O cinema comercial ou blockbuster é uma faceta da sétima arte tanto quanto o cinema autoral, uma faceta cada vez mais onipresente, pelo que se pode perceber nas últimas décadas; e nem sempre isso é um bom sinal para os cinéfilos de carteirinha. E eu nunca entendi o porquê de tantas brigas entre esses dois grupos de fãs. Sempre acreditei que houvesse espaço para todos na sala escura, mas às vezes eu tenho a sensação de que são turmas distintas, que não gostam de coabitar o mesmo espaço.
Nessas horas, eu faço questão de escolher o lado que abraça também a crítica, com suas opiniões fortes, contundentes, por vezes polêmicas. Não sou do tipo de espectador que se basta com o fenômeno das franquias e o discurso evasivo do "gostei" ou "não gostei". Esse mundo de curtições e compartilhamentos das redes sociais não me picou. Mesmo. Prefiro ler uma opinião completamente contrária a minha sobre um filme do que manter distância de quem não gosta das mesmas coisas que eu. E nesse sentido a revista Cahiers du cinéma sempre fez parte da minha vida.
Numa matéria escrita por Cavi Borges, antigo dono da locadora Cavídeo e hoje produtor de cinema, para o jornal Correio da manhã, leio que a revista de cinema mais influente do mundo está completando 70 anos de existência. E penso então: "2021 quase acaba e eu deixo isso passar em vão!". É preciso corrigir essa injustiça o quanto antes.
A Cahiers du cinéma nasceu em março de 1951 dos esforços de três sonhadores: Jacques Doniol-Valcroze, André Bazin e Joseph-Marie Lo Duca. Mas também do delírio e do desejo de dois cineclubes parisienses da época, o Ciné-Club du Quartier Latin e Objectif 49 (que tiveram entre seus membros figuras como Robert Bresson, Jean Cocteau, Jacques Rivette, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol e François Truffaut). Alguns deles, como bem sabemos, foram responsáveis pela grande revolução cinematográfica que foi a Nouvelle Vague no final dos anos 1950.
Porém, mais importante do que isso, esses homens de coragem lutaram por aquilo que ficou conhecido como a política de autor. Ou seja: todos eles evidenciavam a importância do diretor para um filme (algo diferente do que se vê hoje em dia, num mercado dominado por estúdios). E a partir de análises complexas e abrangentes sobre a estética e o papel social das películas desnudaram o cinema de uma tal forma que, não à toa, a maioria dos críticos hoje a veja, mais do que um simples revista, como um grande evangelho da sétima arte mundial.
Que me perdoem os leitores de publicações como a Hollywood Reporter ou a Variety, mas a Cahiers du Cinéma conquistou um mercado muito maior do que simplesmente monetário. Ela virou sinônimo de cinema na cabeça dos cinéfilos mais apaixonados. Prova viva disso é a famosa lista top 10 que a revista divulga todo ano e é esperada quase que religiosamente pelos fãs. A Cahiers é isso: essa bússola que guia os espectadores mais alucinados por um jornada sem fim rumo ao conhecimento. Não, é isso mesmo que vocês leram! Cinema, para eles, não é só entretenimento. É conhecimento e muito.
Entre novas interpretações para a sétima arte, polêmicas relevantes (não simplesmente ser chato ou xiita com algum gênero e/ou diretor) e questionamentos sobre dogmas cinematográficos, a publicação trilhou de trincheira em trincheira um caminho em busca de reflexão e não se bastar com as primeiras impressões. E para quem pensa que o que a Cahiers fez é muito pouco ou quase nada, leve em consideração o seguinte: se hoje vocês, cinéfilos, sabem quem foram cineastas como Alfred Hitchcock, Howard Hawks, Samuel Fuller e Nicholas Ray, entre outras feras, agradeçam - e muito! - a revista. Pois antes dela, não era tão comum assim se lembrar de quem dirigiu um filme (pelo menos, não da maneira como vemos hoje em dia no circuito).
Hoje você vai ao cinema com a maior naturalidade, sabendo que Martin Scorsese é o diretor de O irlandês, David Fincher é o diretor de Mank e Steven Spielberg é o realizador por trás do remake de Amor, sublime amor. Provavelmente, muitos naquela época não faziam a menor ideia que os diretores da versão original do musical de Stephen Sondheim eram a dupla Jerome Robbins e Robert Wise. Mas eles conheciam o título do filme. Parece tão pouco, mas faz uma enorme diferença para quem produz e dirige.
Vejo muitos leitores da revista dizendo que ela não é mais a mesma, que perdeu parte do seu encanto, que se rendeu aos ditames do mercado (e isso, infelizmente, é verdade). Entretanto, ela ainda permanece - não se sabe bem até quando - um lugar onde a diversidade está presente, não se rendendo ao que o star system e os grandes estúdios, outrora chamados de majors, impõem. Ainda parece ser viável, mesmo com todas as dificuldades financeiras e tentativas da indústria cultural de meter o bedelho na linha editorial da publicação, construir um espaço do pensamento cinematográfico e não simplesmente uma terra de fanáticos que só almejam a corroboração de suas expectativas.
Ao fim deste artigo-homenagem, o que me sobra é mandar os desavisados ou desconhecedores da revista que a procurem. Vão à seu endereço na internet, fuçem, esmiuçem, leiam, releiam e principalmente: repensem tudo que acreditavam até então sobre o cinema, essa máquina inacreditável e inesgotável de produzir sonhos os mais diversos. E isso, meus caros leitores, é muito mais importante - pelo menos, para mim - do que ser fã do gênero a, b ou c. Podem ter certeza.
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