sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Encarando o leão de frente


Eita: interjeição; usada para expressar surpresa, espanto, admiração ou susto. E Lenine, em seu novo álbum (e filme no youtube) professa todas essas vertentes. Não tem muito tempo o cantor e compositor pernambucano considerou abandonar o ofício. Mas não conseguiu. A música, quer que ele queira ou não, está dentro dele. Guia seus passos, suas intenções, seu modus operandi.

E nessa nova empreitada musical aguarde por muita emoção. Homenagens à esposa, ao neto. Parcerias luxuosas com Lula Queiroga, Lenine, o próprio filho, João Cavalcanti. Participações especiais de Maria Bethânia, Maria Gadú. E, claro, uma sonoridade única que só ele foi capaz de produzir nos últimos anos de MPB.

Seu megafone verbal está inspirado: deixa claro que não tem tempo a perder com vacilões e faladores de baboseira. E contrasta isso com a presença do folclore brasileiro e a mais fina arte tupiniquim.

Das 11 faixas, as que mais me ganharam foi "Boi xambá" e "Deita e dorme", mas no geral é um trabalho pra lá de intimista.

Digo mais: acompanho Lenine desde os tempos de Na pressão e Falange Canibal, e poucas vezes vi Lenine tão pessoal, tão direto, tão disposto a ir pro combate, descontente que está com a atual civilização. Contudo, também vejo aqui muito de "mantenho minha esperança ativa", "quero continuar tentando, lutando, enfrentando, encarando o leão de frente, ao preço que for".

E isso é legítimo, válido, da primeira à última faixa. Ouçam. De preferência, mais de uma vez. Apreendam suas palavras, sintam a melodia. Em meio a tantos falsos cantores, na verdade mímicos de quinta categoria, é tão bom ver alguém que sabe o que diz, sem freios e com qualidade. Logo, aproveitem. Ao máximo. A música também serve pra isso. 

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Dois centenários


Recebo a notícia através de fóruns e sites sobre cinema dos centenários dos atores Richard Burton (1925-1984) e Rock Hudson (1925-1985), ícones da chamada "Era de ouro do cinema hollywoodiano". E, claro, eu não poderia desperdiçar a chance de falar sobre a carreira de ambos.

A lembrança de Burton me toca mais fundo, pois ele era um dos atores favoritos do meu pai, que volta e meia me dizia, quando sentávamos em frente ao VHS ou ao DVD para assistir alguma coisa: "foi o artista mais elegante que hollywood já produziu". Achava que fosse um exagero de fã da parte dele, mas quando comecei a assistir aos seus filmes entendi perfeitamente o que ele queria dizer.

Richard Burton possuía um requinte que anda em falta no cinema americano. Interpretasse ele Shakespeare ou um mero soldado, e ainda assim ficaríamos mesmerizados com seu olhar, sua astúcia, sua verve interpretativa. Participou de clássicos eternos da sétima arte como 1984, Cleópatra, Os selvagens cães de guerra, Quem tem medo de Virginia Woolf?, A megera domada, O manto sagrado (que eu cansei de rever na época em que a Rede Globo passava coisas boas de madrugada), Zulu e também de um dos meus filmes preferidos desde que eu me entendo como cinéfilo: Equus.

Seus dois casamentos com a atriz Elizabeth Taylor renderam muitas histórias em hollywood e ele também faz parte da galeria de artistas geniais que nunca ganharam um Oscar (e depois querem que eu acredite no juízo de valor dessa Academia!). Mais do que isso: junto com o ator Peter O'Toole - o eterno Lawrence da Arábia - ele é líder em indicações à estatueta, o que torna o esquecimento ainda mais vergonhoso.

Já Rock Hudson eu conheço menos a obra e mais as polêmicas que o envolveram. Homossexual não assumido, ele manteve por quase toda a sua carreira o mistério por trás de sua vida sexual, até sua morte, vítima da AIDS (numa época em que a doença era chamada por muitos de "peste gay", gerando muitas discussões em meio à opinião pública). O casamento com Phyllis Gates - que muitos acreditavam ser apenas por interesse comercial - também foi alvo de muitas especulações.

Conheço mais a fama de Hudson do que sua própria carreira. Até o presente momento, de seus projetos, só assisti Tobruk, Adeus às armas e Missão no Ártico (também conhecido como Estação Polar Zebra) e reconheço que estou em déficit com a filmografia do artista.

Relembrar desses dois ícones do cinema americano me fez lembrar (mais um vez) do quanto, nos últimos anos, temos falado mais dos grandes artistas que partiram do que de uma nova geração realmente relevante para a indústria cinematográfica, e isso é por demais preocupante. Que os deuses do cinema nos tragam novos ares. Nós, cinéfilos raiz, merecemos!

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Operístico? Jura?


De onde vêm essa geração de artistas que se dão tamanha importância ao ponto de se acharem essenciais, não somente para a cultura pop, mas também para a sociedade contemporânea? Não bastasse a metidice de cantoras como Britney Spears (a eterna garota playback) e Avril Lavigne, reboladoras de bundas (vulgo divas) e o "artista negro fascinado pelo nazismo que teve show barrado em SP" (não, é isso mesmo que vocês leram!), agora aparece Rosalía em seu novo álbum, Lux, quase se apresentando como messias da nova era.

Primeiro de tudo: quem chamou Rosalía de "grande voz" precisa urgentemente ouvir Whitney Houston e Tina Turner no auge de suas carreiras. O sarrafo vocal diminuiu - e muito! - na última década, ao ponto de chamarmos de excelência artistas que sequer têm compromisso com cantar ao vivo quando o lugar exige. Sim, eu sei... É triste.

Em "Sexo, violencia y llantas", primeira faixa de Lux, Rosalía já entra de sola desagradando religiosos de plantão com a frase "Quem me dera viver entre as duas coisas: primeiro amarei o mundo e depois amarei Deus". E pela tiração de sarro com os devotos fanáticos, até aí problema nenhum. Contudo, o conjunto da obra ao longo das canções acaba por construir uma espécie de rito da soberba que, certamente, incomodará aqueles que já tem implicância com esse tipo de pessoa esnobe que acha que é estrela, mesmo quando não é realmente.

"Não sou uma santa, mas sou abençoada" (em "Relíquia"); "Eu sei que fui feita para divinizar" (em "Divinize"); "O prazer anestesia minha dor, a dor anestesia meu prazer, Eu sou o nada, eu sou a luz do mundo" (em "Porcelana"); "Meu Cristo chora diamante" (em "Mio Cristo Piange Diamanti"), além de toda a dor do mundo cantada - quase confessada - em "Berghain". No fim, o que ouvimos é um festival de ostentações que poderiam perfeitamente ser substituídas por músicas melhores, sem tanta polêmica gratuita (que, infelizmente, é a cara dessa nova geração musical). E tudo isso disfarçado de clima operístico, só para parecer sofisticado.

E Rosalía ainda arranja tempo para chamar Deus de stalker, confecciona a "rumba do perdão" e passeia em meio a noivas robôs e o dito mundo novo. Quanto exagero!

Sei que serei escalpelado pela base doentia de fãs da cantora, mas... não dá. Venho de um outro tempo. Um tempo em que mudávamos as estações de rádio (o que é rádio hoje em dia mesmo?) e nos deparávamos com artistas como Sinéad O'Connor, Annie Lennox, Barbra Streisand, Nina Simone e Celine Dion, entre outras feras. Logo, fica quase impossível chamar qualquer coisa de genial. Aliás, tenho uma teoria de que a palavra genialidade perdeu o seu sentido no século XXI, mais afeito à identitarismos vazios e discursos midiáticos que em nada acrescentam à realidade nua e crua.

Termino de ouvir o álbum, pensando: "o que virá a seguir?", "será que já ultrapassamos todas as expectativas da falta de bom senso?". Infelizmente, levando-se em consideração o que se tornou o show business, às vezes parece que o pior ainda nem apareceu de fato. E isso é assustador. Logo, oremos por dias musicais melhores.  

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Por que tamanho ódio e desprezo por elas?


O assédio. A cultura do estupro. O feminicídio. A misoginia. O eterno discurso do "saiba o seu lugar". Ser mulher, desde que eu comecei a entender como funciona a cabeça da humanidade, nunca foi uma tarefa fácil. Na verdade, eu invejo - e muito - as pessoas do sexo feminino. Fui criado numa família onde a maior parte das pessoas eram mulheres e com elas entendi o quão complexo (e desastroso) pode ser o universo masculino, principalmente quando eles assim o desejam. E acreditem: muitas vezes eles desejam apenas isso.

A graphic novel Desconstruindo Una me colocou em contato diretamente com esse universo sujo de uma forma extremamente autêntica e, por vezes, feroz. Mais do que isso: me fez repensar meu papel como homem nessa sociedade contemporânea cada dia mais machista e covarde. Na verdade, Una (protagonista e também nome artístico da quadrinista que dá cara à obra) é, muitas vezes, apenas um fio condutor para entendermos uma realidade ainda mais dura do que a própria dificuldade dela em lidar com seus revezes e também com a interpretação do restante da sociedade.

Em meio a uma série de assassinatos envolvendo prostitutas em Yorkshire cometidos por um assassino conhecido como Jack, o estripador, Una foi abusada e descartada por um desses muitos homens - que existem em qualquer lugar do mundo - afeitos à agressão e, principalmente, à diminuição das vítimas. Embora ela tenha sido violada, é ela também que sofre o juízo de valor amargo de vizinhos, colegas de classe e moradores da cidade onde mora. É chamada de vadia por onde passa e ai dela se pretender se levantar contra essa cultura do ódio e do desprezo.

Paralelamente à sua saga particular, a autora retrata, através de informações jornalísticas e históricas, casos famosos de mulheres que também sofreram na pele o mesmo tipo de violência, bem como ativistas que entraram para a história por se levantar contra isso. O resultado é um interessante misto de ensaio e drama existencial no formato nona arte.

Senti no álbum, à parte a questão da violência sexual, uma pegada muito parecida com a que tive quando li o extraordinário Persépolis, da escritora iraniana Marjane Satrapi (que também possui uma adaptação para os cinemas no formato animação). Ambas - Persépolis e Una - têm uma personalidade muita parecida, libertária, e jamais imaginaram que seriam vítimas da cultura opressiva dentro do próprio país. Recomendo aos leitores que conheçam e leiam as duas obras seguidamente, se tiverem essa oportunidade.

Ao fim da leitura, a sensação que me ficou é a de que vivemos numa civilização onde a falta de limites e o desrespeito gratuito ao próximo está na ordem do dia (pior: veio para ficar, de forma definitiva). E pensar que encontrei Una perdido por meros 10 reais numa mesa de promoções e saldos de um sebo no Largo do Machado e ele bugou a minha mente, explorando inúmeras dúvidas subconscientes em mim!

P.S: ou seja: nem sempre os grandes achados da cultura pop estão em megastores conceituadas e lojas que vivem de cobrar preços extorsivos enquanto afugentam os amantes dos livros e quadrinhos para idolatrar uma gente que vive de videogame, super-heróis inúteis e jogos de RPG.

domingo, 9 de novembro de 2025

Brumário de incertezas


2025: falam de "censura", de "ditadura", da "falta de liberdade de expressão" (o que, na maioria das pessoas que falam, nada mais é do que "direito de esculachar o próximo a hora que quiser e não ser responsabilizado por isso"), falam até de "fim dos tempos". Só não conhecem mesmo a história do Brasil. Não querem nem ouvir falar. Ler pra quê, perda de tempo isso. Cultura? Conhecimento? Não serve pra nada essa joça.

Termino de assistir O Agente secreto, de Kleber Mendonça Filho, o filme mais aguardado do ano (pelo menos, para mim), dois prêmios no Festival de Cannes (Melhor diretor e ator, para Wagner Moura) e representante do Brasil à uma vaga no Oscar de melhor filme internacional do ano que vem. E mal os créditos começam a subir na tela, percebo de cara o quanto o Brasil é uma doença crônica, cujos sintomas só se acentuam, ganham novas dimensões com o passar do tempo.

1977: acompanhamos a jornada de Marcelo (Wagner Moura, fantástico!), um pesquisador concursado que precisa se esconder longe de sua cidade, pois perdeu o seu cargo e passou a ser perseguido por bater de frente com conflitos de interesse promovidos por uma parcela da classe empresarial que só consegue se enxergar como dona de tudo - e de todos - nesse país que adora passar pano para endinheirados e capitalistas tendenciosos. Pior do que isso: viu sua esposa sucumbir na mão dessas pessoas.

Ele encontra abrigo no prédio administrado por Dona Sebastiana (Tânia Maria, a maior revelação de todo o elenco). Ali, encontra outros "refugiados" e perseguidos pelo sistema, à espera de um passaporte que os tire do país. O maior sonho de Marcelo é ir embora do Brasil com seu filho, principalmente depois que descobre que sua cabeça está a prêmio. E o relógio que move seus pensamentos, corre à velocidade da luz.

Começa a trabalhar numa repartição onde é responsável pelo setor de arquivologia, que o coloca em contato com o pior da rotina policial daqueles tempos, e vê os desmandos e abusos de uma classe desaforada que adora acumular privilégios e se dizer de grande importância para a realidade nacional. Seu objetivo (melhor dizer: sonho) é muito claro. O problema mesmo é executá-lo. E aqueles que a priori poderiam ajudá-lo a conquistar tal desejo, parecem tão presos - ou mais - ao sistema do que ele.

O resultado? Terrível, não tenham a menor dúvida.

Kleber mescla folclore e cinzas numa narrativa poderosa de quase três horas, mas que em nenhum momento me cansou. Alia carnaval, a lenda urbana da perna cabeluda (que, segundo o mito pernambucano, matava pessoas à noite, nas ruas), referências cinematográficas, imagens de arquivo e um sentimento de niilismo atroz, que persegue o espectador a cada frame como uma faca na jugular.

Usei no título do post a expressão Brumário, que remete ao segundo mês do calendário revolucionário francês, que ia aproximadamente de 22 de outubro a 20 de novembro, mas no seu sentido original, que é o de neblina ou nevoeiro. Era exatamente esse o clima da época, repleto de tensões e informações ocultadas da população. Tudo, obviamente, repleto de incertezas incômodas e que ainda geram desgaste e incompreensão até os dias de hoje.

Muitos criticaram na internet o final escolhido pelo diretor. O chamaram de "frustrante", "decepcionante", "broxante"... Achei-o, na verdade, extremamente coerente com o período reconstituído (aliás, no quesito reconstituição, o longa é uma joia rara - e como é bom ver alguém que sabe trabalhar com a ideia de passado de forma tão lúcida). Muita coisa foi destruída, desmentida, estraçalhada, após o fim do regime cívico-militar. Logo, querer ver todo o desfecho esmiuçado, mastigado, com início, meio e fim nos seus devidos lugares, naqueles tempos, era uma tarefa quase impossível.

Na verdade, o que Kleber Mendonça entrega aos seus espectadores é o mesmo que os militares da época entregaram aos familiares de quem morreu no período: praticamente um ponto de interrogação, um "se vira" para decifrar essa maracutaia toda. E nisso ele foi impecável. Se O Agente secreto chegará ao Oscar ou não, não faço ideia (e ainda é muito cedo para sabermos). Mas que o longa definitivamente merece o seu lugar ao sol, ah merece! E muito! Agora vão lá vocês assistir e tirem suas próprias conclusões.

domingo, 2 de novembro de 2025

O mundo das artes plásticas agora é isso?


Vejo a escultura América, do "artista" Maurizio Cattelan - aquele que, não tem muito tempo, fez sucesso no mundo das artes com uma banana presa numa parede com uma fita isolante - e penso comigo: "acabou mesmo! isso que chamam de artes plásticas virou piada de vez no século XXI". A nova façanha de Maurizio é uma vaso sanitário coberto de ouro 18 quilates, que será leiloado a 10 milhões de dólares.

Volto no tempo e me pergunto o que os grandes nomes da arte (Van Gogh, Monet, Leonardo Da Vinci, Picasso, etc) diriam a respeito disso. Provavelmente? Acho que tentariam uma outra carreira, tamanho o despautério do cenário atual.

Ver América fez eu me lembrar de Vik Muniz reposicionando todo tipo de lixo dentro de uma aterro sanitário de forma a criar composições que ele pudesse fotografar de cima (para saber mais a respeito, procurem o documentário Lixo Extraordinário, de Lucy Walker); de Banksy e suas intervenções urbanas, repletas de questionamentos e denúncias ao mundo contemporâneo; e também do tubarão em conserva criado pelo rei das polêmicas, Damien Hirst. Anexem a tudo isso os manifestantes que andaram jogando sopa em quadros dentro de grandes museus ao redor do mundo, e o caos está completo.

Não sei ao certo onde foi parar a grandeza de trabalhos síntese das artes visuais como Guernica (de Picasso), Mona Lisa (de Da Vinci), O grito (de Edvard Munch), O beijo (de Gustav Klimt), mas uma coisa é certa: a nova geração - e eu confesso que sinto até medo quando ouço essa expressão atualmente - não quer saber de nada disso. O negócio deles é capitalizar em cima do nonsense, do vulgar, do ridículo.

É como os desfiles de moda da Balenciaga com modelos atravessando a passarela no meio da lama e sacos de papel de pão sendo vendidos como bolsas de grife caríssimas para mongoloides que não perdem a chance de estar por dentro da moda, pois o que verdadeiramente importa é: ser fashion.

E em tempos de inteligência artificial sendo treinada (leia-se: roubando ideias de criadores do passado) para produzir aberrações estéticas e plágios em alta definição, eu tenho até medo das cenas dos próximos capítulos. Se foram capazes de inventar até uma atriz digital (digitem Tilly Norwood no Google e deem enter), imaginem o que AINDA vem por aí. Será esse o começo da idade das trevas cultural? Torço para que não.

Enquanto curadores e marchands se digladiam ferozmente pelas invencionices nefandas da pós-modernidade, acompanho tudo de longe pela internet e me assombro com a incapacidade do ser humano em voltar a ser algo produtivo (e normal) novamente. Agora chega! Deixa eu ir ali ver um filme ou ler um livro, que eu ganho mais...