da emissora, o prédio abandonado, repleto de lixo, cheio de ratos passeando pelas instalações. Tristeza. Contudo, os responsáveis pelo espólio da empresa caíram na real e revitalizaram o seu espaço, na Rua do Russell 804, preservando o seu legado. Menos mal. 

A manchete não teve a honra de chegar ao século XXI e seus fãs se ressentem disso. Eu, sem dúvida...

Fica como legado, no final das contas, uma certeza: a de que a minha infância, adolescência e formação cultural foram acompanhadas por gente que soube me entender e ofereceu algo compatível com a minha idade na época. Diferentemente de hoje, onde as emissoras são palco de tanta vulgaridade e uma programação que flerta com o nonsense e o exibicionismo. 

Nunca mais ouvirei "Aconteceu, virou manchete"? É fato. E nada pode ser feito para consertar isso (recentemente tentaram consertar isso com um documentário que apareceu online nas redes sociais e sites de vídeos, mas não rolou, não comigo). Mas não significa que a empresa deixou de acontecer na minha vida. Até hoje. Saudades eternas, Manchete!!!

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