O assédio. A cultura do estupro. O feminicídio. A misoginia. O eterno discurso do "saiba o seu lugar". Ser mulher, desde que eu comecei a entender como funciona a cabeça da humanidade, nunca foi uma tarefa fácil. Na verdade, eu invejo - e muito - as pessoas do sexo feminino. Fui criado numa família onde a maior parte das pessoas eram mulheres e com elas entendi o quão complexo (e desastroso) pode ser o universo masculino, principalmente quando eles assim o desejam. E acreditem: muitas vezes eles desejam apenas isso.
A graphic novel Desconstruindo Una me colocou em contato diretamente com esse universo sujo de uma forma extremamente autêntica e, por vezes, feroz. Mais do que isso: me fez repensar meu papel como homem nessa sociedade contemporânea cada dia mais machista e covarde. Na verdade, Una (protagonista e também nome artístico da quadrinista que dá cara à obra) é, muitas vezes, apenas um fio condutor para entendermos uma realidade ainda mais dura do que a própria dificuldade dela em lidar com seus revezes e também com a interpretação do restante da sociedade.
Em meio a uma série de assassinatos envolvendo prostitutas em Yorkshire cometidos por um assassino conhecido como Jack, o estripador, Una foi abusada e descartada por um desses muitos homens - que existem em qualquer lugar do mundo - afeitos à agressão e, principalmente, à diminuição das vítimas. Embora ela tenha sido violada, é ela também que sofre o juízo de valor amargo de vizinhos, colegas de classe e moradores da cidade onde mora. É chamada de vadia por onde passa e ai dela se pretender se levantar contra essa cultura do ódio e do desprezo.
Paralelamente à sua saga particular, a autora retrata, através de informações jornalísticas e históricas, casos famosos de mulheres que também sofreram na pele o mesmo tipo de violência, bem como ativistas que entraram para a história por se levantar contra isso. O resultado é um interessante misto de ensaio e drama existencial no formato nona arte.
Senti no álbum, à parte a questão da violência sexual, uma pegada muito parecida com a que tive quando li o extraordinário Persépolis, da escritora iraniana Marjane Satrapi (que também possui uma adaptação para os cinemas no formato animação). Ambas - Persépolis e Una - têm uma personalidade muita parecida, libertária, e jamais imaginaram que seriam vítimas da cultura opressiva dentro do próprio país. Recomendo aos leitores que conheçam e leiam as duas obras seguidamente, se tiverem essa oportunidade.
Ao fim da leitura, a sensação que me ficou é a de que vivemos numa civilização onde a falta de limites e o desrespeito gratuito ao próximo está na ordem do dia (pior: veio para ficar, de forma definitiva). E pensar que encontrei Una perdido por meros 10 reais numa mesa de promoções e saldos de um sebo no Largo do Machado e ele bugou a minha mente, explorando inúmeras dúvidas subconscientes em mim!
P.S: ou seja: nem sempre os grandes achados da cultura pop estão em megastores conceituadas e lojas que vivem de cobrar preços extorsivos enquanto afugentam os amantes dos livros e quadrinhos para idolatrar uma gente que vive de videogame, super-heróis inúteis e jogos de RPG.

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