Depois de passar toda a minha adolescência lendo clássicos da literatura brasileira e internacional (com destaque para meu eterno encantamento com Shakespeare e Fernando Pessoa) descubro a beat generation meio por acaso. E me deslumbro de cara. Eles enfrentavam o sistema, negavam o estabilishment americano com unhas e dentes. Eram outsiders até a raiz do cabelo. E com Jack Kerouac aprendi que os loucos, os incompreendidos, os relegados à segundo plano, mereciam toda a atenção do mundo.
On the road pôs meu mundo particular de cabeça pra baixo. E ele se encontra lá até hoje. Eu sei... Vocês devem estar se perguntando: "Mas esse texto não é uma crítica cinematográfica?". Sim, meus ansiosos leitores! Mas eu não consegui evitar esta introdução, pois ela dialoga abertamente com o filme que será analisado a seguir.
Assim como Kerouac e os beats, o cineasta David Lynch também abriu meus olhos para esse mundo que a mídia, o Estado e a sociedade hipócrita teimam em varrer para debaixo do tapete. E o seu primeiro longa que conseguiu fazer isso comigo talvez não seja o preferido do diretor para muita gente, mas certamente tem a dose ideal de loucura mesclada à fantasia - como ele bem gosta de contar suas histórias. Falo de Coração selvagem.
Sailor (Nicolas Cage) e Lula (Laura Dern) são um casal que se ama alucinadamente. Contudo, a love story que os acomete é diferente de qualquer padrão do gênero que você, espectador, já possa ter visto previamente. Eles ultrapassam qualquer normalidade. Parecem grudados num só corpo. E é exatamente essa postura doentia do casal que perturba Marietta Fortune (Diane Ladd), mãe de Lula. Por isso, ela fará de tudo para separar os dois.
Após uma briga em que Sailor mata seu adversário ele vai preso. Anos depois ele é solto, o casal se reencontra e cai na estrada. Estão dispostos a levar essa história romântica às últimas consequências. Marietta, revoltada, contrata alguém para matar Sailor e dar fim aquele casal. O resultado? Um anti-road movie de consequências mórbidas.
São muitas as imagens psicodélicas e furiosas que regem o filme. Aliás, que regem a carreira de Lynch, mestre em criar estereótipos os mais diversos. Personagens meio excêntricos meio malditos (como o golpista Bobby Peru, vivido por Willem Dafoe), menções ao clássico O mágico de Oz (até a Bruxa má do Oeste persegue o carro do casal numa cena), incêndios, cenas de sexo tórridas, Sailor cantando frente a uma banda de rock, até mesmo a canção cult "Wicked Games", de Chris Isaak, diz muito sobre a personalidade desse casal.
Em seu íntimo, Lula é a versão dark e confusa da ingênua e doce Dorothy com seus sapatinhos vermelhos atravessando a estrada de tijolos amarelos à procura do mágico que a tire daquele lugar. Só que aqui, mais grave, todos se mostram traidores, embusteiros, canalhas. Visam seus interesses únicos (e sórdidos). E isso deprime Lula ao longo da viagem.
Já Sailor está anos-luz de ser o mágico, o libertador. Ele parece mais um apetite sexual, com sua jaqueta de pele de cobra, prometendo a ela cantar "Love me tender", de Elvis, quando tiver a certeza de que Lula é a mulher de sua vida (detalhe curioso: nessa época ele era casado com a recém falecida Lisa-Marie Presley, filha do rei do rock).
Então o que esperar desse encontro, dessa história, que parece bem mais uma ode ao desespero do que uma jornada de autoconhecimento, como estamos acostumados em outros road movies? Certamente uma visita de Dorothy ao circo dos horrores em que se transformou a humanidade. E, nesse caso particular, nem mesmo os fortes têm certeza se sobreviverão.
É, meus caros amigos, Lynch não facilita pra ninguém. E como eu sempre procurei o caminho espinhoso em livros - como dito no parágrafo de abertura - e filmes, fico em êxtase a cada tomada, cada decisão, até o desfecho com cara de musical B improvisado (tá, vão me criticar aqui... mas foi a sensação que eu tive).
Para quem não conhece essa joia rara do cinema americano, está esperando o quê, meu filho? Corre atrás! Já não se fazem mais experiências como essa em hollywood. Pelo menos não com a mesma frequência da década de 1990. E isso, eu sei, é triste. Muito triste.
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