sábado, 27 de julho de 2024

O mestre da xilogravura


O sábado hoje começou deprê desde cedo...

Não sei se já disse isso anteriormente neste blog (e caso não tenha dito, digo agora), mas sou um fascinado desde moleque por artes visuais. Minha maior frustração na vida é não saber desenhar. A literatura entrou na minha vida como plano B, pois queria de fato era ser quadrinista ou cartunista ou ilustrador ou algo nessa linha.

Desabafo feito, recebo bem triste - e atrasado - a notícia do falecimento do mestre da xilogravura J. Borges, um dos cidadãos mais brasileiros (e regionais) cujo trabalho tive a felicidade de acompanhar ao longo da vida. Bezerros e o restante do país com certeza choram a perda de seu filho pródigo.

Foram 88 anos de um artista único, ímpar, capaz de transformar o que parecia simples na teoria numa arte complexa, arrojada. Xilogravurista, cordelista, poeta, Borges era uma amálgama de referências, sempre exaltando o nordeste e, principalmente, seu estado, Pernambuco. 

Na década de 1970 suas gravuras começam a aparecer em programas televisivos e sua obra passa a ganhar outra dimensão, chegando a ser notado por inúmeros colecionadores e marchands. Expôs fora do Brasil (França, Alemanha, Itália, Venezuela, Cuba, Suíça, México, EUA...), chegando até mesmo a dar aulas de entalhamento no exterior. 

Duas características marcam profundamente o seu trabalho: 1) pouquíssimos artistas conseguiram decifrar a cultura nordestina como ele; e 2) ele sempre vendia seus quadros para o público a preços acessíveis (o que, de certa forma, ajudou - e muito - a popularizar sua obra dentro do território nacional). Além de autodidata, era versátil em suas criações, que iam desde cartazes e capas de livros (Eduardo Galeano e Jose Saramago tiveram obras ilustradas por ele), bem como utensílios de cozinha e até brinquedos artesanais. 

Entre os vários prêmios que recebeu ao longo da carreira, é preciso destacar a comenda da Ordem do Mérito Cultural e o prêmio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) na categoria Ação Educativa/Cultural. E em 2016 foi enredo da escola de samba Acadêmicos da Rocinha.

Trata-se de mais um pilar da nossa autêntica cultura que nos deixa quando mais precisamos de referenciais nessa sociedade perdida e interesseira. Uma pena!


segunda-feira, 22 de julho de 2024

A morte de Eminem ou da cultura pop?


Eu sempre achei o rapper Eminem um revoltadaço com cara de sonso, de "tô nem aí pra essa porra toda que chamamos de mundo". E quando assisti ao filme 8 Mile - Rua das ilusões, do diretor Curtis Hanson, pelo qual chegou a ganhar um Oscar de melhor canção, tive ainda mais certeza disso. Mas como sua via de expressão é o hip-hop, pensei: "então está tudo certo". Vejo o estilo musical, desde que o ouvi pela primeira vez, como um grande desabafo ou tapa na cara do sistema.

E com seu novo álbum, The death of Slim Shady (Coup de Grâce), ela leva isso à máxima potência. Em muitos sites de música já falam até que o cara enlouqueceu de vez! Será o fim dele ou simplesmente a cultura pop que virou pó? 

Slim Shady, alterego de Eminem, escracha geral do showbiz sem dó nem piedade, e com uma simplicidade assustadora. Canção a canção, ele questiona a autenticidade das personalidades públicas e a obsessão da cultura pop com a celebridade. E eu que sou crítico em demasia de quem coloca tudo na conta do status e da riqueza, fiquei realmente impressionado com os colhões do compositor. 

Eminem pede que as pessoas sejam elas mesmo ao invés de meras fotocópias embaçadas de divas pop fúteis, que só faltam falar com a bunda, e valentões cheios de marra e atitudes forjadas. Ou seja: prevejo ele sendo atacado de tudo quanto é lado nas próximas semanas, principalmente por artistas do próprio segmento do qual faz parte. 

Os nomes das faixas por si só já fornecem um leve aviso sobre o conteúdo das letras: "Evil", "Antichrist", "Trouble", "Lucifer", "Guilty conscience 2", "Bad one", "Somebody save me"... o cantor constrói um bunker de acusações sobre a atual sociedade, contaminada por redes sociais descartáveis e costumes cada vez mais deploráveis. E, claro, com um "fuck off" e um "shut up!" entre uma rima e outra para não perder o costume. 

E parece, a priori, que vem agradando bastante gente: The death of Slim Shady tirou o álbum da queridinha do momento, Taylor Swift, The tortured poets department, do topo das paradas de sucesso. Porém, cabe aqui um breve aviso: só ouça o álbum se estiver mesmo de saco cheio dessa babaquice toda em voga. Não é um trabalho musical para bajular moralistas e baba-ovos. Portanto, a cara do Eminem.   

Agora é com vocês!


quarta-feira, 17 de julho de 2024

De olhos bem fechados, 25 anos


Como precisar o que é um clássico hoje em dia, em meio a uma geração que chama de antigo filmes que mal completaram uma década de existência? Acreditei por muitos anos que os clássicos eram, em sua grande maioria, longas em preto-e-branco e demorei a incluir os coloridos entre eles (que bom que essa fase já passou!).

Com o avançar das décadas e após conhecer produções como Reds, Apocalipse now, O poderoso chefão, Bonnie e Clyde, dentre outros, fui apurando meu gosto e, por conseguinte, minha percepção dos fatos. Hoje entendo o clássico como um objeto que alterou profundamente minha forma de pensar o mundo e a própria arte. E nesse sentido De olhos bem fechados, que completa 25 anos de existência em 2024, é um verdadeiro achado. Mais do que isso: é um tapa na cara.

Último projeto do mestre Stanley Kubrick, De olhos bem fechados trata sobre o sentimento da incerteza (e nada - acreditem! - pode ser mais cruel do que isso).

Bill Harford (Tom Cruise) é o estereótipo do homem bem sucedido, casado com uma bela mulher, Alice (Nicole Kidman), e que acredita piamente estar vivendo o casamento perfeito. Até que após uma festa Alice lhe confessa ter sentido atração por outro homem no passado e que quase o abandonou, bem como a filha do casal, por ele. 

Bill surta e precisa urgentemente desconstruir o seu mundo particular, aquele que com tanto esforço ele tentou preservar, dando-lhe a pecha de exemplar. Ele sai esbaforido pelas ruas de Nova York com a imagem da traição de Alice na cabeça. Vai a uma reunião secreta numa mansão que parece a priori afastada do resto do mundo e descobre um outro modelo de sociedade que o deixa ainda mais aturdido. Em suma: Bill descobre que seres humanos são nada mais, nada menos, do que incógnitas. 

Baseado no livro Breve romance de sonho, do escritor austríaco Arthur Schnitzler, o filme encerra a carreira de Kubrick, outorgando-lhe o rótulo de grande construtor de personagens complexos e tramas fortes. E o maior mérito do filme está justamente em ser provocativo sem precisar apelar para a vulgaridade ou o sexo gratuito (algo que hollywood costuma realizar com mais frequência do que deveria!).

Cruise e Kidman eram casados na época e, até hoje, muita gente comenta que a produção foi meio que o pontapé inicial para o divórcio de ambos. Polêmicas à parte, ainda vejo De olhos bem fechados como um dos melhores exemplares cinematográficos sobre a grande catarse que é o casamento e o viver a dois, que muitos ingênuos preferem tratar como uma grande ilusão ao invés de encarar a realidade nua e crua.  

Se tiverem a chance, caros leitores, vejam (ou revejam) hoje essa pequena joia. Sua proposta continua irretocável.


quinta-feira, 11 de julho de 2024

R.I.P Shelley Duvall


É impressionante como nos últimos anos hollywood se despediu de pessoas que marcaram profundamente a minha adolescência (principalmente o período em que eu vivia dentro das videolocadoras à caça de VHS antigos e nostálgicos). Não tem nem duas semanas vimos Donald Sutherland partir e antes dele outras figuras lendárias que fazem com que a sétima arte nunca seja esquecida em sua genialidade (Jean-Paul Belmondo, Marcello Mastroianni, etc).

A perda da vez é Shelley Duvall (aos 75 anos) e, para mim, é praticamente impossível não associá-la logo de cara com a Wendy Torrance de O iluminado e vê-la fugindo de Jack Nicholson e seu machado ensandecido pelos corredores do hotel overlook. Mas acreditem: ela foi bem mais do que essa cena hoje cult.

Desde já, me ressinto diante dos leitores deste blog: eu não assisti tanta coisa com Shelley quanto gostaria (e pretendo corrigir essa injustiça procurando por longas antigos com ela pela internet), mas do pouco que a vi em cena me impressionei - e muito. Shelley é uma figura que vai fazer falta na indústria cinematográfica norte-americana. 

Ela cantou, dançou, sensualizou (embora tivesse uma silhueta meio andrógina que não coubesse no estereótipo do que os EUA gostavam de vender como beleza), foi a Olívia palito, namorada do Popeye no subestimado longa do diretor Robert Altman, esteve em Nashville - um marco do cinema made in USA, até hoje inimitável -, marcou presença em Noivo neurótico, noiva nervosa, de Woody Allen e Os bandidos do tempo, filme de Terry Gilliam que precisa ser redescoberto urgentemente, e até na clássica série de TV Baretta, com Ben Gazzarra, deu seu recado.

Muita gente nunca entendeu quando ela simplesmente sumiu de hollywood e preferiu permanecer no ostracismo (certamente por alguma sacanagem que fizeram com ela, como aliás é bem a cara do american way of life!). E agora eis a triste e derradeira notícia de sua morte. Eu ainda a imaginava regressando para um último longa com um diretor de renome. Infelizmente, suas complicações com a diabetes não tornaram o meu sonho possível. 

Enfim... está ficando cada vez mais difícil ser cinéfilo em meio a tantas despedidas e renovações tão pífias nos últimos anos.


domingo, 7 de julho de 2024

Os shark movies


Essa semana andei meio derrubado por dores ciáticas que me fizeram ficar ilhado dentro de casa. Some a isso a falta de boas opções culturais e livros medianos que não valem um comentário, eu quase acabei não postando nada de relevante. Mas eis que vejo uma matéria de jornal falando do encanto renovado pela nova geração aos filmes de tubarão (e eu sou louco por eles, independente de sua qualidade artística).

Logo, achei que valia a pena um dedo de prosa sobre o tema. 

Desde que Steven Spielberg lançou, em 1975, o hoje mais do que cult Tubarão, com o trio Roy Scheider, Richard Dreyfuss e Robert Shaw, ele sem saber construiu as bases de um subgênero que entra ano, sai ano, continua dando o que falar junto aos cinéfilos mais apaixonados. De onde vem tanta admiração por esses animais cartilaginosos e selvagens? E por que parece que estamos quase sempre torcendo por eles?

Hollywood já fez de tudo com essas criaturas: na franquia Sharknado encheu um tornado deles e tocou o rebu na cidade; em Megatubarão - no qual divide o protagonismo com o astro Jason Statham - ganhou o status de figura pré-histórica; já no exótico Do fundo do mar tiveram seus cérebros aumentados por uma proteína com o intuito de descobrir a cura para um tipo raro de câncer e se transformaram em máquinas de matar ultra inteligentes...

O longa clássico de Spielberg continua sendo imbatível (nenhuma das três continuações da franquia atingiu os mesmos índices de bilheteria), mas é possível se divertir com bons exemplares: Águas rasas, de Jaume Collet-Serra, traz uma jovem médica que acaba de perder a mãe, indo surfar no México e ficando encurralada por um tubarão assassino; já Perigo em alto mar, de Andrew Traucki, traz um grupo de amigos que, ao saírem de férias pelo mar, acabam sofrendo um naufrágio, tentam nadar até uma ilha próxima, mas são surpreendidos por um terrível tubarão branco da região; e o mais recente - e surreal - Desespero profundo, de Claudio Fäh, acompanha os sobreviventes de um acidente de avião presos debaixo d'água que precisam sair dali em meio a tubarões que circulam na área.

Tenho uma teoria particular de que os shark movies seguem o mesmo parâmetro dos filmes de terror sobre exorcismo: precisam existir para todo o sempre. Enquanto a sétima arte existir, eles existirão, pois sempre haverá uma legião de fanáticos querendo saber mais sobre eles.

E com um adendo: nos últimos anos, cresceu a associação entre o absurdo e este subgênero cinematográfico. Eles, o tubarões, já não precisam mais ser críveis ou abalizados pela biologia ou pela ciência. Precisam, isso sim, matar o que (ou quem) for possível, não importa em que circunstâncias ou cenários. E, claro, com muito sangue espalhado no mar e brutalidade.

E não é que me deu vontade de fuçar no you tube agora mesmo e procurar uma relíquia dessas para assistir hoje à noite?  


quarta-feira, 3 de julho de 2024

Rascunhos (II)

 



O ano de Adélia Prado

Em meio a tantos não-leitores e tanta gente fútil que só sabe falar mal da literatura brasileira, é um grande respiro ver que 2024 se tornou o ano da escritora e poeta Adélia Prado, vencedora dos prêmios Camões e Machado de Assis (concedido pela ABL).

Autora de O coração disparado (vencedor do prêmio Jabuti em 1978), Bagagem, O pelicano, Vida doida, entre outras obras, é considerada por muitos como a maior poeta do país em atividade e quem já a leu entende bem o porquê. Seu vocabulário é simples e a linguagem é coloquial; retrata o cotidiano sob um olhar feminino (sem, no entanto, ficar presa a conceitos como feminismo ou libertário) e volta e meia recorre ao erótico, mas sem soar vulgar, ofensivo. Leiam! Valerá cada segundo do seu tempo. 


2 x Cinema nacional antigo 

Superoutro, de Edgard Navarro (1989), mistura sátira e a degradação moral da sociedade brasileira durante o governo Sarney de um jeito que o cinema brasileiro, infelizmente, não faz mais hoje em dia. O que é uma pena! E o curta Assaltaram a gramática (1983), de Ana Maria Magalhães, é um delicioso delírio poético que nos traz Waly Salomão, Ana Cristina César, Chacal, Francisco Alvim e Paulo Leminski no apogeu de suas capacidades criativas - e tudo muito bem acompanhado pela canção título na voz de Lulu Santos. 

É possível ver ambos no youtube. 


R.I.P Ismail Kadaré e Robert Towne

Dois mestres, dois sublimes escritores. O primeiro não só colocou a Albânia no mapa do mundo como lutou contra a tirania e a opressão dentro do próprio país. O segundo é quase um gênero cinematográfico no quesito roteiro, por todas as obras primas que entregou (e, dentre tantas, vale a pena destacar Villa - o caudilho, Chinatown, Operação Yakuza, Greystoke: a lenda de Tarzan, Busca frenética...).

E a consequência cruel disso: a de que a cultura pop continua perdendo os seus melhores e sendo substituída por qualquer um (de preferência, viciados em status e cifras).


Ler Clarice deveria ser obrigatório 

Leio (de novo) Uma aprendizagem ou O Livro dos prazeres, de Clarice Lispector, numa sentada. O resultado: o espanto ainda maior do que o ocorrido na primeira leitura. Não é somente a indecisão e os dilemas de Lóri que estão em jogo, e sim o de toda uma geração, perdida, sufocada em meio a tantas cicatrizes e derrotas. E mesmo que Ulisses fosse um gênio da filosofia, um Nietzsche, um Schoppenhauer, conseguiria ajudá-la em sua integralidade. Porque ela precisa vivenciar tudo isso sozinha, está por sua conta (só assim aprenderá, concluirá sua jornada). E pensar que ele foi escrito em pleno regime militar, repleto de autoritarismos e dogmas sociais. 

Clarice não ter um Nobel de literatura é, definitivamente, um absurdo.