sábado, 29 de agosto de 2020

O eterno pantera negra

 


A vida é realmente uma caixinha de surpresas. E às vezes uma um tanto quanto sórdida...

Mal ligo o computador, faço a conexão com a internet e entro no meu primeiro site do dia e me deparo com a triste - poderia até dizer macabra - notícia de que o ator Chadwick Boseman, mais conhecido por seu personagem no longa-metragem Pantera Negra, da Marvel Studios, faleceu ontem aos 43 anos, vítima de um câncer no cólon. 

Corro para os fóruns, sites e grupos do facebook sobre o universo dos super-heróis e me deparo com um cenário de total desolação. Ninguém parece acreditar nas notícias de tabloides e jornais. E seu físico no longa de Ryan Coogler jamais me faria pensar que o ator estivesse vivendo tal dilema. Sim, meus caros leitores! É trágico. Demais. 

E imediatamente, praticamente de maneira instintual, me pego pensando: o que a Marvel vai fazer agora para dar prosseguimento à sua cronologia? Vai fazer falta o talentoso Chad. Enfim... Wakanda nunca mais? Sério? É muita sacanagem.

Contudo, embora tenha se consagrado mesmo em películas do universo superhero, Boseman era bem mais do que isso e provou seu valor em outros projetos também interessantíssimos. Aliás, Não tem nem duas semanas eu assisti em dvd um de seus últimos trabalhos: o interessante filme policial Crimes sem saída, de Brian Kirk. E recomendo a quem ainda não teve a oportunidade de conferir. Ele certamente daria um ótimo detetive dentro deste segmento cinematográfico. 

E não somente o longa de Brian. Boseman realizou bem-vindas e complexas construções narrativas de personagens os mais diversos: foi o cantor James Brown em Get on up, do diretor Tate Taylor; vestiu o uniforme do jogador de beisebol Jackie Robinson (que foi alvo de severo racismo nos EUA) em 42: a história de uma lenda, de Brian Helgeland (surpreendendo o veterano Harrison Ford); além de emprestar seu talento para recriar a saga do advogado Thurgood Marshall, que se tornou o primeiro advogado afro-americano a integrar a suprema corte americana em Marshall: igualdade e justiça, de Reginald Hudlin (por sinal, outra grata surpresa em sua curta filmografia).  

Nunca me esqueço de uma entrevista que assisti dele para o Tonight show with Jimmy Fallon no qual agradecia ao ator Denzel Washington por ter financiado seus estudos na universidade. Achei de uma humildade raras vezes vista no mundo de hoje, tão individualista e mercenário. Mas Chad era assim, simples, humilde, centrado.

Toda vez que eu o ouvi se pronunciar, fosse no tapete vermelho ou num show de variedades, era de uma correção e uma elegância sem igual. E olha que ele ainda não era nem considerado como um ator do primeiro escalão na época!

Infelizmente chegou sua hora e espero que, onde quer que esteja, realize sua jornada com o mesmo afinco. Uma pena. É de mais artistas como ele que hollywood anda precisando nos últimos anos. Gente que não ostente, não conte vantagem, não faça propaganda de si o tempo todo. Grande Chadwick!

Aos fãs fica a saudade, a curiosidade por aquilo que ele ainda poderia realizar, e a certeza de poder rever sua obra quantas vezes quiser. Hoje mesmo deve ter coisa dele na tv a cabo. Querem apostar? 

Fica com Deus, meu caro... Ah! E pra não perder o costume: Wakanda forever!!!


quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Herdeiros do medo

 


Como se faz para ter uma opinião num país onde o simples direito de dizer o que pensa é por si só, para muitos, um delito grave? Tem quem me chame de maluco, de teórico da conspiração, mas a verdade nos últimos tempos é que se dependêssemos única e exclusivamente de um certo fragmento de nossa sociedade o mundo seria um lugar muito melhor se todos permanecessem calados, guardassem suas opiniões para si. São os que chamam a democracia de perda de tempo. 

Não bastasse a tristeza que é saber dessa informação, ela ainda se agrava mais quando nos damos conta de que, no Brasil, esse é um mal secular, construído a base de décadas e décadas de um analfabetismo coletiva. E para quem acha que eu estou exagerando procurem pelo sucinto e extraordinário A opinião pública, documentário do diretor Arnaldo Jabor realizado em (acreditem!) 1967. 

Pouco tempo atrás também assisti a Eu te amo, outro longa do diretor repleto de boas reflexões para entendermos esse hoje confuso no qual estamos inseridos, e fiquei deslumbrado de perceber que seu cinema não envelheceu praticamente nada. Pelo contrário: continua afiadíssimo e sintonizado com nossa realidade. Contudo, com A opinião pública, ele está um passo à frente, pois decide deixar o povo falar. E quando o povo fala, é preciso que tomemos muito cuidado!

O longa é composto de uma série de entrevistas realizadas na cidade do Rio de Janeiro e trabalha bem o conceito de dicotomias, volta e meia opondo pessoas com opiniões contrastantes sobre o mesmo tema. E os temas são os mais diversos: amor, trabalho, futuro, vida, etc. 

É possível vermos os mesmos moralistas e demagogos de sempre, indignados com a juventude (na época, os "transviados"); para eles - que adoram ofender e acusar qualquer um que seja diferente deles mesmos e do sistema - os verdadeiros culpados do país ter ruído e não ser hoje uma potência mundial.

E no melhor estilo "a vida é uma guerra" (frase, por sinal, proferida por um dos entrevistados de maneira lúcida) vemos debates e enfrentamentos os mais inusitados. O meu preferido, vou logo dizendo sem rodeios, é o da mulher de meia-idade tentando explicar a duas adolescentes a diferença entre amor e paixão. Lembrou a minha avó dizendo para as meninas mais novas: "minha filha, toma cuidado! a vida não é desse jeito que você está pensando, não!". Divertido e, mesmo assim, de uma verdade inabalável. 

Ilusão x realidade, o papel da mulher na sociedade (daquela época, e principalmente de agora), ser famoso x vencer na vida, sobrenatural x ciência, viver o hoje sem expectativas versus imaginar o futuro... São muitos os temas que compõem o enxuto documentário e à medida que ele vai avançando em suas intenções e confrontamentos eu me peguei lembrando do também ótimo O cinema falado, o filme de ensaios do cantor e compositor Caetano Veloso. Ambos estão interessados em provocar uma reação do público, seja ela qual for. 

Quando a última parte do filme - aquela que fala dos dogmas, do desespero que a sociedade contemporânea chama de fé - atinge o espectador, quase grito também, mas de raiva. Raiva por perceber a inércia dos tolos, daqueles que adoram a manipulação, não conseguem viver além dela. 

O narrador, uma das melhores coisas do filme, chama esse grupo de pessoas (que representam a nossa classe média) de "a classe perplexa", sempre assustados com tudo, temendo pelo amanhã. E dentro do contexto deles, a felicidade não passa de uma forma de poder, um interesse de ascender perante os demais. 

E depois de tanto blá blá blá, de tanta incoerência, de tantos sonhos (melhor dizer delírios) ilógicos, chega a sensatez do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade para encerrar essa jornada confusa, pois tem como ferramenta principal a ignorância e a falta de empatia pelo outro. Ele, Drummond, chama essas pessoas de herdeiros do medo. E está coberto de razão. 

Já o problema para mim, que aplaudiu o filme emocionado, reclamando apenas da curta duração, está um degrau acima disso: será que um dia tomaremos vergonha na cara e acordaremos para o que realmente interessa? Honestamente... Eu prefiro não arriscar uma resposta minimamente sensata.


domingo, 23 de agosto de 2020

Uma enciclopédia de boa música


Cada vez mais difícil ouvir boa música. Muito hit parade gratuito, babaca, apelativo, sexista e pouquíssimas - digo mais: raras - experiências musicais de qualidade. Mas o próprio país, leia-se a sociedade, é também culpado disso. Gostamos de música para dançar, berrar, repetir expressões e jargões chulos. Poucos são os brasileiros que de fato "ouvem" boa música, seja nacional ou estrangeira. 

E quando o assunto, então, é escrever sobre música, fica ainda mais difícil encontrar grandes autores. É de contar nos dedos. Arthur Dapieve é um desses. Conheci seu trabalho através do livro O trovador solitário, sobre um período específico do início da carreira do cantor Renato Russo, vocalista do Legião Urbana. Desde então virei fã assumido e sempre que sai algo novo dele, corro atrás nas livrarias. 

Quando me deparei nas prateleiras da Saraiva com um exemplar de Do rock ao clássico - 100 crônicas afetivas sobre música, comprei de olhos fechados, sem nem mesmo ler a sinopse. E valeu, ah se valeu!, cada segundo. Eu fiz a leitura render o máximo que pude, pois não queria que o livro chegasse ao final e quando ele chegou quase fui às lágrimas. Praticamente uma enciclopédia sobre boa música em todos os gêneros. 

O livro é dividido em cinco tomos: Rock, Brock, Músicas populares, Black music e Clássicos. E a cada um deles me deparei com experiências gratificantes, quase mediúnicas, sobre artistas magnânimos, que deram suas vidas para realizar um legado musical majestoso. 

Dapieve abre os trabalhos trazendo o Nirvana de Kurt Cobain e toda a revolução que o grunge trouxe para o universo rock n' roll (e bem fez ele, que quer ficar de boa com os jovens e fanáticos roqueiros logo de cara). Mas a banda de Seatle é só um pretexto para que ele entre de sola no mundo do rock e logo nos traz Roger Waters (para ele, o gênio do Pink Floyd), Joy Divison (banda que inspirou Renato Russo), Radiohead, System of a down, Lou Reed, Morrissey (o cabeça dos The Smiths), David Bowie, Bob Dylan e até mesmo a sempre magnífica Amy Winehouse (eu sei... vai ter roqueiro enjoado reclamando, mas cá entre nós, ela merece!).

Na segunda parte, ele apela para a nostalgia da geração que navegou pelos anos 80 e 90 e ouviu, curtiu e repetiu à exaustão bandas como Plebe Rude, Capital Inicial, Fausto Fawcett e os robôs efêmeros, Paralamas do Sucesso, RPM, Barão Vermelho, Ultraje a Rigor, Kid Abelha, Gango 90 e as Absurdettes, Titãs, Blitz, Ritchie, e ainda inclui na conta a magistral Cássia Eller e o mais recente fenômeno dos Los Hermanos. 

E depois de tanta pauleira, pedras rolando, o legado do rock in rio, ele adentra o universo inesgotável da MPB. Roberto Carlos, Bossa Nova, Jorge Drexler, Dorival Caymmi, Chico Buarque, Maria Bethânia, o recém falecido e genial Aldir Blanc, Paulinho da Viola, Fagner, música caipira, Clube da Esquina... Ufa! Só o terceiro módulo merecia um livro todo para si (e espero que Dapieve o faça um dia).  

Ele emenda na black music e mexe de vez comigo (sou suspeito para falar desse segmento, pois ele sempre influiu muito na minha formação cultural, principalmente o blues e o soul). Bill Evans, Paul Desmond, a guitarra falante de Jimi Hendrix, o rebolado inconfundível de James Brown (o Mr. Dynamite), Muddy Waters, Rolling Stones em Copacabana, Keith Jarrett, até o álbum de Tony Bennett e Lady Gaga (Cheek to cheek) deu as caras e me surpreendeu, quando eu o ouvi no spotify. Só senti falta foi de Aretha Franklin, um gosto que adquiri por conviver com meu pai, fã confesso da cantora. 

As últimas páginas chegam e minha apreensão idem. Bach, Beethoven, Mozart, Handel mostram suas garras centenárias e mostram que continuam mais atuais do que nunca. Contudo, malandro que só, Dapieve aproveita a deixa e para não terminar o livro de forma que os mais jovens o rotulem de melancólico, chato ou triste, insere histórias curiosas envolvendo a dupla Sacco e Vanzetti e o grupo de humor londrino Monty Python. Achei de uma grande sacada!

Terminada a última página, e como disse num parágrafo anterior, órfão de mais (sim, eu queria mais, pelo menos umas 500 páginas), eu chego à conclusão de que Do rock ao clássico deveria ser leitura obrigatória entre os leitores mais jovens desse país. Ele não fazem a menor ideia do que seja boa música e estão perdendo grandes experiências por pura vaidade e arrogância regada a testosterona. O que é, definitivamente, um crime cultural. 

E dito tudo isto só me resta ao fim do texto, lamentoso, perguntar: será que dá pra sonhar com um volume dois dessa pequena joia ou é pedir demais ao autor e à editora? Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O tamanho da impunidade


Nós REALMENTE podemos confiar naquilo que comemos? E no que vestimos? Podemos acreditar no padrão de qualidade e na ética daqueles que produzem os equipamentos que usamos para preparar nossos alimentos? Digo: podemos mesmo? Honestamente... Eu não sei vocês, mas eu nunca pus minha mão no fogo 100% por corporação ou empresa alguma. E se isso faz de mim uma pessoa paranoica, tenho de aprender a lidar com isso e com a sociedade conformada, que acredita em tudo. Contudo, entre desconfiar e dar o braço a torcer sempre preferi a primeira opção, por considerá-la mais íntegra em muitos casos. 

Quando eu era mais novo via minha mãe meio desconfiada com certas panelas, frigideiras, até daquelas antigas torradeiras cujo pão de forma saltava no ar quando pronto. E quando eram feitas de teflon, então, ela dizia: "sei lá... quem me garante que isso não é cancerígeno?". E uma ocasião ela raspou a dita cuja com uma faca e ao ver aquele pó preto em suas mãos ficou ainda mais ensimesmada. Hoje eu entendo ela. 

Digo que entendo somente agora porque tenho certeza que se ela assistisse ao polêmico e muito bem realizado filme O preço da verdade, do diretor Todd Haynes - realizador de longas antológicos como Velvet Goldmine, Não estou lá e Carol - ela certamente nunca mais compraria uma frigideira dessas! 

O preço da verdade nos traz a saga quase inglória do advogado Rob Bilott (Mark Ruffalo, simplesmente ótimo!), que é praticamente intimado por um fazendeiro de West Virginia a investigar a empresa Dupont, que ele acusa de contaminar o riacho perto de suas terras, levando à morte a maior parte do seu gado. E Rob, a priori, é a pessoa menos indicada para assumir um caso desses. E por quê? Porque ele costuma ser advogado de defesa de empresas como a Dupont. Mais do que isso: conhece grande parte de sua diretoria, o que levaria a um conflito de interesses gigantesco. 

Porém, após ir à fazenda e conhecer mais sobre os fatos ele decide assumir a causa, mesmo gerando certo desconforto para o escritório onde trabalha (e se tornou sócio recentemente). E é justamente nesse momento que ele descobre que as vacas mortas e a água contaminada é apenas uma reles ponta do iceberg. 

Da água contaminada e o gado morto à PFOA ou C8 (a substância cancerígena em questão); e da PFOA à descoberta do uso dela em frigideiras e outros utensílios de cozinha. E dessa descoberta ao... Pois é. É quando nos depararemos com o tamanho da impunidade que rege empresas como a Dupont ao redor do mundo. 

Mais do que se expor, complicar sua posição no escritório onde trabalha e ver seu casamento quase ruir, Rob terá de enfrentar o universo maquiavélico das grandes corporações que de tudo farão para vencer a causa na justiça, desde desmentir qualquer versão científica que aponte problemas na linha de produção até mesmo vê-la fazer acordos que ela própria não assumirá caso a verdade venha à tona. 

Tratam-se dos velhos tubarões de sempre (e já usei essa expressão recentemente numa outra crítica de cinema que fiz há pouco tempo sobre o filme Piedade, de Cláudio Assis) se utilizando das velhas artimanhas e do fato de que essas empresas têm ramificações no governo muito maiores do que simplesmente profissionais. E é dessa troca de favores entre políticos e empresários - coisa, aliás, que nosso país conhece bem há décadas - que nasce a ruína de milhares de famílias honestas e cidadãos de bem. E mesmo assim, tem trabalhador assalariado (e alienado) que as defenda com unhas e dentes, dizendo: "isso é só intriga da oposição ou perseguição política". 

Ao final do filme, ficou-me a sensação de estar diante de um grande estudo sociológico sobre a mentira que reina em nossa sociedade de consumo. E por um momento me peguei pensando no excelente documentário do diretor Michael Moore de nome Roger e eu. Nele, uma cidade norte-americana que praticamente vivia em função de uma empresa - que, por sinal, era idolatrada por seus habitantes - vê o local se tornar uma cidade fantasma assim que ela encerra suas atividades na região, levando a população à total miséria. Aqui, no longa de Haynes, é ainda pior: vidas foram descartadas e o máximo que se conseguiu até hoje foi uma série de "reparações financeiras". Como se isso fosse realmente possível!

Agora uma pequena ironia de minha parte (e eu adoro ironizar): após terminar a sessão, abro meu computador no Google e digito Dupont. O site da empresa aparece e é inegável a intenção da empresa em transparecer o máximo de ética possível. O que vejo enquanto desço a barra de rolagem são frases como "segurança e saúde", "respeito pelas pessoas", "comportamento ético", "proteção do planeta", etc etc etc. E fico pensando comigo: o que um processo que se arrastou na justiça ao longo de décadas e da vontade gananciosa de esconder a verdade do povo não faz!!!

E quando saio, enojado, do site da empresa fica-me preso à garganta um único pensamento: o quanto o mundo é sujo e covarde e como somos coniventes com isso. Mas eles são homens de negócios, ilustres, acima de qualquer suspeita, amados e idolatrados e o mundo continuará girando amanhã, depois de amanhã e no dia seguinte também, não é mesmo? Que seja. Só não me peçam para aplaudi-los, pois aí já é querer demais e o meu compromisso nesse mundo é outro.


sábado, 15 de agosto de 2020

O cronista visual da Guanabara


Como é bom ter acesso a boa informação sem precisar sair de casa, pegar trânsito e encarar fila em bilheteria... 

Em tempos de confinamento social (eu sei... não seguido por muita gente negacionista e nada afeita à acatar ordens estatais) e muito estabelecimento cultural fechado, torna-se para o colunista cultural uma saga hercúlea encontrar bons temas sobre o qual escrever. E ainda assim - acreditem! - é sempre uma grande surpresa, principalmente para os interessados em conhecimento, encontrar boas ideias que reapresentem a maneira de saírmos em busca de cultura, de informação de entretenimento. 

Foi exatamente isso que aconteceu essa semana, quando sem sair de casa pude apreciar a maravilhosa exposição virtual J. Carlos além do tempo, de curadoria de Rafael Peixoto, no site da Galeria Danielian, cuja sede física fica localizada no bairro da Gávea. 

Conheci a obra de J. Carlos uns 15 anos atrás, através de revistas antigas que faziam parte do acervo de uma biblioteca pública de subúrbio da qual fui sócio quando morava no Méier. E é díficil classificá-lo em uma só categoria: chargista, ilustrador, designer, cartunista, caricaturista, desenhista, ufa! Honestamente... Prefiro ficar com a expressão gênio do traço. Mais do que isso: J. Carlos foi um cronista visual de nossa cidade. E conheceu-a como poucos em sua época. 

Dito isto, a exposição realizada num 3D imersivo preenche de forma esplêndida a barreira de não podermos ver a exposição in loco. Foi minha primeira experiência com o formato e desde já adianto que fiquei encantado. Imaginava algo mecânico, sem graça, mas não foi essa a percepção que tive. Pelo contrário. É possível "passear" pela galeria, olhar quadro a quadro, subir escadas, puxar resumos... Há links os mais diversos (inclusive, para os interessados em comprar as obras, o valor de cada uma disponível). 

Vê-se um retrato básico de tudo que nossa cidade representou e representa até hoje: sátiras políticas - inclusive com as caricaturas de figuras famosas como Mussolini, Hitler, Churchill -, tipos populares, carnaval, as mulheres (que eram a coqueluche do artista, que o diga a melindrosa!, tanto que as roupas que desenhou para elas em suas telas viraram tendência junto ao mercado de confecção de roupas da burguesia que viveu aqueles dias), etc etc etc... Eu não quero me estender mais do que isso, senão estrago a surpresa de quem ainda não viu a expo. 

Era um nacionalista de mão cheia, volta e meia fazia questão de mostrar a bandeira nacional e os desafios pelo qual o país passava em seus trabalhos e combateu de forma ferrenha o fascismo que surgia naquele período. Certamente enfrentaria muita briga no Brasil de hoje!

Teve seus trabalhos publicados para revistas como Careta, Fon Fon e Tico-Tico, entre outras, além de anúncios publicitários que realizou para a Caixa Econômica Federal e a Souza Cruz. Por sinal, fica aqui uma dica para estudiosos de artes visuais e desenhos em geral: há uma série de trabalhos expostos que são estudos para capa de revista (ou seja, trabalhos ainda a lápis, crus). Logo, a expo é também uma grande oportunidade de conhecer um pouco do processo criativo do artista. 

Ao fim do passeio grandioso, fico na expectativa de que mesmo depois de passada a pandemia e suas consequências catastróficas, que outras galerias de arte e espaços culturais também ofereçam este formato virtual. Fiquei realmente impressionado com a qualidade da plataforma e o quanto de informação ela foi capaz de me proporcionar no conforto da minha residência.  

Já estou a espera da próxima aventura online, ansioso.

Nota: para quem quiser dar uma conferida, clique em https://www.danielian.com.br/


terça-feira, 11 de agosto de 2020

Refém do palco


Dentre as muitas coisas encantadoras que presenciei oriundas de hollywood, provavelmente a maior delas foi Judy Garland. Lembro-me da primeira vez que assisti em casa ao clássico O mágico de Oz, de Victor Fleming e George Cukor (e das outras dez seguintes também). Foi arrebatador. Ela era arrebatadora em todos os sentidos. E entrou para o projeto no meio do caminho - sua personagem, Dorothy, havia sido criada para Shirley Temple, que acabou recusando o papel - para transformá-lo num obra seminal. 

Havia uma aura mista de brilhantismo e apreensão na interpretação de Judy. E lembro-me que passei anos me perguntando se havia algum fantasma guardado no armário daquela mulher, pois somente isso explicaria tal antítese de sentimentos. Tudo parecia me dizer que sim. 

Os anos se passaram e como todo talento que se preze, além de estrela Judy tornou-se difícil, exigente, quase impossível. Mas não foi a única. Fazia parte de sua geração todo esse estrelismo latente. Entretanto, eu continuava me perguntando quais seriam os seus segredos tão bem guardados. Cheguei a fazer figa à espera de que um dia um filme sobre esse aspecto da sua vida fosse feito.

Enfim, esse dia chegou pelas mãos do diretor Rupert Goold. E se chama Judy: muito além do arco-íris

O recorte dado ao diretor não engloba o auge, a fama, as grandes personagens (embora Dorothy seja citada). Goold está, isso sim, mais interessado nos meses que antecedem sua morte. Nos traz uma Judy Garland falida, devastada, que vê seus filhos terem a guarda tomada dela, e principalmente: aquela na qual os estúdios não conseguem enxergar além de encrenca e confusão. Como último refúgio, para não sucumbir de vez à decadência, ela vai para Londres realizar uma série de shows. Mas as polêmicas, é claro, a acompanham. 

Garland precisa lutar contra tudo e contra todos (inclusive seus próprios demônios) para provar sua genialidade e fugir da eterna imagem de artista inventada pelas majors. Contudo, é uma mulher que também acumula amarguras, dentre elas a de precisar estar disponível para todos (leia-se: a indústria) o tempo todo. Ela é o expoente vivo da cultura do "e o show não pode parar!" e isso deixa nela marca indeléveis. Quase nunca dorme e os únicos amigos de fato, aqueles que conhecem a sua verdadeira história, são as pílulas que toma a todo momento para aguentar o rojão daquela vida atribulada. 

E nesse momento cabe aqui um aparte para parabenizar a atriz Renée Zellweger, que interpreta a cantora e atriz (e que ganhou merecidíssimamente um Oscar pelo trabalho). Ela capta de forma brilhante a dor, a angústia, o quanto teve de lutar para permanecer relevante dentro daquele meio. E mesmo assim, a todo momento, parece se perguntar: "será que eles nunca ficarão satisfeitos, nunca mesmo?". Em outras palavras: é uma mulher pela metade.

Porém essa metade, a que sobrevive, a que chega ao dia seguinte e ao outro e ao depois desse, é também refém do palco, da glória, dos holofotes. Não consegue absolutamente viver fora daquele mundo célebre, por mais que ele seja capaz de destruí-la num estalar de dedos, à hora que bem desejar. Judy Garland não veio ao mundo para ser Frances Ethel Gumm, uma mera dona de casa, mãe de família, bem casada. Não, meus amigos! Como bem diz no filme Louis B. Mayer, produtor de O mágico de Oz, ela veio ao mundo para brilhar. 

E a consequência disso é uma vida de infortúnios, dissabores e sacrifícios os mais diversos e sem prazo de validade.

Quando o longa termina três sentimentos me perseguem: 1) não entendo porque demorei tanto para assistir essa relíquia, que tem a coragem de mostrar o lado humano de Judy sem soar piegas; 2) ele merecia mais destaque no Oscar, além da vitória óbvia de Renée; e 3) eu vou morrer e ainda assim continuarei a admirar o talento e a história dessa mulher brilhante, que fez milhões sonharem tão alto e ainda assim lutou contra a vida para conseguir esboçar um simples sorriso. 

Quer mais? Então corram e procurem pelo filme no serviço de streaming mais perto. O verdadeiros fãs de cinema vão se surpreender!


sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Beirute, 08/2020

 

Era uma terça-feira como tantas outras

Agosto, 2020

as crianças brincam na praça 

idosos jogam na praça 

donas de casa vão ao mercado

maridos saem para trabalhar

jovens estudando em suas casas

a pandemia ainda não acabou 

o isolamento também não

como eu disse antes: 

uma terça-feira como tantas outras

até que...

São pouco mais de três da tarde 

quando a cidade - Beirute - para

o estampido 

(ou como diria Coppolla: o horror!)

seguido de um enorme cogumelo branco

a nova rosa de hiroshima

o prenúncio do desastre

gritos 

berros

correria 

gente ferida

gente soterrada

gente morta 

muita

muita gente morta

e ferida também

e assustada, então, nem se fala...

O homem que passeava de jet ski na praia 

na hora H

quase morre afogado 

mas ainda tem tempo para gravar em seu celular

a imagem distorcida da tragédia 

num apartamento as janelas se espatifam 

e a empregada só tem tempo de agarrar a criança 

e correr para longe, bem longe

"parecia uma bomba atômica",

falou um senhora para os jornalistas

"eu achei que era o fim do mundo",

gritou um pai apavorado,

procurando os filhos ao redor sem encontrar

"isso só pode ser coisa de terrorista",

comentou um professor universitário

"foi o Hezbollah, eu tenho certeza",

afirmou um certo presidente

Deus!

Diz que ainda me ouve!

Eu sei que Você ainda está por aí

ouvindo tudo

vendo tudo

sentindo toda a nossa dor

Tende piedade de nós!

As ruas

não 

o que sobrou das ruas

os destroços 

o homem que passou 18 horas soterrado 

até ser resgatado e aplaudido 

por aqueles que olhavam ao redor

um cineasta diz à CNN:

"já vi de tudo nessa vida, 

guerras, 

estupros, 

assassinatos,

intolerância,

governos corruptos,

mas nada 

nada que se compare a isso!"

De oficial mesmo somente: 

a) foi no porto

b) um silo de fertilizantes

c) e o culpado foi o Nitrato de Amônio

em frente a tv 

eu vejo tudo em technicolor

e minha tia pergunta se tem dessas coisas por aqui 

(digo: o tal fertilizante)

e logo aparece no jornal 

que a substância está sob controle das Forças Armadas

as pessoas que testemunham de perto o caos 

agora depõem em programas e noticiários 

e choram 

e agradecem a Deus, a Alá

por ainda estarem vivos 

por receberem a graça de continuarem vivos 

por mais um dia

mesmo sem saber até quando

até quando...

até quando...

até quando...

Uma pergunta que não sai da cabeça das pessoas

de praticamente todos 

nos últimos anos

andamos brincando de Deus

e flertando com a terceira guerra mundial 

e achando que o petróleo vale mais que o homem

o petróleo só, não!

tudo que possa ser transformado em dinheiro

até quando...

até quando...

até quando...

"até quando Deus quiser",

diz a mulher mais velha do Líbano,

"porque o dia em que Ele se enfezar, 

aí, meu amigo, já era"

Allahu Akbar

Amém

Cordeiro de Deus

que tirais o pecado do mundo 

tende piedade de nós

de nossa covardia

de nossa falta de vontade 

em querermos ser humanos

de nossa eterna ingratidão 

disfarçada de hipocrisia

de continuar seguindo na contramão da verdade 

do mundo 

da própria sociedade

tende piedade de nós, 

pelo amor de Deus!

Deus!

DEUS!!!

Ouça-nos antes que seja tarde

tarde demais 

tarde demais...


E ainda faltam quase cinco meses

para esse ano que sequer começou

acabar!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!


terça-feira, 4 de agosto de 2020

O amor não tem a menor coerência


Eu já fui traído pela vida ao acreditar num amor que não existia, num amor que somente eu senti. Mas quem nunca, não é mesmo? Hoje, passadas quase duas décadas, acredito que o amor é a grande incógnita disso que chamamos de vida. E mais: tornei-me um admirador quase psicanalítico de histórias sobre ele. Sejam no cinema, no teatro, em livros os mais diversos, até mesmo em exposições. Onde quer que o amor esteja, traduzido nas mais diferentes vertentes, eu corro atrás. Mesmo. E às vezes me surpreendo, mesmo. 

Com a série da globoplay Todas as mulheres do mundo, de Jorge Furtado e Janaína Fischer, e abertamente inspirada no filme homônimo do cineasta Domingos Oliveira, aconteceu exatamente isso. E nunca me senti tão alegre e envolvido com uma história dessas. Pareceu-me, em muitos momentos (logicamente não os sexuais!), ver a minha própria trajetória. 

Paulo (Emílio Dantas) e Maria Alice (Sophie Charlotte) se amam. Se é possível um casal acima de qualquer suspeita, são eles dois. São o típico casal "eles foram feitos um para o outro". E mesmo assim falham, erram, falam demais, perdem o clima, o tom, exageram, em suma, se perdem. E nem por isso deixam de tentar de novo. E justamente quando tudo parecia caminhar para o happy end Maria Alice, que estuda Balé, ganha uma bolsa e vai para Berlim. E nesse exato momento começa a saga de redescoberta de Paulo. 

E essa redescoberta vem na forma de inúmeras mulheres sensacionais: Adriana, Stella, Elisa, Laura, Martinha, Giovanna (sua mãe), Renata, Pamela, Gilda, Sara, Natália, Pink... E com cada uma delas ele sofre, se arrepende, se apaixona, enlouquece. E mais do que isso: se reinventa. 

São muitos os desafios de Paulo. Afinal de contas, são mulheres tão complexas quanto ele próprio. A que se enche de drogas lícitas e ilícitas e não consegue ser feliz sem elas, a obcecada pela fama e pela própria imagem, a trapezista libertária que faz análise para lidar com a traição do marido, a garota de programa cheia de dúvidas, mas que não sai do personagem da mulher forte, independente, a que acredita no poliamor e não nessa coisa "ultrapassada" que o heterossexualismo impõe há anos, até mesmo a melhor amiga, Laura (Martha Nowill), que se acha quarentona, superada, abandonada pela vida... E a cada tropeço, a cada término, a cada fossa. uma certeza paira a cabeça de Paulo: o amor é uma selvageria, não tem a menor coerência. 

A frase é de seu amigo de longa data, Cabral (Matheus Nachtergaelle, ótimo!), que sob a máscara de um derrotismo latente, abandonado pelo grande amor de sua vida, incorpora de forma brilhante um Zorba, o grego - personagem eternizado no cinema pelo extraordinário Anthony Quinn - versão tupi-guarani com direito a maços e maços de cigarros. É dele que surgem as grandes frases, os grandes questionamentos. Ele transpira lucidez pelos poros. Ah! E como o mundo anda precisando de lucidez! 

Maria Alice regressa, eles se casam, e novas dúvidas tomam a ribalta de assalto. Ninguém nunca prometeu que seria fácil. E não é. Porém, eles não conseguem viver um sem o outro. É simplesmente impensável. E é dessa impossibilidade que o amor se nutre. É dessa forma que ele nos joga contra a parede, revira os móveis da nossa casa, confunde nosso inconsciente. E que, pelo amor de Deus, continue assim! Pois de exato mesmo nessa vida só a morte e desta eu quero mesmo é distância. 

Ao fim de 12 episódios irretocáveis chego à conclusão de que não foi de todo mal aquele amor não correspondido 20 anos atrás. Ele foi, isso sim, necessário. Quando vi pela primeira vez Eu sei que vou te amar, de Arnaldo Jabor, eu tinha meros 16 anos, e cheguei à conclusão de que o amor era uma explosão mental, um torpedo querendo nos atingir a qualquer custo. Agora, quase três décadas depois, calvo, vejo em Todas as mulheres do mundo que esse sentimento é ainda mais complicado: ele é uma grande catarse, quase um jogo de xadrez, porém indispensável para que consigamos seguir em frente e encontrar o nosso lugar por aqui, enquanto estivermos por aqui. Valeu, Domingos! Por esse presente. 

E você, que leu este texto, viu a série como eu, e ainda assim não ficou satisfeito, chegou a chamar de pornografia barata? Assiste de novo. Você provavelmente não entendeu uma vírgula sequer... 

P.S (eu quase esqueci e nunca ia me perdoar por deixar isso de fora): a trilha sonora da série, Marisa Monte, Nara Leão, Elza Soares, Rita Lee, Alcione, Maria Bethânia, Elis Regina, Cássia Eller... É um caso à parte. Não somente embala o amor de Paulo e Maria Alice como tem vida própria. Ouçam a temporada toda, com carinho. Elas merecem!